maio 15, 2015

"Pensamento Nômade". Gilles Deleuze (TERRITÓRIOS DE FILOSOFIA)

PICICA: "Se perguntarmos o que é ou o que vem a ser Nietzsche hoje em dia, sabemos muito bem a quem é preciso se dirigir. É preciso se dirigir aos jovens, que estão lendo Nietzsche, que estão descobrindo Nietzsche. Quanto a nós, já somos muito velhos na maioria aqui. O que é que um jovem descobre atualmente em Nietzsche, que certamente não é aquilo que minha geração descobriu nele, que certamente não era aquilo que as gerações precedentes tinham descoberto? Como é que acontece que jovens músicos de hoje sintam-se ligados a Nietzsche naquilo que fazem, embora não façam absoluta­ mente uma música nietzschiana no sentido em que Nietzsche a fazia? Como é que ocorre que jovens pintores, jovens cineastas sintam-se ligados a Nietzsche? O que acontece, ou seja, como é que eles recebem Nietzsche? A rigor, tudo o que se pode explicar, olhando de fora, é de que maneira Nietzsche exigiu para si mesmo e para seus leitores, contemporâneos e futuros, um certo direito ao contra-senso. Não um direito qualquer, aliás, porque ele tem suas regras secretas, mas um certo direito ao contra-senso a respeito do qual eu gostaria de me explicar logo mais, e que faz com que não se trate de comentar Nietzsche como se comenta Descartes, Hegel. Eu digo a mim mesmo: quem é hoje em dia o jovem nietzschiano? Será aquele que prepara um trabalho sobre Nietzsche? É possível. Ou bem será aquele que, voluntária ou involuntária­ mente, pouco importa, produz enunciados particularmente nietzschianos no decorrer de uma ação, de uma paixão, de uma experiência? Isto também acontece. Pelo que conheço, um dos textos recentes mais belos, mais profundamente nietzschianos, é o texto em que Richard Deshayes escreve: “Viver, não é sobreviver”, exatamente antes de receber uma granada durante uma manifestação. Talvez os dois casos não se excluam. Talvez se possa escrever sobre Nietzsche e depois produzir, no decorrer da experiência, enunciados nietzs­chianos.

Sentimos todos os perigos que nos espreitam nesta ques­tão: o que é Nietzsche hoje? Perigo demagógico (“os jovens conosco”…) Perigo paternalista (conselhos a um jovem leitor de Nietzsche…). E em seguida, sobretudo, perigo de uma sín­tese abominável. Toma-se como aurora da nossa cultura mo­derna a trindade: Nietzsche, Freud, Marx. Pouco importa que todo mundo esteja aqui desarmado de antemão. Marx e Freud talvez sejam a aurora da nossa cultura, mas Nietzsche é claramente outra coisa, ele é a aurora de uma contracultura. É evidente que a sociedade moderna não funciona a partir de códigos. É uma sociedade que funciona sobre outras bases. Ora, se consideramos Marx e Freud, não literalmente, mas o devir do marxismo ou devir do freudismo, vê-se que eles se lançaram paradoxalmente numa espécie de tentativa de recodificação: recodificação pelo Estado, no caso do marxismo (“vocês estão doentes pelo Estado, e serão curados pelo Esta­do”, não será o mesmo Estado) -recodificação pela família (estar doente pela família, curar-se pela família, não a mesma família). É isto que realmente constitui, no horizonte da nossa cultura, o marxismo e a psicanálise, como as duas-burocracias fundamentais, uma pública, outra privada, cujo objetivo é operar bem ou mal uma recodificação daquilo que não cessa de se decodificar no horizonte. O caso de Nietzsche, ao contrário, não é absolutamente este. Seu problema está em outro lugar. Através de todos os códigos, do passado, do presente, do futuro, trata-se para ele de fazer passar algo que não se deixa e não se deixará codificar. Fazê-lo passar num novo corpo, inventar um corpo em que isto possa passar e fluir: um corpo que seria o nosso, o da terra, o do escrito…" 



Pensamento Nômade.

Gilles Deleuze.*

Se perguntarmos o que é ou o que vem a ser Nietzsche hoje em dia, sabemos muito bem a quem é preciso se dirigir. É preciso se dirigir aos jovens, que estão lendo Nietzsche, que estão descobrindo Nietzsche. Quanto a nós, já somos muito velhos na maioria aqui. O que é que um jovem descobre atualmente em Nietzsche, que certamente não é aquilo que minha geração descobriu nele, que certamente não era aquilo que as gerações precedentes tinham descoberto? Como é que acontece que jovens músicos de hoje sintam-se ligados a Nietzsche naquilo que fazem, embora não façam absoluta­ mente uma música nietzschiana no sentido em que Nietzsche a fazia? Como é que ocorre que jovens pintores, jovens cineastas sintam-se ligados a Nietzsche? O que acontece, ou seja, como é que eles recebem Nietzsche? A rigor, tudo o que se pode explicar, olhando de fora, é de que maneira Nietzsche exigiu para si mesmo e para seus leitores, contemporâneos e futuros, um certo direito ao contra-senso. Não um direito qualquer, aliás, porque ele tem suas regras secretas, mas um certo direito ao contra-senso a respeito do qual eu gostaria de me explicar logo mais, e que faz com que não se trate de comentar Nietzsche como se comenta Descartes, Hegel. Eu digo a mim mesmo: quem é hoje em dia o jovem nietzschiano? Será aquele que prepara um trabalho sobre Nietzsche? É possível. Ou bem será aquele que, voluntária ou involuntária­ mente, pouco importa, produz enunciados particularmente nietzschianos no decorrer de uma ação, de uma paixão, de uma experiência? Isto também acontece. Pelo que conheço, um dos textos recentes mais belos, mais profundamente nietzschianos, é o texto em que Richard Deshayes escreve: “Viver, não é sobreviver”, exatamente antes de receber uma granada durante uma manifestação. Talvez os dois casos não se excluam. Talvez se possa escrever sobre Nietzsche e depois produzir, no decorrer da experiência, enunciados nietzs­chianos.

