abril 21, 2011

"A democracia e sua tentação: o totalitarismo", por Luciano Oliveira

PICICA: "Pensador da indeterminação por excelência, Lefort, dir-se-ia, prefere continuar suspenso nas próprias dúvidas a ceder à facilidade de dar uma resposta que satisfaça o leitor inseguro e ávido de certezas – que ele próprio não tem. Por vezes, entretanto, ele arrisca-se a ir mais além. É o que acontece quando argumenta, apoiando-se em dados factuais fornecidos pela história da Europa Ocidental, que a democracia vale a pena, que ela é capaz de mudar a sorte dos mais desfavorecidos."

[ Amálgama ]



[ o que segue é um capítulo de O enigma da democracia: O pensamento de Claude Lefort, livro recente do colaborador do Amálgama e amigo Luciano Oliveira ]
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-- Claude Lefort --

por Luciano Oliveira

Por mais de uma vez, Lefort (1924-2010) recusa explicar o surgimento do totalitarismo – numa relação de causa e efeito – como conseqüência de transformações no modo de produção ou, de um modo mais geral, de processos econômicos nas sociedades que o viram surgir. Seu desiderato sempre foi o de “pôr em evidência uma mutação da ordem simbólica.” Ele não se furta, entretanto, vez por outra, de apontar alguns elementos de ordem econômica como possíveis de gerar uma mutação dessa ordem. Em seus termos sempre bem precavidos quando se trata de sugerir algum tipo de determinação, não se trata de “encontrar uma explicação”, mas “demarcar as condições de formação do totalitarismo.” E passa a inventariar algumas:
Quando a insegurança dos indivíduos recrudesce, em conseqüência de uma crise econômica, ou de devastações de uma guerra, quando o conflito entre as classes e os grupos exaspera-se e deixa de encontrar uma resolução simbólica na esfera política, quando o poder parece degradar-se ao nível do real, vindo a aparecer como algo de particular servindo a interesses e apetites de torpe ambição [...], então se desenvolve o fantasma do povo-um, a busca de uma identidade substancial, de um corpo social solidamente preso ao topo, de um poder encarnador, de um Estado liberado da divisão.
Por isso que, no seu último livro, tendo por pano de fundo histórico o desaparecimento do chamado “socialismo real”, escreve com vigor: “O comunismo pertence ao passado; em compensação, a questão do comunismo permanece no âmago do nosso tempo.” Por quê?

Entre outras razões porque no mundo do começo do século XXI, precisamente, a “insegurança dos indivíduos”, sob o influxo desagregador da chamada globalização, recrudesce. Nessas condições, é sempre possível a gestação de um novo “ovo da serpente”. Mas, Lefort insiste, “uma mudança na economia do poder” – nunca uma mudança apenas na “economia” – é necessária para que surja a “forma de sociedade totalitária.” É quando surge a tentação de uma identidade substancial, de um Estado liberado da divisão – para voltar aos seus termos. A democracia, nesse sentido, porta consigo algo como uma fragilidade substancial, porque nela a sociedade tem de suportar o fardo da indeterminação. Tal indeterminação aparece sob diversas formas e em diversos lugares, e um dos exemplos a meu ver mais adequados e ao mesmo tempo mais controvertidos desse traço essencial da democracia é o fato de que se trata de “um regime fundado na legitimidade de um debate sobre o legítimo e o ilegítimo – debate necessariamente sem fiador e sem termo.” Só que essa ausência de fiador e de termo é angustiante. No limite, insuportável, pois ela cauciona de certa forma a injustiça social.

Lefort tem plena consciência dos riscos e das cobranças a que sua concepção de democracia está exposta. Como – se pergunta ele numa de suas frases longas a exigir do leitor uma atenção redobrada –
mensurar o que significa no totalitarismo a denegação da divisão social [...] sem parecer, sem ter medo de me ver eu mesmo legitimar as divisões de fato que caracterizam os regimes democráticos estabelecidos nos quais vivemos? Como fazer entrever a finalidade mortífera do totalitarismo sem justificar as condições de opressão, de desigualdade próprias dos nossos regimes? Como ainda conduzir uma crítica do marxismo que revele tudo o que alimentou o fantasma totalitário sem apagar o que constituía a verdade da crítica da sociedade do seu tempo por Marx?
Pensador da indeterminação por excelência, Lefort, dir-se-ia, prefere continuar suspenso nas próprias dúvidas a ceder à facilidade de dar uma resposta que satisfaça o leitor inseguro e ávido de certezas – que ele próprio não tem. Por vezes, entretanto, ele arrisca-se a ir mais além. É o que acontece quando argumenta, apoiando-se em dados factuais fornecidos pela história da Europa Ocidental, que a democracia vale a pena, que ela é capaz de mudar a sorte dos mais desfavorecidos.

