PICICA: "Apesar de discutida há mais de duas décadas no Brasil, a reforma psiquiátrica completa, neste mês, apenas 10 anos. Formalizada em 2001, a lei nº 10.216 estabeleceu as diretrizes da saúde mental no país, moldurando uma nova estratégia, fundada na humanização do tratamento e na formação de uma rede, cujo núcleo deixou de ser o hospital." Em tempo: A instituição da Lei de Saúde Mental não define, do ponto vista metodológico, o início da reforma psiquiátrica brasileira. Ao estabelecermos a periodização da reforma psiquiátrica, a Lei deve ser entendida como parte de um processo que se inicia muito antes da sua sanção. Em 1989, por exemplo, lá estava Roberto Tykanori, atual Coordenador Nacional de Saúde Mental, na equipe que desativou um manicômio em Santos e criou a primeira rede de serviços substitutivos ao modelo manicomial então vigente, e que se disseminou por todo o país. A partir de 1993, seria a vez de Belo Horizonte, iniciar o processo de implantação da sua rede. Ali se constituiu uma das mais importantes iniciativas na luta por uma sociedade sem manicômios. Descontado este pequeno deslize no texto jornalístico, a matéria é de interesse para que o leitor compreenda porque a militância antimanicomial defende uma reforma psiquiátrica antimanicomial. Para isso são necessários recursos financeiros e pessoal qualificado, de modo que o funcionamento pleno da nova rede de atenção diária à saúde mental possa criar novas possibilidades no cotidiano dos usuários dos serviços. É preciso, definitivamente, deixar para trás o deserto ético dos manicômios em prol de novas formas de sociabilidade.
Roberto Tykanori - Foto: Rogelio Casado - Belo Horizonte-MG, Julho/2006
Os 10 anos da reforma psiquiátrica no Brasil
Por Bruno de Pierro, para o Brasilianas.org
Apesar de discutida há mais de duas décadas no Brasil, a reforma psiquiátrica completa, neste mês, apenas 10 anos. Formalizada em 2001, a lei nº 10.216 estabeleceu as diretrizes da saúde mental no país, moldurando uma nova estratégia, fundada na humanização do tratamento e na formação de uma rede, cujo núcleo deixou de ser o hospital.
Defensor desse modelo, o governo federal criou, em 2003, o programa De Volta Para Casa, que hoje atende mais de 3,7 mil brasileiros em 614 municípios, sendo 19 habilitados pelo Ministério da Saúde. Baseado na lógica da descentralização, o programa concede um auxílio de R$ 320 aos pacientes que receberam alta da internação psiquiátrica. Segundo informações do ministério, em 2010, foram investidos R$ 13,8 milhões no De Volta. Para a atenção especializada, foram consolidados os Centros de Atenção Psicossocial (os CAPS), que atualmente são 1.620 – número quatro vezes maior que em 2002, quando se registravam 424 centros.
O modelo, entretanto, é ainda questionado por muitos profissionais da área de saúde, que não concordam com o processo de “des-hospitalização”, que estaria sendo provocado pela desistitucionalização – bandeira da reforma.
Em entrevista ao Brasilianas.org, o novo coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Roberto Tykanori explica porque o modelo atual é o melhor e qual os problemas que ainda devem ser enfrentados. “A questão de des-hospitalizar, dentro da reforma, é uma etapa para você atingir os objetivos mais importantes”, afirma.
Confira abaixo os principais momentos da entrevista.
Brasilianas.org – A desistitucionalização, promovida pela reforma psiquiátrica no país, diminuiu o número de leitos da saúde mental, tirando o hospital do centro do tratamento de pacientes. Mas esse processo não tem caminhado para uma “des-hospitalização”?
Roberto Tykanori – São duas coisas diferentes. Des-hospitalizar é realmente um processo que ocorre de retirar as pessoas dos hospitais. Essa idéia tem vários aspectos, sendo que o principal é mudar o eixo do atendimento e o eixo do investimento. Isso tem a ver com a mudança de modelo, porque significa sair do raciocínio centrado no hospital, e construir outro tipo de modelo. Existe uma dimensão, dentro da palavra “des-hospitalizar”, que é a seguinte: descentralizar o recurso que concentrado no sistema hospitalar. Ou seja, tem o aspecto de des-hospitalizar o dinheiro.