Sentimos todos os perigos que nos espreitam nesta ques­tão: o que é Nietzsche hoje? Perigo demagógico (“os jovens conosco”…) Perigo paternalista (conselhos a um jovem leitor de Nietzsche…). E em seguida, sobretudo, perigo de uma sín­tese abominável. Toma-se como aurora da nossa cultura mo­derna a trindade: Nietzsche, Freud, Marx. Pouco importa que todo mundo esteja aqui desarmado de antemão. Marx e Freud talvez sejam a aurora da nossa cultura, mas Nietzsche é claramente outra coisa, ele é a aurora de uma contracultura. É evidente que a sociedade moderna não funciona a partir de códigos. É uma sociedade que funciona sobre outras bases. Ora, se consideramos Marx e Freud, não literalmente, mas o devir do marxismo ou devir do freudismo, vê-se que eles se lançaram paradoxalmente numa espécie de tentativa de recodificação: recodificação pelo Estado, no caso do marxismo (“vocês estão doentes pelo Estado, e serão curados pelo Esta­do”, não será o mesmo Estado) -recodificação pela família (estar doente pela família, curar-se pela família, não a mesma família). É isto que realmente constitui, no horizonte da nossa cultura, o marxismo e a psicanálise, como as duas-burocracias fundamentais, uma pública, outra privada, cujo objetivo é operar bem ou mal uma recodificação daquilo que não cessa de se decodificar no horizonte. O caso de Nietzsche, ao contrário, não é absolutamente este. Seu problema está em outro lugar. Através de todos os códigos, do passado, do presente, do futuro, trata-se para ele de fazer passar algo que não se deixa e não se deixará codificar. Fazê-lo passar num novo corpo, inventar um corpo em que isto possa passar e fluir: um corpo que seria o nosso, o da terra, o do escrito…

Conhecem-se os grandes instrumentos de codificação. As sociedades não variam tanto, não dispõem de tantos meios de codificação. Conhecem-se três principais: a lei, o contrato e a instituição. Nós os encontramos, por exemplo, muito bem na relação que os homens mantêm ou mantiveram com os livros. Existem livros da lei, nos quais a relação do leitor com o livro passa pela lei. Aliás, nós os denominamos mais particularmente códigos, ou livros sagrados. Em seguida há uma outra espécie de livros que passam pelo contrato, a relação contratual burguesa. É esta a base da literatura leiga e da relação de venda do livro: eu compro, você me dão que ler – uma relação contratual na qual todos, autor, leitor, estão presos. E há ainda outra espécie de livros, o livro político, de preferência revolucionário, que se apresenta como um livro de instituições, sejam presentes ou futuras. Toda espécie de mistura é feita: livros contratuais ou institucionais que são tratados como textos sagrados, etc. É que todos os tipos de codificação estão tão presentes, subjacentes, que os encontramos uns nos outros. Seja um outro exemplo, o da loucura: a tentativa de codificar a loucura é feita de três formas. Primeiramente as formas da lei, ou seja, do hospital, do asilo- é a codificação repressiva, é o confinamento, o antigo confina­mento que será chamado no futuro a tornar-se uma última esperança de salvação, quando os loucos dirão: “Bons os tempos em que nos confinavam, pois hoje em dia se passam coisas piores”. Em seguida houve uma espécie de golpe formidável, que foi o golpe da psicanálise: entendia-se que havia pessoas que escapavam à relação contratual burguesa tal como ela aparecia na medicina, e estas pessoas eram os loucos, porque eles não podiam ser partes contratantes eram juridicamente “incapazes”. O golpe genial de Freud em fazer passar sob a relação contratual uma parte dos loucos, no sentido mais amplo do termo, os neuróticos, e explicar que se podia fazer um contrato especial com eles (donde o abandono da hipnose). Ele é o primeiro a introduzir na psiquiatria, e é nisto finalmente que consiste a novidade psicanalítica, a rela­ção contratual burguesa que até então dela fora excluída. E, em seguida, existem ainda as tentativas mais recentes, cujas implicações políticas e às vezes ambições revolucionárias são evidentes, as tentativas ditas institucionais. Encontra-se ai o triplo meio de codificação: ou bem será a lei, e se não for a lei será a relação contratual, e se não for a relação contratual será a instituição. E sobre estas codificações florescem nossas burocracias.

Diante da maneira pela qual nossas sociedades se decodificam, pela qual os códigos escapam por todos os lados, Nietzsche é aquele que não tenta fazer recodificação. Ele diz: isto ainda não foi longe o bastante, vocês são apenas crianças (“A igualização do homem europeu é o grande processo que não tem de ser freado: deveria ser ainda acelerado”). Ao nível daquilo que escreve e do que pensa, Nietzsche prossegue numa tentativa de decodificação, não no sentido de uma decodificação relativa que consistiria em decifrar os códigos antigos, presentes ou futuros, mas de uma decodificação absoluta -fazer passar algo que não seja codificável, embaralhar todos os códigos. Embaralhar todos os códigos não é fácil, mesmo ao nível da simples escritura e da linguagem. Só vejo semelhança com Kafka, com aquilo que Kafka faz com o alemão, em função da situação lingüística dos judeus de Praga: monta, em alemão, uma máquina de guerra contra o alemão; à força de indeterminação e de sobriedade, ele faz passar sob o código do alemão algo que nunca tinha sido ouvido. Quanto à Nietzsche, ele vive ou se considera polonês em relação ao alemão. Apodera-se do alemão para montar uma máquina de guerra que vai fazer passar algo que é imodificável em alemão. É isto o estilo como política. De um modo mais geral, em que consiste o esforço de um tal pensamento, que pretende fazer passar seus fluxos por debaixo das leis, recusando-as, por debaixo das relações contratuais, des­mentindo-as, por debaixo das instituições, parodiando-as? Volto rapidamente ao exemplo da psicanálise. Em que uma psicanalista tão original quanto Melanie Klein permanece todavia no sistema psicanalítico? Ela mesma o diz muito bem: os objetos parciais dos quais nos fala, com suas explo­sões, seus fluxos, etc., são da ordem do fantasma. Os pacientes trazem estados vividos, intensamente vividos, e Melanie Klein os traduz em fantasmas. Existe aí um contrato, especificamente um contrato: dê-me seus estados vividos, eu lhe de­ volverei fantasmas. E o contrato implica uma troca, de dinheiro e de palavras. A este respeito, um psicanalista como Winnicott mantém-se realmente no limite da psicanálise, por­ que tem o sentimento de que este procedimento não convém mais num certo momento. Há um momento em que não se trata mais de traduzir, de interpretar, traduzir em fantasmas, interpretar em significados ou em significantes, não, não isto. Há um momento em que será necessário partilhar, é preciso colocar-se em sintonia com o paciente, é preciso ir até ele, partilhar seu estado. Trata-se de uma espécie de simpatia, de empatia, ou de identificação? Mesmo assim, isto é certa­ mente mais complicado. O que nós sentimos é antes a necessidade de uma relação que não seria nem legal, nem contratual, nem institucional. Com Nietzsche, é isto. Nós lemos um aforismo, ou um poema de Zaratustra. Ora, materialmente e formalmente, tais textos não são compreendidos nem pelo estabelecimento ou aplicação de uma lei, nem pela oferta de uma relação contratual, nem por uma instauração de institui­ção. O único equivalente concebível seria talvez “estar no mesmo barco”. Algo de pascaliano voltado contra Pascal. Embarcou-se: uma espécie de jangada da Medusa, há bombas que caem à volta, a jangada deriva em direção a riachos sub­terrâneos gelados, ou então em direção a rios tórridos, o Orinoco, o Amazonas, pessoas remam juntas, que não supõem que se amam, que se batem, que se comem. Remar juntos é partilhar, partilhar alguma coisa, fora de qualquer lei, de qualquer contrato, de qualquer instituição. Uma deriva, um movimento de deriva, ou de “desterritorialização”: eu o digo de uma maneira muito nebulosa, muito confusa, já que se trata de uma hipótese ou de uma vaga impressão sobre a ori­ginalidade dos textos nietzschianos. Um novo tipo de livro.

