PICICA: "Somos um dos países onde o preconceito acontece de forma mais silenciosa, recôndita, venenosa e implícita. Somos um povo admirável, sem dúvidas. Um povo que festeja sua própria condição sempre que possível. Um povoado continental que vomita todas as suas mazelas dionisiacamente e, assim, evita ao máximo as patologias psicossomáticas de nações neurotizadas pelo estilo workaholic de ser. Mas, ao mesmo tempo, somos o povo do sorriso mais hipócrita do mundo. O povo da falsa aceitação das diferenças e da falsa integração nacional. Gente conceituada no país manifesta não saber se há civilização no estado do Amazonas! Aspirantes à jurisprudência exigem afogamento de nordestinos! Os brasileiros que torcem piamente para que um transexual seja o campeão de um reality show são os mesmos que, na rua, abominam a transexualidade de um cidadão comum."
A Columbine brasileira e nosso mito da tolerância
por Raphael Douglas
O Brasil vive, infelizmente, um drama que quase sempre acompanhou de longe. Pela TV, nos emocionamos com o caso Columbine (1999). Sem dúvidas, esse foi o acontecimento norte-americano de maior repercussão quando tratamos das invasões violentas às instituições de ensino. Na época, a ideia mais sustentada era que, por felicidade, o Brasil não tinha “dessas coisas”. Ficávamos espantados quando nos dávamos conta de como a sociedade norte-americana era psicologicamente enferma.
O problema deixou de ser apenas do vizinho e nos tocou de perto. É a pedagogia do temor. Só aprendemos quando nos ocorre. Não existe um brasileiro sequer – a não ser algum indivíduo que tenha a mesma linhagem mental do sorumbático Wellington Menezes – que não esteja estarrecido, obscurecido e emocionado com o ocorrido em Realengo, na Escola Municipal Tasso de Oliveira, no último sete de abril.
O Brasil está emocionado não só pelo ato em si ou pela crueldade e frieza da execução desse ato abominável. Mas, também, pela fragilidade da nossa segurança pública. Acreditamos ser o nosso contrato social um dos mais cordiais do mundo. Para quê um porteiro ou um segurança na entrada de uma escola municipal? O modo de gerir a segurança pública passa necessariamente pelo ethos de um povo. Se não há porteiros em escolas, se a entrada e saída de pessoas não é coordenada e fiscalizada, isto se dá pela confiança cega no nosso tradicional contrato social de pacifismo e tolerância. No imaginário do brasileiro, essas barbaridades sanguinolentas em escolas e universidades só aconteciam em países plenamente desenvolvidos, cujos núcleos familiares estão cada vez mais efêmeros e a sociedade multicultural se impõe decisivamente. Esse tabu foi destruído, desafortunadamente, no Rio de Janeiro.
Nossa máscara vai caindo para nosso próprio bem. O Brasil possui admiravelmente uma identidade das mais cretinas. Somos uma das sociedades mais multiculturais do mundo. A quantidade de memórias genéticas e de expressões culturais que convivem nesse país impressiona os não brasileiros. Desta maneira, crê-se que é por esse fato que sejamos uma das nações em que a tolerância e a aceitação da diferença funcionem plenamente. Ledo engano.
Será que o caso de Realengo é suficiente para que acordemos do nosso gigante auto-engano? Creio que não.
Somos um dos países onde o preconceito acontece de forma mais silenciosa, recôndita, venenosa e implícita. Somos um povo admirável, sem dúvidas. Um povo que festeja sua própria condição sempre que possível. Um povoado continental que vomita todas as suas mazelas dionisiacamente e, assim, evita ao máximo as patologias psicossomáticas de nações neurotizadas pelo estilo workaholic de ser. Mas, ao mesmo tempo, somos o povo do sorriso mais hipócrita do mundo. O povo da falsa aceitação das diferenças e da falsa integração nacional. Gente conceituada no país manifesta não saber se há civilização no estado do Amazonas! Aspirantes à jurisprudência exigem afogamento de nordestinos! Os brasileiros que torcem piamente para que um transexual seja o campeão de um reality show são os mesmos que, na rua, abominam a transexualidade de um cidadão comum.