Do ponto de vista do desenvolvimento da política, é crucial você conseguir transferir recursos de um sistema, que já está aplicado e concentrado num sistema hospitalar, para outro sistema, que tem outro modo de raciocinar. A questão de des-hospitalizar, dentro da reforma, é uma etapa para você atingir os objetivos mais importantes. Estamos saindo de um modelo que era concentrado, tanto de recursos, como de pessoas. Havia uma distribuição de recursos para poucos lugares, e as pessoas que tem acesso a esses lugares ficam super-concentradas num mesmo ponto. O modelo novo descentraliza o recurso, para facilitar o acesso e torna os espaços de atendimento não concentracionários. Os pontos passam a ser de convívio.
Passa-se, também, a mudar o foco, para cada vez menos nas situações extremas, para cada vez mais olhar e apoiar os pacientes no seu cotidiano. Passa a haver a possibilidade de atendimento nas situações cotidianas. Em 2002, houve 460 mil atendimentos; em 2010, com essa descentralização e esse processo de transferência de recursos para uma rede nacional, aumentando o acesso e a oferta, fizemos 21 milhões de atendimento.
Mas apesar dessa descentralização, o que se verifica, em outros países, é que modelos desse tipo esbarram nos contingentes de doentes mais graves, que não conseguem viver sem supervisão institucional. Não há esse problema aqui?
Por que temos 21 milhões de atendimentos? Não significa 21 milhões de pessoas; significa o conjunto de atendimentos muito mais denso e intenso. Tem pessoas, que precisam passar pelo atendimento apenas uma vez por mês, mas outros precisam de atendimento cotidiano, de cuidados intensivos. Antes, como eu disse, havia uma concentração muito grande de recursos e de pessoas, mas pouquíssimos profissionais na rede. Hoje, temos uma quantidade enorme de pessoas ofertando atendimento. No aspecto concentracionário, você tinha parentes para tomar conta das pessoas e pouquíssimos funcionários. No modelo atual, cada vez mais fazemos um rede de pessoas.
Em entrevista a este blog, o ministro Alexandre Padilha falou da necessidade de se organizar as redes de atenção do SUS, promovendo a regionalização do sistema. Como tem sido trabalhado o atendimento básico em saúde mental nas redes interfederativas do SUS, uma vez que o foco de muitas delas tem sido a alta complexidade?
Este é um ponto importante. Estamos numa fase em que o sistema está crescendo, mas ainda depende de processos de investimentos. De fato, precisamos avançar na integração de conceitos e práticas junto à atenção primária. Porque, assim como a atenção primária vai ser um reposicionamento, este reposicionamento envolve estabelecer colaboração e sinergia com o sistema de saúde mental, para que a gente atinja, capilarmente, cada vez mais pessoas. Quando o atendimento à saúde mental e a atenção básica estão bem próximos das pessoas, você pode lidar com as situações de conflito da vida cotidiana e real das pessoas. Isso significa ter uma estratégia de atender preventivamente. É um aprimoramento do sistema.
Um ponto que alguns especialistas criticam do sistema de saúde mental brasileiro se refere à ausência da prevenção secundária. O ministério tem se preparado para esta etapa do atendimento?
Quando pensamos em prevenção secundária, é só de trabalho ambulatorial, e isso se mostra, historicamente, ser insuficiente. Como já falei aqui, deve-se colocar o foco no dia-a-dia do paciente, e não apenas no transtorno mental agudo. E o dia-a-dia é difícil. Então, a rede, além de atender principalmente casos graves e de ruptura, o fundamento mais importante é a continuidade do atendimento e da atenção. E isso só se dá em rede.
Por isso que se pensa que, além dos gastos, você tem procedimentos terapêuticos, centros de convivência, você busca ter oficinas de trabalho. Essa composição garante trabalho, renda, lazer e tratamento. Esse tipo de coisa é que vai gerar aquilo que se chama de prevenção secundária, ou seja, a sustentabilidade das pessoas, evitando recaídas ou crises mais prolongadas.
O Brasil possui um sistema básico de prevenção de doenças mentais? Há doenças que, apesar de mentais, podem ser evitadas, como depressão pós-parto ou alguns quadros maníacos.
No caso específico das mulheres grávidas, foi lançada recentemente a chamada Rede Cegonha, que é uma proposta ampla de reorganização da atenção às mulheres grávidas. Um dos componentes é o investimento na qualificação e aprimoramento e passa exatamente por isso. Um dos critérios, que vai ser adotado daqui para frente na rede, é que mulheres que tenham passado histórico de problema mental devem ter histórico de depressão. Ou casos de saúde mental, passam a ser considerados um risco. Ela [a mulher] passa a ser observada durante a gravidez e depois do parto com um protocolo diferenciado.