Quais são, pois, as características de um aforismo de Nietzsche, para dar esta impressão? Há uma que Maurice Blanchot evidenciou particularmente em L’Entretien Infini. É a relação com o exterior. Com efeito, quando se abre ao acaso um texto de Nietzsche, é uma das primeiras vezes que não passamos mais por uma interioridade, seja a interiori­dade da alma ou da consciência, a interioridade da essência ou do conceito, ou seja, daquilo que sempre fez o princípio da filosofia. O que faz o estilo da filosofia é o fato de que a relação com o exterior sempre é mediada e dissolvida por uma interioridade, numa interioridade. Nietzsche, ao contrário, funda o pensamento, a escritura, sobre uma relação imediata com o exterior. O que é uma bela pintura ou um desenho muito belo? Há um quadro. Um aforismo também é enquadrado. Mas a partir de que momento se torna belo o que está no quadro? A partir do momento em que se sabe e se sente que o movimento, que a linha que é enquadrada vem de outro lugar, que ela não começa nos limites do quadro. Ela começou acima, ou ao lado do quadro, e a linha atravessa o quadro. Como no filme de Godard, pinta-se o quadro com a parede. Longe de ser a delimitação da superfície pictórica, o quadro é quase o contrário, é o estabelecimento de uma relação imediata com o exterior. Ora, conectar o pensamento ao exterior é o que, ao pé da letra, os filósofos nunca fizeram, mesmo quando falavam de política, mesmo quando falavam de passeio ou de ar puro. Não basta falar de ar puro, falar do exterior para conectar o pensamento diretamente e imediata­ mente ao exterior.

“… Eles chegam como o destino, sem causa, sem razão, sem consideração, sem pretexto, estão aí como o raio, tão terríveis, tão repentinos, tão convincentes, tão “outros” para também se tornarem odiados …”. É o célebre texto de Nietzsche sobre os fundadores de Estados, “estes artistas com olhar de bronze” (Para a Genealogia da Moral, IV, 17). Ou será que é Kafka, o de A Muralha da China? “Impossível chegar a compreender como penetraram até a capital, que está todavia tão longe da fronteira. Entretanto estão ai, e cada manhã parece aumentar seu número (…). Conversar com eles, impossível. Não sabem nossa língua ( …) carnívoros também seus cavalos!”. Dizemos que tais textos são atravessados por um movimento que vem de fora, que não começa na página do livro nem nas páginas precedentes, que não cabe no quadro do livro, e que é absolutamente diferente do movi­mento imaginário das representações ou do movimento abstrato dos conceitos tais como eles acontecem habitual­ mente através das palavras e na cabeça do leitor. Alguma coisa salta do livro, entra em contato com um puro exterior. É isto, eu creio, o direito ao contra-senso para toda a obra de Nietzsche. Um aforismo é um jogo de forças, um estado de forças sempre exteriores umas às outras. Um aforismo não quer dizer nada, não significa nada, e não tem mais signifi­cante do que tem significado. Seriam maneiras de restaurar a interioridade de um texto. Um aforismo é um estado de for­ças, cuja última força, ou seja, ao mesmo tempo a mais recente, a mais atual e a provisória-última, é sempre a mais exterior. Nietzsche o coloca muito claramente: se você quiser saber o que eu quero dizer, encontre a força que dá um sentido, se for preciso um novo sentido ao que eu digo. Conecte o texto a esta força. Desta maneira não há problema de inter­pretação de Nietzsche, há apenas problemas de maquinação: maquinar o texto de Nietzsche, procurar com qual força exte­rior atual ele faz passar alguma coisa, uma corrente de energia. A este respeito, todos nós encontramos o problema colo­cado por certos textos de Nietzsche que têm uma ressonância fascista ou anti-semita… E já que se trata de Nietzsche hoje, devemos reconhecer que Nietzsche inspirou e inspira ainda muitos jovens fascistas. Houve um momento em que era Importante mostrar que Nietzsche era utilizado, desviado, completamente deformado pelos fascistas. Isto foi feito na revista Acéphale, com Jean Walil, Bataille, Klossowski. Mas hoje talvez isto não seja mais um problema. Não é ao nível dos textos que é preciso lutar. Não porque não se possa lutar neste nível, mas porque esta luta não é mais útil. Trata-se antes de encontrar, de assinalar, de reunir as forças exteriores que dão a tal ou tal frase de Nietzsche seu sentido liberador seu sentido de exterioridade. É ao nível do método que s; coloca a questão do caráter revolucionário de Nietzsche: é o método nietzschiano que faz do texto de Nietzsche não mais alguma coisa a respeito da qual seria preciso se perguntar “é fascista, é burguês, é revolucionário em si?” – mas um campo de exterioridade onde se defrontam forças fascistas burguesas e revolucionárias. E se colocarmos deste modo problema, a resposta necessariamente conforme ao método é: encontre a força revolucionária (quem é além-do-homem?). Sempre um apelo a novas forças que vêm do exterior, e que atravessam e recortam o texto nietzschiano no quadro do aforismo. O contra-senso legitimo é isto: tratar o aforismo como um fenômeno à espera de novas forças que venham “subjugá-lo”, ou fazê-lo funcionar, ou então fazê-lo explodir.