Somos sim um povo tolerante, mas tolerância não indica saúde social. Existe uma diferença abissal entre tolerância e aceitação. Entre a estrutura óssea da ética e da moral, existe o gordo tutano da hipocrisia. Nós, os cordiais brasileiros, não convivemos autenticamente tão bem com as diferenças. Situações sociais elementares ainda nos escandalizam, como por exemplo, a presença pública de casais homossexuais, relacionamentos afetivos entre negros e brancos ou entre ricos e pobres.
Engrossando esse caldo venenoso temos nossas metrópoles. Tipicamente caóticas com um avanço demográfico irregular, com océlere desenvolvimento tecnológico, aliado ao processo irrefreável da favelização – oriunda de uma distribuição de renda feudal -, somado a complicação do escoamento do trânsito e da presença fatal e pedagógica da violência. Esses críticos fatores transformaram as cidades brasileiras em usinas produtoras de neuróticos, obsessivos, psicopatas, transtornados, bulímicos, ansiosos e estressados.
O que é Wellington Menezes senão um filho do Brasil? Produto da vivência de uma metrópole brasileira, assim como todas as outras, acostumada à violência, ao preconceito, à segregação social e, como é o caso, familiarizada com armas de fogo. Prontamente taxado de psicopata, um laudo muito fácil de dar, Wellington foi abandonado. É preferível, então, depositar a culpa em fatores biológicos, afinal, sua mãe biológica é esquizofrênica. Eis ai outra incalculável desonestidade.
Surgem de pronto os psicanalistas de plantão. Afirmam bolsonarísticamente que a ausência da figura paterna o desviou de uma conduta normal. Houve sim ausência de figura paterna, sua pátria, cujo cuidado com a educação e a saúde mental de suas crianças, que têm a escola como segunda casa (quando não a primeira), é extremamente pífia. A educação pública no país é uma selva, não é novidade. Ninguém é suficientemente cínico e hipócrita para discordar dessa afirmação. Esse papo é clichê? Nunca será! Uma fala anciã e desgastada sobre educação pública (e mesmo a particular) no país tem de vir à tona sempre. A criança Wellington passou por instituições que, sem dúvidas, o segregaram deixando-o a mercê de administrar por si sua patologia.
É a educação a solução de todos os problemas? É a psicologia educacioal a panacéia? Nunca. Mas o fato é que os homens passam os anos mais cruciais de suas existências dentro de escolas e instituições de ensino. Escolas bem equipadas material e psicologicamente são, sem dúvidas, fatores de refreamento e detecção de potenciais Wellingtons. E no Brasil não são poucos. Que ser humano, cuja estrutura psicológica sempre frágil, não está submetido a tomar atitudes como a de Wellington? Vamos lá! Sejamos honestos! Todos nós precisamos de apoio psicológico desde a infância para alicerçarmos uma razoável estabilidade ou uma ordem, mesmo que precária, para a vida psicológica adulta.
O que se passava na cabeça de Wellington? Essa é uma pergunta tardia, típica dos cretinos sensacionalistas que exploram a desgraça de maneira espetacular. A pergunta deveria ter sido feita há dez anos atrás, por profissionais de educação das escolas pelas quais passou Wellington. Mas esses profissionais não existem em números minimamente suficientes. Se relatórios psicológicos de comportamento individual dos alunos fossem, de fato, levados em consideração e se os profissionais da área, essenciais no crescimento cognitivo, psicológico e existencial de uma criança, fossem realmente valorizados, a realidade, sem sombra de dúvidas, seria potencialmente diferente.
As propostas acima são suficientes e necessárias para evitar o ocorrido? Seria simplista e simplório demais afirmar que sim. Mas fica aqui a discussão modestamente restrita às atitudes gerais no campo da educação.
Wellington, aos 23 anos, é a reta final do que pode representar um país mal preparado para cuidar educacionalmente dos seus filhos.
Depois de Columbine, a educação norte-americana se viu num momento decisivo de repaginar suas ações. E nós? Será suficiente pôr detectores de metais nas entradas das escolas ou revistar as bolsas de cada aluno que entra numa instituição de ensino? O modo de acolher e manter uma criança em convivência com outras deve ser muito cuidadoso, principalmente se ela demonstra, ainda em tenra idade, traços de alguma psicopatologia. Trata-se de incluir e não isolar.