Isso no caso da depressão na gravidez. Mas casos mais graves de outras psicoses recebem a mesma atenção? A internação hospitalar de urgência, por exemplo, é realizada?
A situação da prevenção é a seguinte: quando você vai atender as pessoas, e está cada vez mais perto, a ação é intervir de fato nos conflitos menores, nas situações de menor complicação…
E as de maior complicação?
É como se fosse o efeito de cascata. Interferindo num problema menor, você evita que ele cresça. Tem problemas que vão crescendo, à medida que elas pedem atendimento. Prevenção é você ajudar a superar essas dificuldades no cotidiano. Faz parte das novas diretrizes qualificar os prontos-socorros – em casos de ruptura, o paciente é encaminhado para lá. Atualmente, temos centrado nos prontos-socorros especializados. Nesse primeiro atendimento, o paciente é atendido por especialistas ou não-especialistas. E ali, a gente precisa qualificar, de fato, esse processo. Vai haver um processo de reorganização das portas de emergência, o que envolve uma qualificação de todos os pontos de atendimento dos casos mais agudos.
Pode-se dizer que um dos obstáculos do tratamento da saúde mental é a dificuldade de se definir diagnósticos quando a doença ainda está na fase inicial?
Na questão específica da depressão, é importante colocar, pois há mudanças de aspectos da doença, que atualmente merecem uma inflexão. Nos últimos meses, diversas pesquisas, particularmente americanas, que mostram que a grande parte da população que atualmente está sendo medicada com esse discurso preventivo, nos EUA, tem os efeitos equivalentes a um placebo. Não significa que seja inócuo, mas se trata de placebo. Isso começa a jogar luz na necessidade você reorganizar o sistema, pois são milhões de pessoas (da população e de parte dos profissionais também) que, culturalmente, entendem que basta tomar um remédio, pois ele ou previne ou trata rapidamente.
Essas pesquisas mostram equívocos, porque os remédios custam caro para as pessoas. A eficácia desses remédios é questionada. A rigor, estamos retomando paradigmas de atendimentos mais antigos, que eram mais fracos, na verdade.
Hoje, em alguns casos, a primeira medida é passar 30 dias de apoio psicossocial, e não entrar com médico. Porque aí outras pesquisas mostram que essas abordagens sociais tem mais efetividade e eficácia do que o procedimento de medicação. Por outro lado, existem outras indicações de que introduções de remédios, em situação em que são desnecessários, acabam gerando, ao longo do tempo, crises piores. Isso é uma mudança de eixo que vem sendo feita com amplos debates.
Qual a base conceitual da reforma brasileira? Ela é totalmente influenciada pelo movimento italiano, de Franco Basaglia?
A boa coisa do Brasil é que, como ele entrou na reforma bem a posteriori, depois da reforma nos EUA, da França e da Itália, isso permitiu à gente fazer um amálgama daquilo que tem de interessante e positivo dessas diversas experiências. A experiência italiana é análoga, de certa forma. Ela é tardia, se comparada com os outros países. O que o Basaglia promoveu foi, de certa forma, o que o Brasil fez, ou seja, tirou o que havia de interessante das experiências anteriores. Aprender com o Basaglia é “vamos aprender com todo mundo”. Aprendemos a copiar assim como os italianos aprenderam.
Qual a contribuição do movimento psicanalítico na formação da reforma? Consegue-se pensar na psicanálise dentro das políticas de saúde mental?
O campo da psicanálise é bastante heterogêneo. Mesmo dentro da psicanálise existem muitas “psicanálises”, o que abre espaço para muitas incongruências dentro dela. As contribuições que foram sendo absorvidas foram, ao longo da história, mostrando a importância de que o psiquismo não é uma coisa a ser deixada de lado – as pessoas possuem uma vida interior, tem idéias, desejos, e isso é um ponto para tratarmos de alguém. No âmbito geral, a psicanálise enriquece a cultura do cuidado e do atendimento. Como tecnologia, há vários tipos de profissionais – o lacaniano, o freudiano etc. – não necessariamente é uma ferramenta a ser utilizada como estratégia única para o planejamento da saúde mental.
O ministério sabe onde estão os loucos, genéricamente falando, do Brasil? Aqueles que estão nas ruas e nas cadeias, como podem ser identificados e tratados?
