abril 25, 2011

“O aborto mal feito é a terceira causa de morte materna”, (entrevista com Nalu Faria)

PICICA: "A falta de atendimento médico e hospitalar adequado tem sido responsável pela morte de mais de 500 mulheres por ano no Brasil, devido a abortos clandestinos. São mortes que poderiam ser evitadas. O assunto é recolocado na perspectiva da luta histórica da sociedade, diferentemente das distorções que sofreu no último processo eleitoral."
O aborto mal feito é a terceira causa de morte materna
ABAIXO, BOA PARTE DA ENTREVISTA QUE NALU FARIA CONCEDEU A REVISTA “CAROS AMIGOS”
Fonte: Caros Amigos novembro 2010 www.carosamigos.com.br
entrevista NALU FARIA
“O aborto mal feito é a terceira causa de morte materna”
Nalu discute as principais bandeiras do movimento de mulheres no país


Participaram: Cecília Luedemann, Gabriela Moncau, Hamilton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues, Otávio Nagoya e Tatiana Merlino.

Psicóloga, coordenadora geral da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e integrante da Secretaria Nacional da Marcha Mundial das Mulheres, Nalu Faria é um dos nomes mais importantes do Brasil na questão da luta das mulheres. Feminista e anticapitalista, ela discute, nesta entrevista à Caros Amigos, as principais bandeiras do movimento de mulheres no país, como violência doméstica, equiparação salarial, luta contra o machismo e o direito ao aborto. A falta de atendimento médico e hospitalar adequado tem sido responsável pela morte de mais de 500 mulheres por ano no Brasil, devido a abortos clandestinos. São mortes que poderiam ser evitadas. O assunto é recolocado na perspectiva da luta histórica da sociedade, diferentemente das distorções que sofreu no último processo eleitoral. Vale a pena conferir o que Nalu Faria tem a nos contar.

Tatiana Merlino - Gostaria que você falasse um pouco da sua infância, até o início da sua trajetória no feminismo.

Hamilton Octavio de Souza -
E nome completo.


Nalu Faria – Bom, meu nome é Nalu Faria Silva, eu nasci em Uberaba. Minha mãe morava na roça, e fui para Uberaba só para nascer e voltei. Eu vivi até os 9 anos em um sítio e depois a gente mudou para uma cidadezinha do lado, Água Comprida, onde vivi até terminar, na época, o ginásio.


Tatiana Merlino – Em que ano você nasceu?

Eu nasci em 1958 e vivi lá em Água Comprida até 1974. Aí fui para Uberaba, fiz o colegial, fiz a universidade lá, comecei a militar quando entrei na universidade, em 1978.


Lúcia Rodrigues – Que curso?

Fiz Psicologia. E vim para São Paulo. Tem exatamente 27 anos. Cheguei em São Paulo no dia 21 de outubro de 1983.


Tatiana Merlino – Por que você veio para São Paulo?

Acho que por duas coisas. Uma, porque estava militando em Uberaba. Era militante feminista no movimento estudantil lá. Estava num grupo de mulheres, no Partido dos Trabalhadores, as chamadas fundadoras do PT na cidade. E eu tinha muita vontade de militar. Então, eu achava que Uberaba era pequena. Queria militar e São Paulo aparecia como um bom lugar. Então, isso foi um dos motivos. Militante do PT e formada em Psicologia é difícil o acesso real ao emprego. Então vim para cá.


Tatiana Merlino – Em Uberaba você já começou a militar no movimento de mulheres?