O aforismo não é somente relação com o exterior, tem como segunda característica o fato de ser uma relação com o intensivo. E é a mesma coisa. Sobre este ponto Klossowski e Lyotard disseram tudo. Estes estados vividos de que eu falava há pouco, para dizer que não se deve traduzi-los em representações ou em fantasmas, que não se deve fazê-los passar pelos códigos da lei, do contrato ou da instituição, que não se deve converter em moeda, que é preciso ao contrário fazer deles fluxos que nos levam cada vez mais longe, mais para o exterior, é exatamente a intensidade, as intensidades. O estado vivido não é algo subjetivo, ou não o é necessariamente. Não é algo individual. É o fluxo, e a interrupção do fluxo, já que cada intensidade está necessariamente em relação com uma outra de tal modo que alguma coisa passe. É o que está sob os códigos, o que lhes escapa, e o que os códigos querem tradu­zir, converter, transformar em moeda. Mas Nietzsche, com sua escritura de intensidades, nos diz: não troquem a intensidade por representações. A intensidade não remete nem a significados que seriam como a representação de coisas, nem a significantes que seriam como representações de palavras. Então, qual é a sua consistência ao mesmo tempo como agente e como objeto de decodificação? É o que há de mais misterioso em Nietzsche. A intensidade tem algo a ver com os nomes próprios, e estes não são nem representações de coisas (ou pessoas), nem representações de palavras. Coletivos ou individuais, os pré-socráticos, os romanos, os judeus, o Cristo, o Anticristo, Júlio César, Bórgia, Zaratustra, todos estes nomes próprios que passam e retornam nos textos de Nietzsche, não são nem significantes nem significados, mas designações de intensidade, sobre um corpo que pode ser o corpo da terra, o corpo do livro, mas também o corpo sofre­ dor de Nietzsche: todos os nomes da história, sou eu… Há uma espécie de nomadismo, de deslocamento perpétuo de intensidades designadas por nomes próprios, e que penetram umas nas outras ao mesmo tempo em que são vividas sobre um corpo pleno. A intensidade só pode ser vivida em relação com sua inscrição móvel sobre um corpo, e com a exterioridade movente de um nome próprio, e é por isso que o nome próprio é sempre uma máscara, máscara de um operador.

O terceiro ponto é a relação entre o aforismo e o humor e a ironia. Aqueles que lêem Nietzsche sem rir, e sem rir muito, sem rir freqüentemente, e às vezes sem dar gargalha­ das, é como se não lessem Nietzsche. Isto não é verdadeiro somente em relação a Nietzsche, mas em relação a todos os autores que fazem precisamente este mesmo horizonte de nossa contracultura. O que mostra nossa decadência, nossa degenerescência, é a maneira pela qual experimentamos a necessidade de situar a angústia, a solidão, a culpabilidade, o drama da comunicação, todo o trágico da interioridade. Mesmo Max Brod conta como os ouvintes eram tomados pelo riso quando Kafka lia O Processo. E Beckett também é difícil ler sem rir, sem passar de um momento de alegria a outro. O riso, e não o significante. O riso-esquizo ou a alegria revolucionária é o que sobressai dos grandes livros, ao invés de angústias de nosso pequeno narcisismo ou terrores de nossa culpabilidade. Pode-se chamar isso de “cômico do além-do-humano”, ou então “palhaço de Deus”, há sempre uma alegria indescritível que jorra dos grandes livros, mesmo quando eles falam de coisas feias, desesperadoras ou terríveis. Todo grande livro opera já a transmutação e faz a saúde de ama­nhã. Não se pode deixar de rir quando se embaralham os códigos. Se você colocar o pensamento em relação com o exterior, nascem os momentos de riso dionisíaco, é o pensa­ mento ao ar livre. Acontece com freqüência a Nietzsche encontrar-se diante de algo que considera repugnante, ignó­bil, de causar vômito. E isto o faz rir, ele faria mais ainda se fosse possível. Ele diz: mais um esforço, ainda não está no­jento o bastante, ou, então, é formidável como isto é nojento, é uma maravilha, uma obra-prima, uma flor venenosa, enfim, “o homem começa a tornar-se interessante”. Por exemplo, é assim que Nietzsche considera e trata aquilo que chama de a má consciência. Então existem sempre comentadores hegelianos, comentadores da interioridade, que não possuem o senso do riso. Eles dizem: vejam, Nietzsche leva a sério a má consciência, faz dela um momento do devir-espírito da espi­ritualidade. A respeito daquilo que Nietzsche faz da espiritualidade, eles passam por cima porque sentem o perigo. Vê-se pois que, se Nietzsche dá direito a contra-sensos legítimos, há também contra-sensos absolutamente ilegítimos, todos aqueles que se explicam pelo espírito do sério, pelo espírito do pesado, pelo macaco de Zaratustra, ou seja, pelo culto da interioridade. O riso em Nietzsche remete sempre ao movi­mento exterior dos humores e das ironias, e este movimento é o das intensidades, das quantidades intensivas, tal como Klossowski e Lyotard o viram: a maneira pela qual há um jogo de intensidades baixas e intensidades altas, umas nas outras, a maneira pela qual uma intensidade baixa pode minar a mais alta e mesmo ser tão alta quanto a mais alta, e inversamente. É este jogo de escalas intensivas que comanda as subidas da ironia e as quedas do humor em Nietzsche, e que se desenvolve como consistência ou qualidade do vivido em sua relação com o exterior. Um aforismo é uma pura matéria de riso e de alegria. Se não se encontrou aquilo que faz rir num aforismo, qual distribuição de humores e de ironias, e do mesmo modo qual repartição de intensidades, não se encontrou nada.

Existe ainda um último ponto. Voltemos ao grande texto de Para a Genealogia sobre o Estado e os fundadores de impérios: “Eles chegam como o destino, sem causa, sem razão … etc.” Pode-se reconhecer ai os homens da produção dita asiática. Sobre a base de comunidades rurais primitivas, o déspota constrói sua máquina imperial que sobrecodifica o todo, com uma burocracia, uma administração que organiza os grandes trabalhos e se apropria do trabalho excedente (“onde eles aparecem, em pouco tempo há algo de novo, uma engrenagem soberana, que vive, em que partes e funções são delimitadas e determinadas em relação ao conjunto…”). Mas pode-se perguntar também se este texto não reúne duas forças que se distinguem em outros aspectos – e que Kafka por sua vez distinguia e mesmo opunha em A Muralha da China. Pois quando se investiga como as comunidades primitivas segmentárias deram lugar a outras formações de soberania, questão que Nietzsche coloca na segunda dissertação de Para a Genealogia, vê-se que se produzem dois fenômenos estritamente correlatos, mas absolutamente diferentes. É ver­dade que no centro, as comunidades rurais estão presas e fixas à máquina burocrática do déspota com seus escribas, seus padres, seus funcionários; mas na periferia, as comuni­dades entram noutra espécie de aventura, numa outra espécie de unidade desta vez nomádica, numa máquina de guerra nômade, e se decodificam ao invés de se deixarem sobrecodi­ficar. Grupos inteiros que partem, que nomadizam: os arqueólogos nos habituaram a pensai este nomadismo não como um estado primeiro, mas como uma aventura que sobrevém a grupos sedentários, o apelo do exterior, o movi­ mento. O nômade com sua máquina de guerra opõe-se ao déspota com sua máquina administrativa; a unidade nomádica extrínseca se opõe à unidade despótica intrínseca. E todavia eles são de tal modo correlatos ou interpenetrados que o problema do déspota será o de integrar, de interiorizar a máquina de guerra nômade, e o problema do nômade será o de inventar uma administração do império conquistado. Eles não cessam de se opor a ponto mesmo de se confundirem.