Para se ter idéia, 3% da população teria algum tipo de problema grave. No Brasil, temos cerca de seis milhões de pessoas nas ruas. 3% de 200 milhões de brasileiros é seis milhões. Então seria quase metade de São Paulo distribuída por aí, sé de casos graves. Dos casos leves, seriam mais 9%, ou seja, aproximadamente 20 milhões. Assim, um em cada dez brasileiro, talvez, está na rua, louco. Então, essa é uma imagem equivocada, dizer que a maior parte dos loucos está nas ruas.
Muita gente que está na rua tem problema, isso é verdade. Certamente, de modo grosseiro, 90% tem problema com álcool. Só o fato de estar na rua, aumenta a vulnerabilidade, e a pessoa piora bastante. Mas, do ponto de vista de uma política pública, primeiro as pessoas precisam sair da rua. Nesse sentido, o governo está desenvolvendo uma estratégia, com a coordenação do Ministério do Desenvolvimento Social, de combate à miséria. Existe o Plano Nacional para a população de rua, cuja implementação está sendo feita gradualmente.
Apesar de discutida há mais de duas décadas no Brasil, a reforma psiquiátrica completa, neste mês, apenas 10 anos. Formalizada em 2001, a lei nº 10.216 estabeleceu as diretrizes da saúde mental no país, moldurando uma nova estratégia, fundada na humanização do tratamento e na formação de uma rede, cujo núcleo deixou de ser o hospital.
Defensor desse modelo, o governo federal criou, em 2003, o programa De Volta Para Casa, que hoje atende mais de 3,7 mil brasileiros em 614 municípios, sendo 19 habilitados pelo Ministério da Saúde. Baseado na lógica da descentralização, o programa concede um auxílio de R$ 320 aos pacientes que receberam alta da internação psiquiátrica. Segundo informações do ministério, em 2010, foram investidos R$ 13,8 milhões no De Volta. Para a atenção especializada, foram consolidados os Centros de Atenção Psicossocial (os CAPS), que atualmente são 1.620 – número quatro vezes maior que em 2002, quando se registravam 424 centros.
O modelo, entretanto, é ainda questionado por muitos profissionais da área de saúde, que não concordam com o processo de “des-hospitalização”, que estaria sendo provocado pela desistitucionalização – bandeira da reforma.
Em entrevista ao Brasilianas.org, o novo coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Roberto Tykanori explica porque o modelo atual é o melhor e qual os problemas que ainda devem ser enfrentados. “A questão de des-hospitalizar, dentro da reforma, é uma etapa para você atingir os objetivos mais importantes”, afirma.
Confira abaixo os principais momentos da entrevista.
Brasilianas.org – A desistitucionalização, promovida pela reforma psiquiátrica no país, diminuiu o número de leitos da saúde mental, tirando o hospital do centro do tratamento de pacientes. Mas esse processo não tem caminhado para uma “des-hospitalização”?
Roberto Tykanori – São duas coisas diferentes. Des-hospitalizar é realmente um processo que ocorre de retirar as pessoas dos hospitais. Essa idéia tem vários aspectos, sendo que o principal é mudar o eixo do atendimento e o eixo do investimento. Isso tem a ver com a mudança de modelo, porque significa sair do raciocínio centrado no hospital, e construir outro tipo de modelo. Existe uma dimensão, dentro da palavra “des-hospitalizar”, que é a seguinte: descentralizar o recurso que concentrado no sistema hospitalar. Ou seja, tem o aspecto de des-hospitalizar o dinheiro.
Do ponto de vista do desenvolvimento da política, é crucial você conseguir transferir recursos de um sistema, que já está aplicado e concentrado num sistema hospitalar, para outro sistema, que tem outro modo de raciocinar. A questão de des-hospitalizar, dentro da reforma, é uma etapa para você atingir os objetivos mais importantes. Estamos saindo de um modelo que era concentrado, tanto de recursos, como de pessoas. Havia uma distribuição de recursos para poucos lugares, e as pessoas que tem acesso a esses lugares ficam super-concentradas num mesmo ponto. O modelo novo descentraliza o recurso, para facilitar o acesso e torna os espaços de atendimento não concentracionários. Os pontos passam a ser de convívio.
Passa-se, também, a mudar o foco, para cada vez menos nas situações extremas, para cada vez mais olhar e apoiar os pacientes no seu cotidiano. Passa a haver a possibilidade de atendimento nas situações cotidianas. Em 2002, houve 460 mil atendimentos; em 2010, com essa descentralização e esse processo de transferência de recursos para uma rede nacional, aumentando o acesso e a oferta, fizemos 21 milhões de atendimento.