Em Uberaba, a gente comemorou o 8 de março de 1980. Foi o primeiro contato com esse debate. Eu era do curso da Psicologia e lá tínhamos um bom grupo que naquela época estava aberto a esses temas da sexualidade, da discussão das mulheres, éramos briguentas. Nós escutávamos muito: “Pra quê vocês estão estudando se vão casar e ter filhos, pôr o diploma na gaveta, tudo isso”. Então, tinha muitos ataques machistas. O primeiro debate que eu fiz foi sobre aborto, um pouco antes de vir para São Paulo, 1983. Chegando em São Paulo, eu até brincava que tinha muita vontade de militar, mas com o desemprego em 1983, eu costumo dizer que a militância foi a última coisa que eu resolvi. Aqui, fiz várias tentativas de militância até que consegui achar um lugar no movimento de mulheres e, em 1985, eu comecei a militar no movimento de mulheres. E militando de forma cotidiana no PT nos últimos anos, em particular na secretaria de mulheres do PT. Eu fui da secretaria de mulheres do PT até 2004.


Hamilton Octavio de Souza – Antes disso, no final de 1979, a gente tinha aqui em São Paulo alguns jornais do movimento feminista: Nós, Mulheres, Mulherio, Brasil Mulher. Tinha vários grupos feministas. Quando você começou a militar, como era o movimento das mulheres em 1985?

Eu cheguei em um momento bem difícil do movimento de mulheres. Quando eu cheguei, não tinha um espaço de articulação do movimento, porque tinha tido aquilo no período da campanha eleitoral de 1982. A visão dos projetos políticos frente à transição da ditadura marcou dois campos no movimento das mulheres. O setor que era, na época, mais vinculado ao PMDB foi entrando mais para a política institucional, conselhos, e o outro campo de autonomistas, de reflexão, do Nós Mulheres, e outros, se desarticulou. A gente se juntava para organizar o 8 de março, e, justamente nessa época, a gente estava discutindo a importância de ter uma coordenação do movimento de São Paulo para que funcionássemos para além do 8 de março. Mas, a partir de 1986, principalmente, o Encontro Feminista Latino-americano, que teve aqui em São Paulo, em 1985, deu um novo gás, e a partir de 1986 começaram a acontecer várias coisas no movimento de mulheres, para mim, que queria militar com os setores populares, que foi a articulação das mulheres da CUT, que foi em 1986. A gente começa a ir articulando outras coisas nos setores mistos.


Hamilton Octavio de Souza – Quais eram os pontos de luta?

Naquela época, tinha uma agenda forte com relação ao tema que se chamava planejamento familiar. Também tinha os tema da violência e da creche. A gente tinha vindo da campanha por creche, já tinha isso. E um tema genérico de “salário igual para trabalho igual”. Aí, com a Constituinte aparece o tema do aborto. A gente fez um processo de mobilização para colher 30 mil assinaturas, para entrar com uma emenda na Constituinte. Foi o momento que a gente colocou mais a cara na rua, com o tema do aborto. Conseguimos as 30 mil assinaturas e o que nós conseguimos na Constituinte, que o direito à vida, na Constituição, é desde o nascimento.


Hamilton Octavio de Souza – A diferença era entre a concepção e o nascimento?

No movimento das mulheres tinha prevalecido essa visão de não colocar o tema do aborto, porque se pusesse, ia apanhar. Como no anteprojeto vem essa questão do direito à vida desde a concepção, exige-se uma reação do movimento e aí aparece a emenda, a negociação, a mudança do artigo sobre o direito à vida. Depois começa a haver uma articulação das mulheres negras, com um primeiro encontro em 1988. Reaparece o grupo de mulheres lésbicas. A gente teve um Encontro Feminista em 1989, aqui em São Paulo, o 10º Encontro Nacional Feminista. Foi um marco: primeiro a gente saiu de lá com a ideia de fazer uma campanha nacional pela legalização do aborto, que era uma polêmica. Teve debates, oficinas amplas sobre a questão lésbica, do partido. Tinha coisas que também que, por um motivo ou por outro, no movimento feminista eram meio tabu, o partido não entrava, porque era movimento autônomo. Aí, depois nos anos 1990, o movimento de mulheres cai num processo de institucionalização, que a gente chama de aumento das Ongs, um momento que o movimento acompanha muito as agendas da ONU, que é essa ideia do neoliberalismo, débâcle mesmo na discussão no movimento mais de esquerda.