O discurso filosófico nasceu da unidade imperial, através de muitos avatares, estes mesmos avatares que nos conduzem das formações imperiais à cidade grega. Mesmo através da cidade grega, o discurso filosófico permanece numa relação essencial com o déspota ou com a sombra do déspota, com o imperialismo, com a administração das coisas e das pessoas (encontraríamos todos os tipos de provas disto no livro de Leo Strauss e de Kojeve sobre A Tirania). O discurso filosófico sempre esteve numa relação essencial com a lei, a instituição, o contrato, que constituem o problema do sobe­rano, e que atravessam a história sedentária das formações despóticas às democracias. O “significante” é realmente o último avatar filosófico do déspota. Ora, se Nietzsche não pertence à filosofia, é talvez porque ele é o primeiro a conce­ber um outro tipo de discurso como uma contrafilosofia. Ou seja, um discurso antes de tudo nômade, cujos enunciados não seriam produzidos por uma máquina racional adminis­trativa, os filósofos considerados como burocratas da razão pura, mas por uma máquina de guerra móvel. É talvez neste sentido que Nietzsche anuncia que uma nova política começa com ele (o que Klossowski denomina o complô contra sua própria classe). Sabe-se bem que em nossos regimes os nôma­des são infelizes: não se recua diante de nenhum meio para fixá-los, eles têm dificuldade para viver. E Nietzsche viveu como um desses nômades reduzidos à sua própria sombra, indo de pensão em pensão. Mas, de outro lado, o nômade não é forçosamente alguém que se movimenta: existem viagens num mesmo lugar, viagens em intensidade, e mesmo his­toricamente os nômades não são aqueles que se mudam à maneira dos migrantes, ao contrário, são aqueles que não mudam, e põem-se a nomadizar para permanecerem no mesmo lugar, escapando dos códigos. Sabe-se bem que o problema revolucionário hoje é o de encontrar uma unidade das lutas pontuais sem recair na organização despótica e burocrática do partido ou do aparelho de Estado: uma máquina de guerra que não reproduzisse um aparelho de Estado, uma unidade nomádica em relação com o exterior, que não reproduzisse a unidade despótica interna. Eis talvez o que é mais profundo em Nietzsche, a medida de sua ruptura com a filo­sofia, tal como ela aparece no aforismo: ter feito do pensa­mento uma máquina de guerra, ter feito do pensamento uma potência nômade. E mesmo se a viagem for imóvel, mesmo se for feita num mesmo lugar, imperceptível, inesperada, sub­terrânea, devemos perguntar quais são nossos nômades de hoje, quem são realmente os nossos nietzschianos?
Discussão.

Claude Vivien: Você disse, Jean-François Lyotard, que é desagradável se deixar fascinar pelo Deus escondido, Deus com maiúscula. Há outras palavras que se escrevem ainda hoje com maiúscula, ou seja, num sentido único, que substituem muito bem Deus, já que as coisas designadas por estas palavras permanecem escondidas. Não nos deixemos pois fascinar pelo que está escondido, mas – e é a minha questão “teológica” ou antes teofânica – não estamos tanto mais livres, hoje, agora, para amar, não para sermos “fascinados” no sentido de Lyotard, não para “fantasmar”, no sentido de Deleuze, para amar pois o que não está escondido, o que é visível, tudo o que nos cai sob os olhos, e em particular estas figuras de reatualização do sensível que se pode chamar de “deusas”, ou “deuses” vivos, que não me parecem ilusões sem futuro?

Jean-François Lyotard: Estamos mais livres do que nunca para amar não somente o que nos cai sob os olhos, mas sob as mãos, sob os pés, sob o nariz … É isto que você chama de “deuses” e “deusas”. Eu chamaria de deuses e deusas, de fato (se quisermos absolutamente denominá-los assim) tudo o que pode cair sob o corpo, sobre o corpo …

Claude Vivien: Quero dizer que esta palavra “teofania” pertence a alguém que não nomearei.

Pierre Klossowski: Creio que Lyotard diz exatamente o que eu disse a respeito de Diana [1]. Mas, quando você rejeitou como se deve a disciplina chamada teologia, pode-se opor a ela uma teologia e pois um politeismo constante, que perturba talvez esta desconstrução da animalidade, sob a própria rela­ção de receptividade que as artes supõem, e em particular a alusão que você fez no fim de sua exposição. Desculpe-me por colocar a questão através do que acaba de ser dito por Deleuze, mas creio que neste momento estamos num empreendimento de desanimalização total que supõe, conseqüentemente, uma fisiologia inteiramente nova, incontrolável, da qual não se pode dizer nada. E talvez as novas pesquisas, ou as novas realizações das quais você fala no final, sejam antecipações desta fisiologia nova. Tudo gira em torno do corpo, de um novo corpo.

Jean-François Lyotard: Mais do que falar de teofonia seria preciso falar daquilo que Nietzsche entendia quando falava de homo natura, que não é o homem natural. Com efeito, talvez esteja ai sobretudo, e somente, esta nova fisiologia. Não há muitos deuses. Parece-me que, quando se diz deus, é ainda excessivo, porque isto implica permanência; ora, nesta “teofania” não há mais permanência. Mesmo os deuses de Epicuro, ainda são demais. Isto ainda não é uma fisiologia suficientemente nova …

Pierre Klossowski: Teofania não é permanência. São instantes, portanto são intensidades. É um outro termo para intensidade.

Jean-François Lyotard: Temo a introdução do theos nesta designação, prefiro os nomes próprios. Os nomes próprios são o verdadeiro plural: o singular indeclinável.

Claude Vivien: Os nomes próprios impedem os deuses ou as deusas vivas? Reciprocamente, os deuses e as deusas vivas impedem os nomes próprios ou os corpos próprios?