Mas apesar dessa descentralização, o que se verifica, em outros países, é que modelos desse tipo esbarram nos contingentes de doentes mais graves, que não conseguem viver sem supervisão institucional. Não há esse problema aqui?
Por que temos 21 milhões de atendimentos? Não significa 21 milhões de pessoas; significa o conjunto de atendimentos muito mais denso e intenso. Tem pessoas, que precisam passar pelo atendimento apenas uma vez por mês, mas outros precisam de atendimento cotidiano, de cuidados intensivos. Antes, como eu disse, havia uma concentração muito grande de recursos e de pessoas, mas pouquíssimos profissionais na rede. Hoje, temos uma quantidade enorme de pessoas ofertando atendimento. No aspecto concentracionário, você tinha parentes para tomar conta das pessoas e pouquíssimos funcionários. No modelo atual, cada vez mais fazemos um rede de pessoas.
Em entrevista a este blog, o ministro Alexandre Padilha falou da necessidade de se organizar as redes de atenção do SUS, promovendo a regionalização do sistema. Como tem sido trabalhado o atendimento básico em saúde mental nas redes interfederativas do SUS, uma vez que o foco de muitas delas tem sido a alta complexidade?
Este é um ponto importante. Estamos numa fase em que o sistema está crescendo, mas ainda depende de processos de investimentos. De fato, precisamos avançar na integração de conceitos e práticas junto à atenção primária. Porque, assim como a atenção primária vai ser um reposicionamento, este reposicionamento envolve estabelecer colaboração e sinergia com o sistema de saúde mental, para que a gente atinja, capilarmente, cada vez mais pessoas. Quando o atendimento à saúde mental e a atenção básica estão bem próximos das pessoas, você pode lidar com as situações de conflito da vida cotidiana e real das pessoas. Isso significa ter uma estratégia de atender preventivamente. É um aprimoramento do sistema.
Um ponto que alguns especialistas criticam do sistema de saúde mental brasileiro se refere à ausência da prevenção secundária. O ministério tem se preparado para esta etapa do atendimento?
Quando pensamos em prevenção secundária, é só de trabalho ambulatorial, e isso se mostra, historicamente, ser insuficiente. Como já falei aqui, deve-se colocar o foco no dia-a-dia do paciente, e não apenas no transtorno mental agudo. E o dia-a-dia é difícil. Então, a rede, além de atender principalmente casos graves e de ruptura, o fundamento mais importante é a continuidade do atendimento e da atenção. E isso só se dá em rede.
Por isso que se pensa que, além dos gastos, você tem procedimentos terapêuticos, centros de convivência, você busca ter oficinas de trabalho. Essa composição garante trabalho, renda, lazer e tratamento. Esse tipo de coisa é que vai gerar aquilo que se chama de prevenção secundária, ou seja, a sustentabilidade das pessoas, evitando recaídas ou crises mais prolongadas.
O Brasil possui um sistema básico de prevenção de doenças mentais? Há doenças que, apesar de mentais, podem ser evitadas, como depressão pós-parto ou alguns quadros maníacos.
No caso específico das mulheres grávidas, foi lançada recentemente a chamada Rede Cegonha, que é uma proposta ampla de reorganização da atenção às mulheres grávidas. Um dos componentes é o investimento na qualificação e aprimoramento e passa exatamente por isso. Um dos critérios, que vai ser adotado daqui para frente na rede, é que mulheres que tenham passado histórico de problema mental devem ter histórico de depressão. Ou casos de saúde mental, passam a ser considerados um risco. Ela [a mulher] passa a ser observada durante a gravidez e depois do parto com um protocolo diferenciado.
Isso no caso da depressão na gravidez. Mas casos mais graves de outras psicoses recebem a mesma atenção? A internação hospitalar de urgência, por exemplo, é realizada?
A situação da prevenção é a seguinte: quando você vai atender as pessoas, e está cada vez mais perto, a ação é intervir de fato nos conflitos menores, nas situações de menor complicação…
E as de maior complicação?
É como se fosse o efeito de cascata. Interferindo num problema menor, você evita que ele cresça. Tem problemas que vão crescendo, à medida que elas pedem atendimento. Prevenção é você ajudar a superar essas dificuldades no cotidiano. Faz parte das novas diretrizes qualificar os prontos-socorros – em casos de ruptura, o paciente é encaminhado para lá. Atualmente, temos centrado nos prontos-socorros especializados. Nesse primeiro atendimento, o paciente é atendido por especialistas ou não-especialistas. E ali, a gente precisa qualificar, de fato, esse processo. Vai haver um processo de reorganização das portas de emergência, o que envolve uma qualificação de todos os pontos de atendimento dos casos mais agudos.