Voltemos ao contexto do aparecimento do seu livro mais lido aqui no Brasil, A Invenção Democrática, no início dos anos 80. Na época, ainda pairava na Europa a ameaça soviética sobre os insurgentes poloneses e na América Latina a repressão das ditaduras militares ainda se abatia sobre os esquerdistas que haviam sonhado com a revolução, a qual, por onde passou, destruiu a chamada “democracia burguesa”. Ainda aí – ainda que esta constatação simplifique, embora não chegue a falsificar, seu pensamento –, trata-se de uma reflexão a favor da chamada democracia formal. Tanto que ele nos convida a voltar “os olhos para os soviéticos, para os poloneses, os húngaros, os tchecos ou os chineses em revolta contra o totalitarismo: são eles que nos ensinam a decifrar o sentido da prática política.” Em relação à América Latina, ele lembra que “a revolução democrática não penetrou ali, ou então, cada vez que começou a se desenvolver, seu curso foi brutalmente invertido.” Com veemência, escreve: “Somos tomados de vertigem quando entrevemos o abismo de morte que a miséria cava na Ásia, na África, na América Latina.” Mas, apesar disso, ele não esconde o seu repúdio ao instrumentalismo típico da cultura de esquerda da época que não hesitava em condenar a democracia formal em nome da revolução, pois, uma vez esta vitoriosa e aniquiladas as liberdades públicas, “haverá apenas a troca de um sistema de dominação por outro.”

Lefort tem assim um apego inafastável às chamadas “liberdades formais”, mesmo que sob sua égide viceje a “divisão social”. Mas é importante ressaltar duas coisas. Em primeiro lugar, Lefort tem um olhar bastante acurado sobre a realidade para perceber que a divisão social – a desunione, como diria o florentino – é um fenômeno bem mais vasto do que o conflito entre capital e trabalho, e que não se refere apenas à divisão entre classes, para usar um termo marxista. Por divisão social, diz ele explicitamente no seu último livro, “eu entendo a divisão dos grupos, mas também das esferas de atividade”. O totalitarismo, como a experiência histórica demonstrou, ao definir-se como uno stato totalitario – a expressão remonta ao fascismo italiano –, a pretexto de acabar com o conflito entre classes, redunda em aniquilar toda a diversidade de que a sociedade é feita.

Em segundo lugar, o apego lefortiano às liberdades formais parece não ser gratuito, pois está ligado à perspectiva – que no caso da Europa Ocidental foi uma experiência concreta – de que tais liberdades não são puramente formais, porque, por onde passaram, provocaram conteúdos concretos: foram elas, afinal, que tornaram “possível as reivindicações que conseguiram fazer evoluir a condição dos homens.” É por isso que, se posso assim dizer, Lefort parece demonstrar uma espécie de “preferência” pelos direitos civis e políticos clássicos em relação aos direitos sócio-econômicos, pois, mesmo que esses deixem de ser garantidos, ou mesmo reconhecidos,
a lesão não será mortal, o processo continua reversível, o tecido democrático é suscetível de ser refeito, não somente graças a circunstâncias favoráveis à melhora da sorte do maior número, mas pelo próprio fato de serem preservadas as condições de protesto.
Estamos aqui no terreno da célebre dicotomia entre direitos civis e políticos de um lado, frutos do liberalismo, e direitos sócio-econômicos de outro, herdeiros das lutas sociais e do próprio pensamento socialista. Ainda que mais atento aos primeiros, é verdade, Lefort como que vê uma relação de complementaridade entre uns e outros, na medida em que sublinha o fato de que foi a existência dos primeiros que tornou possível, pela preservação das condições de protesto, a emergência dos segundos. Nos seus próprios termos, “Tudo se passa como se os novos direitos viessem retrospectivamente incorporar-se ao que foi considerado constitutivo das liberdades públicas.” O problema é quando, apesar de existirem as condições de protesto, a sorte dos miseráveis parece imutável como se ainda vivêssemos numa espécie de ancien régime
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::: O enigma da democracia: O pensamento de Claude Lefort :::
::: Luciano Oliveira ::: Jacintha Editores, 2010, 128 páginas ::: compre :::

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