Jean-François Lyotard: É preciso separar os nomes próprios e os corpos próprios. Os nomes próprios são o desapa­recimento dos corpos próprios e são também o desaparecimento dos deuses e deusas enquanto corpos próprios. O nome próprio é justamente a perda da apropriação, a perda da propriedade, a perda da permanência. É a singularidade. Por que dizer deuses e deusas? Há isto, este, esta e aqueles, não há nem mesmo deuses e deusas… Há emergências, fanias de intensidades.

Jean-Michel Rey: Primeiramente, uma questão de definição, de informação. Você disse num certo momento, Lyotard, que a desconstrução de uma operação ou de uma prática era uma operação ou uma prática degenerada. O que você entende por isto?

Jean-François Lyotard: Eu disse que ela “poderia sê-lo…”. “Degenerado” pode ser aquilo que Nietzsche designa efetivamente como “aparência de força”, mas que na realidade não é senão esta força que provém da fraqueza, da depressão e do ressentimento.

Jean-Michel Rey: Você disse, num certo momento, “uma economia que seja mais do que uma economia política”, e quando você falou em seguida de economia libi­dinal, creio que é a isto que você se referia. Você disse também que há dois ou três Marx, o que pode ser interessante, e enfim, um pouco mais tarde, que há uma dissociação entre a forma e os pretensos materiais a propósito da arte, e que é a mesma relação que aquela que se encontra em O Capital. Minha questão é sem dúvida ingênua: você estabelece entre estes elementos uma homologia estrutural que se desenrolaria sobre um pano de fundo fenomenológico?

Jean-François Lyotard: O que quis dizer, no domínio musical, é que a obra de Adorno é provavelmente o fim do pensamento negativo, enquanto ela é ao mesmo tempo o que há de mais belo e o que está terminado. É uma tentativa de transferência para a modernidade pela crítica. Quis mostrar que a crítica é não somente uma crítica da sociedade pela obra, mas, de uma maneira análoga, no próprio interior da obra, a crítica daquilo que foi até o presente a forma musical, pela nova forma musical, a de Schönberg, por exemplo, que faz aparecer como puro material o que era a forma antiga. A relação da obra com uma sociedade, ao mesmo tempo na solidão de Schönberg e em sua eficiência política, é análoga­ mente a mesma que aquela que se encontra no interior da obra, entre a nova forma (schönberguiana) e o material musi­cal tal como foi herdado dela. É este, creio, o ponto final do pensamento negativo, ou seja, Adorno. Mas este ponto final é ao mesmo tempo a impossibilidade de fazer a crítica da economia política. Ela é anunciada por Marx e ele não pode fazê-la, porque só acredita fazê-la aplicando-a sobre a descrição do Kapital como metamorfose perpétua, como mors immortalis, uma dialética, ou seja, uma mítica. Talvez seja impossível fazer a crítica da economia política, e temos expe­riência disto com aquilo que se chama capitalismo, precisa­ mente porque o Kapital é ele mesmo a crítica. O que me parece importante, na categoria da economia libidinal, tal como Deleuze a ignora em Freud com má-fé (e que é todavia absolutamente evidente, ainda que aí também, assim como em Marx, esteja sufocada, recalcada pela aplicação de um pensamento negativo, de resto não cristão, no dispositivo analítico) é que se trata de uma pura intensidade, de um puro deslocamento, de um puro nomadismo das intensidades. So­mente se pensarmos isso, não digo que a economia política será feita, mas digo que haverá (e creio que há com efeito) uma espécie de desinvestimento, uma desafecção, ou seja, que os afetos não estarão mais colocados e ligados ai, eles não serão mais pegos na armadilha da negatividade. No fundo, o máximo que um pensamento negativo poderá dar, digamos ao nível das obras, será Schönberg, e talvez o que um pensa­ mento afirmativo (se for ainda um pensamento) poderá dar será antes alguma coisa como Cage. É isto que eu queria dizer: não creio absolutamente que seja sobre fundo fenome­nológico.

Jean-Michel Rey: Uma última questão ainda mais ingê­nua: quais são os representantes literários, atuais ou não, do movimento que você descreveu a partir da música ou da pintura?

Jean-François Lyotard: Não sei, creio que é preciso olhar do lado dos americanos…

Sarah Kofman: Minha primeira questão diz respeito ao pensamento como baixa de intensidade, concepção que você em seguida opôs mais ou menos à concepção de Freud, enquanto que Freud, no Projeto, fala precisamente desta baixa da quantidade de afetos como constitutiva do pensa­ mento. Mas em Para a Genealogia da Moral, a propósito da má consciência, trata-se, penso, muito mais do retorno das pulsões contra si do que de uma baixa das intensidades, pois Nietzsche diz que a força guarda exatamente a mesma violên­cia voltando-se contra ela mesma que quando ela se exerce livremente no exterior. De outro lado, é neste momento que ele situa o nascimento da ficção, da atividade imaginária mais talvez do que do pensamento. Finalmente, que relação você vê em Nietzsche entre a representação (no sentido amplo no qual você emprega esta palavra) e a imaginação? Afinal de contas, os mestres e os artistas de olhar de bronze são, numa certa medida, pensadores! Eles pensam, e talvez não seja ficção.

Jean-François Lyotard: Parece-me que, para lhe responder, seria preciso utilizar o quadro-negro. Seria preciso mos­trar que o pensamento vem de uma baixa num certo local, que os fluxos, as intensidades, os afetos encontram-se dividi­dos, distribuídos. Uma parte dos afetos vai ser bloqueada num dispositivo estável, a muralha da China, se você quiser, os muros deste castelo, se você quiser, as paredes do museu, o enquadramento da cena, dispositivos representativos e, a par­tir desta divisão (que é sempre dupla, ou seja, um primeiro recinto, e no interior dele, um segundo, o da cena, o do quadro tomado como aquilo que vai delimitar e que vai esta­bilizar os fluxos), teremos este famoso retorno ou reviravolta, pois é nestas condições que o sujeito poderá constituir-se como o olho que olha a representação, o espetáculo. No texto em que eu pensava, Nietzsche fala do pensamento como enfraquecimento. Em substância diz: quando estamos na plena intensidade, então é a crueldade (ele emprega o termo) e, quando estamos fatigados, nós nos pomos a pensar. Creio que a fadiga é a constituição dos muros; neste momento, o sujeito só existe na ilusão do dispositivo que, como você vê, é um dispositivo de filtragem. Insisto sobre o fato de que um tal dispositivo só existe enquanto massas importantes de fluxos libidinais e de intensidades estão bloqueadas enquanto muros, e enquanto cenas não transponíveis, como o que vai permitir a representação e a autoconstituição de um sujeito.