Pode-se dizer que um dos obstáculos do tratamento da saúde mental é a dificuldade de se definir diagnósticos quando a doença ainda está na fase inicial?
Na questão específica da depressão, é importante colocar, pois há mudanças de aspectos da doença, que atualmente merecem uma inflexão. Nos últimos meses, diversas pesquisas, particularmente americanas, que mostram que a grande parte da população que atualmente está sendo medicada com esse discurso preventivo, nos EUA, tem os efeitos equivalentes a um placebo. Não significa que seja inócuo, mas se trata de placebo. Isso começa a jogar luz na necessidade você reorganizar o sistema, pois são milhões de pessoas (da população e de parte dos profissionais também) que, culturalmente, entendem que basta tomar um remédio, pois ele ou previne ou trata rapidamente.
Essas pesquisas mostram equívocos, porque os remédios custam caro para as pessoas. A eficácia desses remédios é questionada. A rigor, estamos retomando paradigmas de atendimentos mais antigos, que eram mais fracos, na verdade.
Hoje, em alguns casos, a primeira medida é passar 30 dias de apoio psicossocial, e não entrar com médico. Porque aí outras pesquisas mostram que essas abordagens sociais tem mais efetividade e eficácia do que o procedimento de medicação. Por outro lado, existem outras indicações de que introduções de remédios, em situação em que são desnecessários, acabam gerando, ao longo do tempo, crises piores. Isso é uma mudança de eixo que vem sendo feita com amplos debates.
Qual a base conceitual da reforma brasileira? Ela é totalmente influenciada pelo movimento italiano, de Franco Basaglia?
A boa coisa do Brasil é que, como ele entrou na reforma bem a posteriori, depois da reforma nos EUA, da França e da Itália, isso permitiu à gente fazer um amálgama daquilo que tem de interessante e positivo dessas diversas experiências. A experiência italiana é análoga, de certa forma. Ela é tardia, se comparada com os outros países. O que o Basaglia promoveu foi, de certa forma, o que o Brasil fez, ou seja, tirou o que havia de interessante das experiências anteriores. Aprender com o Basaglia é “vamos aprender com todo mundo”. Aprendemos a copiar assim como os italianos aprenderam.
Qual a contribuição do movimento psicanalítico na formação da reforma? Consegue-se pensar na psicanálise dentro das políticas de saúde mental?
O campo da psicanálise é bastante heterogêneo. Mesmo dentro da psicanálise existem muitas “psicanálises”, o que abre espaço para muitas incongruências dentro dela. As contribuições que foram sendo absorvidas foram, ao longo da história, mostrando a importância de que o psiquismo não é uma coisa a ser deixada de lado – as pessoas possuem uma vida interior, tem idéias, desejos, e isso é um ponto para tratarmos de alguém. No âmbito geral, a psicanálise enriquece a cultura do cuidado e do atendimento. Como tecnologia, há vários tipos de profissionais – o lacaniano, o freudiano etc. – não necessariamente é uma ferramenta a ser utilizada como estratégia única para o planejamento da saúde mental.
O ministério sabe onde estão os loucos, genéricamente falando, do Brasil? Aqueles que estão nas ruas e nas cadeias, como podem ser identificados e tratados?
Para se ter idéia, 3% da população teria algum tipo de problema grave. No Brasil, temos cerca de seis milhões de pessoas nas ruas. 3% de 200 milhões de brasileiros é seis milhões. Então seria quase metade de São Paulo distribuída por aí, sé de casos graves. Dos casos leves, seriam mais 9%, ou seja, aproximadamente 20 milhões. Assim, um em cada dez brasileiro, talvez, está na rua, louco. Então, essa é uma imagem equivocada, dizer que a maior parte dos loucos está nas ruas.
Muita gente que está na rua tem problema, isso é verdade. Certamente, de modo grosseiro, 90% tem problema com álcool. Só o fato de estar na rua, aumenta a vulnerabilidade, e a pessoa piora bastante. Mas, do ponto de vista de uma política pública, primeiro as pessoas precisam sair da rua. Nesse sentido, o governo está desenvolvendo uma estratégia, com a coordenação do Ministério do Desenvolvimento Social, de combate à miséria. Existe o Plano Nacional para a população de rua, cuja implementação está sendo feita gradualmente.
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