Hamilton Octavio de Souza – Por que afetou? Em que aspecto?

Porque começa com um discurso no movimento de mulheres do impacto da globalização, do neoliberalismo. Primeiro uma ideia de que tinha perdido o papel dos Estados nacionais, que era uma agenda global da ONU e deveria inserir as questões dos direitos ali. Então, isso foi uma coisa que prevaleceu na América Latina e que significou uma profissionalização do movimento das mulheres, as pessoas começam a participar das conferências da ONU. Nossa avaliação, da Sempre Viva Organização Feminista (SOF), setor em que milito na Marcha Mundial das Mulheres (MMM) é que, embora não tenha grandes vitórias para o movimento de mulheres, na segunda metade dos anos 1990, as feministas que investiram nesse processo manejaram com um discurso triunfalista, de dizer que estava alcançando as vitórias; por exemplo, na Conferência do Cairo, que foi a conferência sobre população, entrou o tema do aborto, pela primeira vez, em 1994. Só no final dos anos 1990 que a gente consegue recuperar o fôlego, organizando um setor mais crítico ao neoliberalismo. Aqui no Brasil, nós identificamos como duas coisas: primeira, a vinda da campanha da Marcha Mundial das Mulheres para cá…


(…)


Tatiana Merlino – Com relação à lei Maria da Penha, eu queria que você falasse sobre a importância da promulgação da lei e fizesse um balanço desde sua promulgação, em 2006.

Foi em 2006, no segundo mandato do governo Lula. Tem um aspecto da lei Maria da Penha que é bem importante, fruto daquela discussão que prevaleceu no debate dos anos 1990, quando começou a ter em vários países, a partir do modelo da ONU, o tema da violência intrafamiliar. Em vários países da América Latina, o tema da violência doméstica e sexual é tratado como violência intrafamiliar e tira esse aspecto, que para nós é importante, de tratar como a violência contra as mulheres. Então, o primeiro elemento muito importante é que ela posiciona nesse sentido: a violência contra as mulheres. O outro aspecto que eu acho que foi positivo é que o homem que foi denunciado deixa de ser um réu primário. A violência contra as mulheres era considerada uma violência contra os costumes, não contra a pessoa. Então, à medida em que passa a ser considerada um delito contra a pessoa, também trouxe esse elemento de que o homem deixa de ser um réu primário. É claro que ainda falta muito para ser implementada, mas ela deu um passo nesse sentido, de que as mulheres, ao denunciar, o assunto pode continuar sendo levado até o fim. Tem essa questão também das varas. É claro que a lei Maria da Penha, ela sobressai, na parte dela, o aspecto mais punitivo. Não que não tenha que ter punição. Mas, geralmente, quando chega uma denúncia é porque já tem um grau tão grande de construção dessa relação de violência, que a gente fala que essa violência não começa de um dia para o outro. O espancamento não é, em geral, a primeira forma de violência que um homem comete contra uma mulher. Então, a lei prevê as ações de prevenção. São aspectos que não é um problema da lei. A gente tem que impedir que a violência aconteça. É claro que eu estou falando uma coisa muito difícil, porque a violência é o resultado de uma relação de opressão. Mas a gente ainda tem que exigir dos governos, dos conjuntos das instituições, que o tema da violência seja divulgado: que a cada 15 segundos uma mulher é vítima de algum tipo de violência, não quer dizer espancamento.


Tatiana Merlino – Embora haja vários grupos de mulheres atuando em várias frentes, tem algum tema, na sua opinião, que é a pauta mais importante, que mais faz as mulheres sofrerem no Brasil? É a violência doméstica? É o aborto?

Nós, ainda, temos apenas 52 mulheres em cada 100 que está no trabalho assalariado. Então, nós temos muita mulher em relação de dependência econômica. O tema do aborto talvez seja o mais difícil, porque é o mais difícil da gente construir aliados, é o tema que a gente encontra mais resistência. Mas, também, é igualmente difícil, para as mulheres, o esforço para participar do espaço de poder, de como as mulheres são massacradas, cotidianamente, quando nós tentamos ocupar os espaços de poder.