Ora, o espantoso é que Freud pensa exatamente assim o fantasmático, a pintura, sempre sob a categoria da teatralidade. Mas a novidade em Freud é que julga más e ilusórias as descargas por imagens, boas as descargas por discursos; no lugar deste dispositivo no qual o sujeito, em sua ilusão, se constitui em face da representação que não é nada mais do que os fluxos, as intensidades, captadas, canalizadas, filtradas e localizadas sobre a cena, o que ele propõe como dispositivo de descarga é uma relação na qual, justamente, o espetáculo deverá desfazer-se em beneficio de um discurso. É ai que a implantação por Freud, de seu dispositivo, apresenta uma ruptura muito violenta (mas talvez eu tenha tendência a superestimar esta ruptura) com o dispositivo representativo tal como ele o vê encarnado no gosto espontâneo do povo de Israel pelo veado de ouro e o gosto dos cristãos pela cerimônia suntuosa, ruptura que vai no sentido de um “você não verá nunca, você nunca representará”, e, no fundo, “nunca será você que falará, você será sempre dito por um outro”, ou seja, por uma crítica que, de minha parte, acredito ser fundamentalmente e inicialmente judaica. Penso que, no caso de Freud, estamos diante de um outro dispositivo que, no fundo, não é mais representativo.

Sarah Kofman: Minha segunda questão diz respeito à modernidade como afirmação, como esboço do além-do-humano e do inumano, e ao que você disse do capital como dissulução afirmativa. No caso de Nietzsche, parece-me que foi simplesmente o cinismo que jamais teve medo de se mostrar a nu. Nietzsche evoca o filisteu que não tem medo de se mostrar a nu porque, aliás, ele tem o apoio da púrpura, como ele disse, de modo que esta famosa força é de fato uma força exterior ao Estado. E é o cinismo mesmo…

Jean-François Lyotard: Não creio que se possa interpretar assim esse texto. Ele implica que, mesmo em relação ao Esta­do (ele o diz quase), ninguém pode mais falar de direito sem rir. Este cinismo é equívoco, ele está sobre o fio da navalha.

Sarah Kofman: Talvez ele seja mais a paródia do afirmativo do que o próprio afirmativo.

Jean-François Lyotard: Sim, mas Nietzsche realmente o considera como algo que é o benefício da modernidade, se não um benefício adquirido, pelo menos um benefício em potencial.

Jean Maurel: Depois de ter oposto a ingenuidade do grito romântico à astúcia nietzschiana, o que é muito profundo e muito interessante, você mostrou um Nietzsche cada vez mais interessado pela tolice. Ora, exatamente sobre este ponto, parece-me que faltou perspicácia a Nietzsche durante muito tempo, e que somente muito tarde é que ele compreendeu que a tolice poderia ser a maior astúcia de todas. Talvez Nietzsche não tenha acertado em relação aos mais idiotas aos “imbecis” do século XIX, e penso que esta falha te uma significação política, ou, se se quiser esta falha talvez se explique pelo isolamento político de Nietzsche, pelo fato de que ele era por demais “alemão”, e que assim não acertou, por exemplo, em relação àquele que publicava Ane no momento em que aparecia a Aurora, entrando paradoxalmente ao mesmo tempo em conjunção com ele [2].

Jean-François Lyotard: Mas ele não deixou de ver a tolice em Flaubert…

Jean Maurel: Segundo certos textos – especialmente em Para além de bem e mal- ele parece ter compreendido que o mais astucioso é aquele que se esconde em seu próprio con­trário, o que não é sem conseqüência do ponto de vista da paródia e da estratégia política.

André-Flécheux: A primeira coisa que me espantou na exposição de Lyotard se refere à questão do texto e da inter­pretação: acreditei compreender que o poder metamórfico está ligado não somente à exclusão da representação, mas à exclusão de uma interpretação que, para ele, é a repetição das estruturas da representação. O problema (um pouco inocente) que me coloco se refere desde então ao estatuto da energia na exposição que ouvi: que relação existe entre a progressão que você faz o conceito de energia sofrer a partir da economia capitalista clássica e o fato de que, de outra parte, você se mantém num conceito de energia, que é enfim herdado da energeia aristotélica, ou seja, ainda empanturrado de teleologia? O que pode significar uma liberação da energética numa época em que reina uma técnica planetária de utilização desta energia? Sobre este ponto, como você responderia à questão de Heidegger sobre o problema do estatuto metafísico da energética na cultura ocidental, quando sua transgressão da energética, a partir de conceitos marxistas, apóia-se ainda sobre uma teleologia implícita?

Uma segunda questão, que articulo com a outra, é a se­guinte: como é possível que, a propósito da arte, você retome finalmente o nível do pensamento nietzschiano que era o do Nascimento da Tragédia? Parece-me que dado o papel que você faz a música exercer, quaisquer que sejam as modalida­des históricas, a arte permanece um ópio no interior de sua interpretação. Não estou certo de que você ultrapasse a meta­física do artista.

Jean-François Lyotard: Suas questões são colocadas a partir de um ponto que me impossibilita qualquer resposta.

André-Flécheux: Isto quer dizer que eu deva ser confi­nado?

Jean-François Lyotard: Antes o contrário …

André-Flécheux: Talvez eu tivesse mais sorte com Gilles Deleuze. O que gostaria de saber, é como ele pensa fazer a economia da desconstrução, ou seja, como ele pensa conten­tar-se com uma leitura monádica de cada aforismo, a partir da empiricidade, e como que do exterior, o que me parece de um ponto de vista heideggeriano, extremamente suspeito. Eu me pergunto se o problema do “já aqui” que a língua, a organização estável, o que você chama de “o déspota”, constituem, permite compreender a escritura de Nietzsche como uma espécie de leitura errática que ela mesma dependeria de uma escritura errática, enquanto Nietzsche aplica a si mesmo o que ele denomina uma autocrítica e que as edições atuais o revelam com um excepcional trabalhador do estilo, para o qual, conseqüentemente, cada aforismo não é um sistema fechado, mas está implícito em toda uma estrutura de reme­tências. Este estatuto de um exterior sem desconstrução segundo você, talvez se ligue ao da energética segundo Lyotard.

Segunda questão, que se articula ainda aqui com a primeira: numa época em que a organização estatal, capitalista, enfim, chamem-na como quiserem, lança um desafio que é finalmente aquilo que Heidegger chama da inspeção pela técnica, você pensa sem rir que o nomadismo, tal como você o descreve, constitui uma resposta séria?