O Brasil não é só o país da alegria. Há muito sofrimento psicológico na terra do futebol. Wellington não foi o último. Nas salas de aula em que o meu e o seu filho estudam, há outros em potência. E por que o meu e o seu filho não podem vir a ser um Wellington? Choremos pelas vítimas e choremos, também, por todas as pessoas abandonadas pela própria família, pelos amigos, pelos vizinhos e, infelizmente, pelos braços educacionais do governo.
O Brasil vive, infelizmente, um drama que quase sempre acompanhou de longe. Pela TV, nos emocionamos com o caso Columbine (1999). Sem dúvidas, esse foi o acontecimento norte-americano de maior repercussão quando tratamos das invasões violentas às instituições de ensino. Na época, a ideia mais sustentada era que, por felicidade, o Brasil não tinha “dessas coisas”. Ficávamos espantados quando nos dávamos conta de como a sociedade norte-americana era psicologicamente enferma.
O problema deixou de ser apenas do vizinho e nos tocou de perto. É a pedagogia do temor. Só aprendemos quando nos ocorre. Não existe um brasileiro sequer – a não ser algum indivíduo que tenha a mesma linhagem mental do sorumbático Wellington Menezes – que não esteja estarrecido, obscurecido e emocionado com o ocorrido em Realengo, na Escola Municipal Tasso de Oliveira, no último sete de abril.
O Brasil está emocionado não só pelo ato em si ou pela crueldade e frieza da execução desse ato abominável. Mas, também, pela fragilidade da nossa segurança pública. Acreditamos ser o nosso contrato social um dos mais cordiais do mundo. Para quê um porteiro ou um segurança na entrada de uma escola municipal? O modo de gerir a segurança pública passa necessariamente pelo ethos de um povo. Se não há porteiros em escolas, se a entrada e saída de pessoas não é coordenada e fiscalizada, isto se dá pela confiança cega no nosso tradicional contrato social de pacifismo e tolerância. No imaginário do brasileiro, essas barbaridades sanguinolentas em escolas e universidades só aconteciam em países plenamente desenvolvidos, cujos núcleos familiares estão cada vez mais efêmeros e a sociedade multicultural se impõe decisivamente. Esse tabu foi destruído, desafortunadamente, no Rio de Janeiro.
Nossa máscara vai caindo para nosso próprio bem. O Brasil possui admiravelmente uma identidade das mais cretinas. Somos uma das sociedades mais multiculturais do mundo. A quantidade de memórias genéticas e de expressões culturais que convivem nesse país impressiona os não brasileiros. Desta maneira, crê-se que é por esse fato que sejamos uma das nações em que a tolerância e a aceitação da diferença funcionem plenamente. Ledo engano.
Será que o caso de Realengo é suficiente para que acordemos do nosso gigante auto-engano? Creio que não.
Somos um dos países onde o preconceito acontece de forma mais silenciosa, recôndita, venenosa e implícita. Somos um povo admirável, sem dúvidas. Um povo que festeja sua própria condição sempre que possível. Um povoado continental que vomita todas as suas mazelas dionisiacamente e, assim, evita ao máximo as patologias psicossomáticas de nações neurotizadas pelo estilo workaholic de ser. Mas, ao mesmo tempo, somos o povo do sorriso mais hipócrita do mundo. O povo da falsa aceitação das diferenças e da falsa integração nacional. Gente conceituada no país manifesta não saber se há civilização no estado do Amazonas! Aspirantes à jurisprudência exigem afogamento de nordestinos! Os brasileiros que torcem piamente para que um transexual seja o campeão de um reality show são os mesmos que, na rua, abominam a transexualidade de um cidadão comum.
Somos sim um povo tolerante, mas tolerância não indica saúde social. Existe uma diferença abissal entre tolerância e aceitação. Entre a estrutura óssea da ética e da moral, existe o gordo tutano da hipocrisia. Nós, os cordiais brasileiros, não convivemos autenticamente tão bem com as diferenças. Situações sociais elementares ainda nos escandalizam, como por exemplo, a presença pública de casais homossexuais, relacionamentos afetivos entre negros e brancos ou entre ricos e pobres.