O tema do aborto, em parte da sexualidade, você pode dizer que mudou para quem, como, onde, em que condições? Porque isso é uma coisa que aconteceu nos últimos anos, que a gente pode perceber. Como a gente teve uma certa conquista de direitos, o acesso a esses direitos não foi igual, teve um corte de classe. Nós temos mais desigualdade entre as mulheres. E não só entre as mulheres da burguesia e as mulheres da classe trabalhadora, porque esse abismo sempre foi grande. Mas pensando entre as mais pobres e as mais ricas, a gente construiu mais desigualdade, porque nós temos um pequeno setor que teve acesso à escolaridade, a salários altos. Eu brinco que [a mulher de classe média alta] é quase igual aos homens, se não fosse a violência e o aborto, seria quase igual… Inclusive isso: algumas podem fazer o aborto sem sofrer represálias, mas milhares fazem aborto sofrendo represálias.


Agora, no caso das eleições, em si, nós tivemos um elemento bem ruim, a forma como o debate foi colocado. Primeiro, que não podemos isolar o tema do aborto. O ambiente geral do debate eleitoral foi bastante ruim, despolitizado, no sentido de não entrar no debate real das questões e de retroceder alguns temas. Com certeza, o tema do aborto foi o mais utilizado, inclusive, no caso, com relação à Dilma, porque justamente se esperava ter mais posição favorável para destruir a candidatura dela. Ou seja, foi usada como uma forma manipulatória. Não é que as pessoas estavam querendo discutir o aborto, ou pelo o que ele é, pelo que ele significa na nossa vida.


E eu acho que aí outros elementos que a gente poderia pensar. Primeiro, que o aborto nunca foi muito bem colocado nas eleições. Se vocês olharem, cada eleição tem essa tentativa das igrejas, em particular, da Igreja Católica, das outras também, de colocar o tema, que nas últimas eleições foi solucionado meio assim: no máximo eu digo que sou contra em público e por ali ficou. O que teve de diferente, nesse ano? O primeiro elemento, não digo que mais importante, mas cronologicamente, eu acho que a Marina quando se coloca como uma religiosa e que algumas posições dela, em particular o tema do aborto, e o [tema da] da união civil, tinha a ver com a sua religião, contribui para que esse tema se transforme em um tema da política. E depois a CNBB em agosto, a regional sul faz aquele documento que recupera todos os elementos de aborto vinculados ao PT, seja o que saiu nas conferências de políticas das mulheres, que aí não é só vinculado ao PT. As conferências de políticas das mulheres tem mulheres de todos os partidos, mulheres sem partido, mulheres do governo, mulheres de movimento, também a resolução do PT do Congresso de 2007, que foi a primeira vez que votou no PT uma resolução sobre o aborto em um congresso, foi a primeira vez.


Hamilton Octavio de Souza – E o que tinha sido aprovado?