Gilles Deleuze: Se compreendo bem, você diz que há motivos para se suspeitar de mim do ponto de vista heidegge­riano. Alegro-me com isto. Quanto ao método de desconstrução dos textos, vejo bem o que ele é, eu o admiro muito, mas ele não tem nada a ver com o meu. Não me apresento absoluto como um comentador de textos. Um texto, para mim, e apenas uma pequena engrenagem numa prática extra­ textual. Não se trata de comentar o texto através de um método de desconstrução, ou de um método de prática textual, ou de outros métodos, trata-se de ver para que isto serve na prática extratextual que prolonga o texto. Você me pergunta se acredito na resposta dos nômades. Sim, eu creio. Genghis Khan, é alguma coisa. Ele vai ressurgir do passado? Não sei, em todo caso, sob outra forma. Do mesmo modo que o dés­pota interioriza a máquina de guerra nômade a sociedade capitalista não cessa, de interiorizar uma máquina de guerra revolucionária. Não é na periferia (pois não há mais periferia) que se formam novos nômades. Eu perguntava de quais nômades, se necessário imóveis e no mesmo lugar, nossa sociedade é capaz.

André-Fiécheux: Sim, mas você excluiu na sua exposição o que você chamava de interioridade …
Gilles Deleuze: Você joga com a palavra “interiori­dade”.

André-Fiécheux: A viagem no interior?

Gilles Deleuze: Eu disse “viagem imóvel”. Não é uma viagem no interior, é uma viagem sobre o corpo, se for o caso, sobre corpos coletivos.

Robert Sasso: Minha questão se dirige a Lyotard. Por que preferir o tema do esquecimento em Nietzsche ao tema da máscara? Se Klee, na pintura, e se Cage, na música, repre­sentam a estética intensiva, não existe neles um projeto, mesmo para dissolver ou para desestruturar, e, por conseguinte, a memória não é necessária a estes artistas para realizar um projeto, que só pode inscrever-se no tempo? De outro lado, falamos deles, nomeamo-los, eles não passam seu tempo a se fazerem esquecer. Parece-me pois que eles têm necessidade do tempo, com o inconveniente de assumir uma singularidade cuja ação se inscreve no projeto derrisório de uma não-obra, uma singularidade que não se articula mais ao culto da personalidade. Não seria melhor ter a coragem de colocar a más­ cara, e finalmente agir e aparecer sob a forma de gracejos do bufão? Lembro que é um bufão que, no prólogo do Zara­tustra, salta sobre o acrobata e o ultrapassa, ou acredita ultra­ passá-lo. O bufão, o anão, são os avessos, os duplos de Zaratustra. E na medida em que o duplo traz uma máscara, em que é absolutamente caricatural, não se pode dizer que ele suprime a teatralidade, realizando-a até ao absurdo, já que somente o bufão tem coragem de assumir uma figura humana tal que, para ela, não há nem ação, nem maneira séria de ser, e que não se possa nem louvá-la, nem censurá-la, pois nada se pode dizer da máscara, e sob a máscara talvez não haja nada senão outra máscara?

Jean-François Lyotard: Quando você diz: há Klee, há Cage, são nomes, eles não têm obras, têm intenções; temo que, a partir da singularidade, do caso fortuito, você deslize para a individualidade, ou, se quiser, você deslize da intensi­dade para a intenção. A questão é saber se é possível evitar este deslizamento. E você responde, parece-me, que é impos­sível, porque há sempre uma máscara que é bufão, e máscara de um anão. Se desconfiei da palavra “máscara” é exatamente porque, sob certos aspectos, nada está escondido. Per­manecemos na categoria da máscara e da teatralidade, não se deixa a categoria da representação, ou seja, um certo tipo de bloqueio e de filtragem das intensidades. Quando Nietzsche fala dos grandes nomes da História, não penso que os consi­dere como máscaras; são antes pontos de intensidade, e, sob certos aspectos, não representam nada, no sentido pleno do ter­mo. Você mesmo disse, uma máscara esconde alguma coisa, e esta mesma coisa esconde uma outra ainda; então, só se renova a teatralidade e a representação; no fundo, isto não é nada mais do que o neoniilismo, e creio que Nietzsche quer dizer algo diferente: que nada está escondido, que tudo está aí en­quanto metamorfose intensa, e que talvez possamos nos curar do niilismo e mesmo do neoniilismo, ou seja, da máscara.

Robert Sasso: Sem ser niilista, Nietzsche ri, e eu pensava neste texto significativo: “Para o homem espiritual e que olhou alguma vez por detrás das máscaras, sabendo olhá-las, que compreendeu o quanto de um modo geral tudo é más­ cara, este espetáculo lhe inspira com razão o melhor humor do mundo”.

Nieke Taat: Gilles Deleuze, se eu o compreendi bem, você opõe o riso, o humor e a ironia à má consciência. Você estaria de acordo que rir de Kafka, de Beckett, de Nietzsche não exclui chorar por estes escritores, desde que as lágrimas não sejam as que jorram de uma fonte interior ou interiorizada, mas simplesmente uma produção de fluxos na superfí­cie do corpo?

Gilles Deleuze: Certamente você tem razão.

Nieke Taat: Ainda uma outra questão. Quando você opõe o humor e a ironia à má consciência, você não os distin­gue mais um do outro, como você fazia na Lógica do Sentido, onde um era de superfície e outro de profundidade. Você não teme que a ironia possa estar perigosamente próxima da má consciência?

Gilles Deleuze: Eu mudei. A oposição superfície-pro­fundidade não me preocupa mais em absoluto. O que me interessa agora são as relações entre um corpo pleno, um corpo sem órgãos, e os fluxos que fluem.

Nieke Taat: Isto não excluiria mais o ressentimento, neste caso?

Gilles Deleuze: Oh, sim!
Notas.

  1. Trata-se do ensaio de Klossowski: Le Bain de Diane. Éditions Pauvert, Paris, 1956. (Nota da Organizadora).
  2. Jean Maurel refere- e aqui a Victor Hugo. Aliás, neste mesmo Colóquio, ele apresentou uma comunicação com o título “Hugo-Nietzsche, metáfora impossível”, onde pretendia estabelecer um paralelo entre os dois escritores (N. da Organizadora).
*A versão em língua portuguesa do texto foi originalmente publicado em: DELEUZE, Gilles. O Pensamento Nômade. In: MARTON, Scarlett (org.). Nietzsche Hoje? Colóquio de Cerisy. São Paulo: Brasiliense, 1985. A tradução da obra foi realizada por Sônia Salzstein Goldberg e Milton Nascimento.

Fonte: Territórios de Filosofia

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