Engrossando esse caldo venenoso temos nossas metrópoles. Tipicamente caóticas com um avanço demográfico irregular, com océlere desenvolvimento tecnológico, aliado ao processo irrefreável da favelização – oriunda de uma distribuição de renda feudal -, somado a complicação do escoamento do trânsito e da presença fatal e pedagógica da violência. Esses críticos fatores transformaram as cidades brasileiras em usinas produtoras de neuróticos, obsessivos, psicopatas, transtornados, bulímicos, ansiosos e estressados.
O que é Wellington Menezes senão um filho do Brasil? Produto da vivência de uma metrópole brasileira, assim como todas as outras, acostumada à violência, ao preconceito, à segregação social e, como é o caso, familiarizada com armas de fogo. Prontamente taxado de psicopata, um laudo muito fácil de dar, Wellington foi abandonado. É preferível, então, depositar a culpa em fatores biológicos, afinal, sua mãe biológica é esquizofrênica. Eis ai outra incalculável desonestidade.
Surgem de pronto os psicanalistas de plantão. Afirmam bolsonarísticamente que a ausência da figura paterna o desviou de uma conduta normal. Houve sim ausência de figura paterna, sua pátria, cujo cuidado com a educação e a saúde mental de suas crianças, que têm a escola como segunda casa (quando não a primeira), é extremamente pífia. A educação pública no país é uma selva, não é novidade. Ninguém é suficientemente cínico e hipócrita para discordar dessa afirmação. Esse papo é clichê? Nunca será! Uma fala anciã e desgastada sobre educação pública (e mesmo a particular) no país tem de vir à tona sempre. A criança Wellington passou por instituições que, sem dúvidas, o segregaram deixando-o a mercê de administrar por si sua patologia.
É a educação a solução de todos os problemas? É a psicologia educacioal a panacéia? Nunca. Mas o fato é que os homens passam os anos mais cruciais de suas existências dentro de escolas e instituições de ensino. Escolas bem equipadas material e psicologicamente são, sem dúvidas, fatores de refreamento e detecção de potenciais Wellingtons. E no Brasil não são poucos. Que ser humano, cuja estrutura psicológica sempre frágil, não está submetido a tomar atitudes como a de Wellington? Vamos lá! Sejamos honestos! Todos nós precisamos de apoio psicológico desde a infância para alicerçarmos uma razoável estabilidade ou uma ordem, mesmo que precária, para a vida psicológica adulta.
O que se passava na cabeça de Wellington? Essa é uma pergunta tardia, típica dos cretinos sensacionalistas que exploram a desgraça de maneira espetacular. A pergunta deveria ter sido feita há dez anos atrás, por profissionais de educação das escolas pelas quais passou Wellington. Mas esses profissionais não existem em números minimamente suficientes. Se relatórios psicológicos de comportamento individual dos alunos fossem, de fato, levados em consideração e se os profissionais da área, essenciais no crescimento cognitivo, psicológico e existencial de uma criança, fossem realmente valorizados, a realidade, sem sombra de dúvidas, seria potencialmente diferente.
As propostas acima são suficientes e necessárias para evitar o ocorrido? Seria simplista e simplório demais afirmar que sim. Mas fica aqui a discussão modestamente restrita às atitudes gerais no campo da educação.
Wellington, aos 23 anos, é a reta final do que pode representar um país mal preparado para cuidar educacionalmente dos seus filhos.
Depois de Columbine, a educação norte-americana se viu num momento decisivo de repaginar suas ações. E nós? Será suficiente pôr detectores de metais nas entradas das escolas ou revistar as bolsas de cada aluno que entra numa instituição de ensino? O modo de acolher e manter uma criança em convivência com outras deve ser muito cuidadoso, principalmente se ela demonstra, ainda em tenra idade, traços de alguma psicopatologia. Trata-se de incluir e não isolar.
O Brasil não é só o país da alegria. Há muito sofrimento psicológico na terra do futebol. Wellington não foi o último. Nas salas de aula em que o meu e o seu filho estudam, há outros em potência. E por que o meu e o seu filho não podem vir a ser um Wellington? Choremos pelas vítimas e choremos, também, por todas as pessoas abandonadas pela própria família, pelos amigos, pelos vizinhos e, infelizmente, pelos braços educacionais do governo.
Mestrando, bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco.
Fonte: Amálgama
Nenhum comentário:
Postar um comentário