Foi aprovado a descriminalização do aborto. Eu não me lembro a primeira palavra, se era lutar ou propor a descriminalização do aborto e a regulamentação da sua prática nos serviços públicos. Mas expressa o conteúdo que o movimento de mulheres dá para legalização, que é justamente garantir, porque para nós não interessa só descriminalizar: quem tem dinheiro paga, quem não tem dinheiro… Mas, em um determinado momento, a candidatura do Serra começa a utilizar isso como elemento de campanha e aí foi um momento muito inesperado, porque o Serra vem de um setor do PSDB que nesse assunto do aborto, ninguém esperava isso. Acho que isso foi um elemento. E o PT, de uma certa forma, imagino, também não esperava. Agora, a reação do PT também foi muito ruim. Então, a reação na defensiva, principalmente ali no começo do segundo turno, no desespero, no medo de que vai perder, acabou optando por uma posição cômoda de querer acalmar os ânimos das igrejas e caiu nessa armadilha do discurso religioso, quando eu acho que poderia ter tido uma postura de não aceitar o debate ser feito nestes termos, dizendo: “Não, aqui não está sendo um debate real sobre o aborto, não vamos ficar nesse tipo de coisa, no jogo manipulatório.” E aí vimos uma coisa que eu não me lembro de ter visto: a forma como a religião entra no debate político, [como um] divisor de águas. Mas, também a gente tem que chamar a atenção para o seguinte: esse debate ruim, em relação às mulheres não foi somente em relação ao aborto, já desde o primeiro turno. Simbolicamente, teoricamente e concretamente, nós tínhamos uma boa condição para fazer um debate mais avançado com relação às mulheres e era o que todo mundo nos perguntava. A gente teria a oportunidade de ter um debate sobre a representação política, saindo do campo do masculino, diferente do que nós tivemos. No entanto, nós tivemos duas coisas: uma, a contraofensiva, o tempo todo com argumentos machistas, tentando destruir a campanha da Dilma, não só com o aborto, mas também com a ideia de que ela não tinha pensamento próprio, que ela não tinha capacidade, que ela era um poste, era colocada pelo Lula. Então, por mais que o programa da Dilma era sobre os seus feitos, isso não tinha nenhum efeito. Mas, também uma utilização muito grande do discurso da maternidade, da família. Então, até parece contraditório, você quer a mulher num aspecto máximo do poder do país, que é ser presidenta do país, mas ao mesmo tempo não pode deixar de ser mulher, partindo dos estereótipos do que é ser mulher.


(…)


Então, o que acontece com relação à Dilma, tem um grau de ambiguidade que tem com relação da sociedade: você tem que ser competente, mas não pode deixar de ser feminina… O tempo todo a mulher é tratada com essa ambiguidade: tem que ser boa dona de casa, tem que ser bonita, tem que ser sexy. Então, o tempo todo é essa dualidade. Além da campanha, que tem o tema do aborto, a gente também não pode descontextualizar do geral. A partir de 1995, é interessante que era bem naquele período, começa a se organizar a direita em relação ao aborto, não só no Brasil, mas também na América Latina, mas no Brasil de uma forma forte. Depois, no início dos anos 1990, a grande polêmica do aborto, aqui no Brasil, foi a PEC do Severino, que queria retroceder aquilo que a gente tinha ganhado lá na Constituição. E a outra polêmica foi em relação àquele projeto do Eduardo Jorge, que, na época, regulamentava o serviço de aborto legal, o aborto já previsto no Código Penal.

E não foi aprovado, teve que retirar o projeto, senão ia perder. E depois se resolveu o tema do aborto legal com uma norma técnica, que, inclusive foi organizada ainda no governo Fernando Henrique, quando o Serra era ministro da saúde, e, depois no governo do PT teve alguns aprimoramentos, lá na norma técnica.


Hamilton Octavio de Souza - A norma técnica é o atendimento em determinadas condições, né?

É, atendimento em determinadas condições: estupro e gravidez que ponha em risco a vida da mulher. Então, nesse momento a grande polêmica era sobre isso. Foi bem no final dos anos 1990, teve um caso de uma menina grávida, no Rio [de Janeiro] e outra perto de São José, por estupro, que a Igreja deu casa, enxovalzinho, que era para ela não fazer o aborto. Então, foi quando a Igreja começou a interferir em caso a caso, porque, até então, a gente não tinha isso. Com o passar desses anos, foi aumentando, além dessa interferência, começaram a acontecer coisas, de mulher ser denunciada, depois teve a formação da frente pró-vida, que inclusive tem deputados de todos os partidos. Começou a ter uma articulação forte da direita, inclusive denunciando as mulheres e criminalizando; o caso mais grave foi este da clínica, lá em Mato Grosso do Sul, em Campo Grande, onde “caiu” a clínica, que em princípio disseram que iam indiciar 10 mil mulheres, depois, com o tempo foram indiciadas 2 mil.


Hamilton Octavio de Souza – Qual é a dimensão do aborto no Brasil?

Primeiro, a gente não consegue dimensionar a quantidade de abortos, por motivos óbvios. Os números estimados são definidos a partir do que chega para ser terminado no serviço público e aqueles mecanismos que eles põem de correção. Então, se estima que mais de 1 milhão de abortos, por ano, acontecem no Brasil. Os dados dos SUS, no ano passado, foram 98 mil curetagens por aborto. Estima-se que 20% das mulheres com mais de 18 anos já fizeram pelo menos um aborto na vida. E cinco mulheres por dia. Olha, isso é terrível! Buscam ajuda para fazer aborto, só mulheres vítimas de estupro. Mulheres grávidas por terem sido estupradas, cinco. Essas são, teoricamente, acolhidas no serviço público. Mas, nós temos só 60 serviços no país inteiro. Você imagina quantas mulheres não conseguem. Então, você tem esse número muito grande…


Hamilton Octavio de Souza - Quantos em função de aborto mal feito?

O aborto mal feito é a terceira causa de morte materna. Eu acho que dá por volta de menos de 500 mortes por ano. Mas, o problema maior, além das mortes, porque era morte que poderia ser evitada. Então, a gente trabalha em saúde com a seguinte ideia: uma morte que poderia ser evitada e teve, ela é grave. São todas mortes que poderiam ser evitadas, se o aborto fosse feito em condições seguras. Agora, o grande problema do aborto é que deixa muitas sequelas. Porque, por exemplo, hoje em dia, o que mudou muito com relação ao aborto, a partir dos anos 90, à medida em que as mulheres conheceram o efeito do misoprostol, que a gente chama de citoteque. Houve uma mudança na forma como a grande maioria das mulheres iniciou o aborto, porque antes era ou através de chás, coisas mais venenosas, cáusticas, ou a sonda que elas iam em uma enfermeira ou uma parteira para colocar e provocar hemorragia. Hoje, é através desse medicamento, toma, começa ter o processo de abortamento e vai ao hospital do SUS para poder fazer a curetagem. E o que a gente sabe, é cada vez mais visível: as mulheres que tem dinheiro, pagam. Aqui em São Paulo, pagasse entre R$ 2.500 um aborto em uma clínica. Em outros estados é mais barato. Também tem outras questões em relação ao aborto: a maioria das mulheres que fazem o aborto estão em união consensual. Então, não é esta visão também estereotipada de que o aborto é fruto do desvario. A maioria dos casos é de mulheres que estão em união estável, muitas que usam método. Muitos estudos que estão sendo feitos [mostram que] muitas pessoas que usam mal o método, dizem que usam a pílula, mas que esquecem. Então, a maioria das mulheres que fazem aborto são mulheres que já têm filho, que estão em união estável, não exatamente casamento. Então, é a ideia de que a gravidez realmente acontece quando as pessoas não estão esperando, e é muito mais presente na vida das mulheres do que a gente pode imaginar.


Hamilton Octavio de Souza – E como o movimento coloca hoje a questão: é a descriminalização, a defesa do aborto?

Na verdade, a formulação tem um problema. Há muitos anos, o movimento das mulheres, e, principalmente, nos anos 1990, trabalhou com o aborto como tema de saúde pública, considerando que esse era o lado mais fácil de convencer as pessoas. Eu, particularmente, acho que você pode fazer isso na hora de um discurso eleitoral, para o grande público, até para a justificativa de uma lei, mas para convencer as pessoas, eu estou convencida de que as pessoas têm que estar convencidas de que têm direito [ao aborto]. Um dos projetos que foi base para o movimento no último período, depois da conferência nacional de políticas para as mulheres em 2004, foi a proposta para uma revisão da legislação que criminaliza o aborto. Então, a Secretaria de Políticas para as Mulheres convocou uma comissão tripartite, na época, o congresso, o executivo e a sociedade civil. E dessa comissão se formulou um projeto e esse projeto reconhecia o direito ao aborto sem nenhuma penalidade até 12 semanas e tinha…


Hamilton Octavio de Souza - Como direito da mulher é romper até 12 semanas?

É até 12 semanas. E esse projeto não foi reapresentado na legislatura passada, porque foi da legislatura de 2003 e de 2006. Então, tem essa compreensão. Na luta, nossa, nós temos cada vez mais recuperado, além do tema da saúde, o tema da autonomia das mulheres. O direito à autonomia. Porque, em última instância, não é o direito ao corpo, e sim o corpo como lugar onde a vida se materializa, mas é uma questão da nossa vida e a gente pode decidir sobre a nossa vida. E uma vez eu escutei uma filósofa falando, ela diz assim: “Diferente de pensar que uma mulher que faz aborto é irresponsável, é exatamente ao contrário, é uma mulher extremamente responsável, porque é a mulher que se pergunta se ela está em condições de ter um filho e de garantir as condições de vida, e de criação.” Não estamos falando do aspecto econômico, é do aspecto global da vida. Então, no movimento de mulheres tem cada vez mais voltado esse debate, do direito e da autonomia e de que as mulheres podem decidir sobre a maternidade. E está muito vinculado a duas coisas: nós temos que separar sexualidade de maternidade, que maternidade não é destino, maternidade tem que ser uma opção, tem que ser uma decisão. E, também, dentro de uma visão, é claro que a gente também não está contente que tenha 1 milhão de abortos por ano. Tem que ter menos aborto. Também queremos que as mulheres conquistem autonomia na sexualidade para que a gente tenha cada vez menos gravidez indesejada. Você ter, pelo menos, 1 milhão de gravidezes indesejadas por ano é muito, em outros países têm muito menos.


(…)


Lúcia Rodrigues – A mulher é objetificada nos meios de comunicação. O que nós, mulheres, podemos fazer para reverter isso?

Esse é um aspecto bem complicado, porque não adianta a gente ter só norma. Você se lembra que algumas vezes que o governo Lula teve iniciativas de cima para baixo, aquele manual de direitos humanos, o politicamente correto, depois teve que tirar. Então, na mídia, não adianta só normatizar. Não só porque vira chacota, vira uma coisa formal, que não mexe no imaginário, porque no imaginário brasileiro está que as mulheres gostam de rebolar, que as mulheres gostam de colocar pouca roupa e que isso faz parte, ao invés de isso ser coisa ruim, isso é coisa boa: “mulher bonita pode”. Se a gente não constrói práticas contra-hegemônicas, a gente não tem outras referências de práticas; as referências de práticas são essas. Quando a gente começou a trabalhar com [o tema] da mercantilização, começou a buscar e desconstruir por onde que as meninas incorporavam essa coisa da beleza e da imposição. Por exemplo, a exigência da depilação, de novo, se a gente lutou tanto para não se depilar tanto… É por beleza? Não, de novo, eles não mudam nada, é o mesmo discurso higienista, que associa pêlo à sujeira. Então, você tem que estar depilado para estar limpa, bonita. É muito forte. E também do corpo inadequado. Então, a menstruação, a TPM. Esse corpo está inadequado e esse corpo necessita de intervenção. Porque você é inadequada, por origem. E no capitalismo, ser mulher, é ter que ser bela. Se você não é bela, você não tem o mesmo espaço, você fica preterida. Essa relação com a beleza é muito forte entre as mulheres. As mulheres passam a gostar menos de si quando estão mais velhas, não é a toa que aumenta a depressão, aumenta um monte de doença entre as mulheres, porque a relação consigo mesmo interfere no que vai ser a sua vida, no que vai ser sua saúde, no que vai ser seu bem estar. E a gente passa a gostar menos da gente.


Fonte: Sede de quê?

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