PICICA: "Se fosse o caso de fornecer uma analogia
histórica para a situação atual do Brasil, talvez o melhor a fazer seria
voltar os olhos para a Argentina dos anos 1970. De certa forma, não há
nada mais parecido com o atual governo Dilma do que a Argentina de
Isabelita Perón. Dilma transformou-se em uma Isabelita Perón do Cerrado."
Análise/Vladimir Safatle
Frente de esquerda para quê?
por Vladimir Safatle
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publicado
28/05/2015
Não é a falta de direção que acomete a ala progressista brasileira. É a falta de coragem, o que é muito mais grave
José Cruz/ Agência Brasil
Se fosse o caso de fornecer uma analogia
histórica para a situação atual do Brasil, talvez o melhor a fazer seria
voltar os olhos para a Argentina dos anos 1970. De certa forma, não há
nada mais parecido com o atual governo Dilma do que a Argentina de
Isabelita Perón. Dilma transformou-se em uma Isabelita Perón do Cerrado.
Uma presidenta refém de seus operadores
políticos, impotente diante da dissolução do acordo peronista entre
setores da esquerda e setores conservadores em torno da figura de seu
finado marido, Juan Domingo Perón, Isabelita foi a figura mais
bem-acabada do esgotamento do ciclo de acordos, avanços e paralisias que
marcou o peronismo. Ao se deixar guiar pelos setores mais conservadores
do peronismo, Isabelita parecia uma morta-viva, a encarnação de um
tempo que já acabara, mas ninguém sabia como terminar.
Agora, imaginem que estamos
na Argentina dos anos 1970 e Perón não morreu. Como um fantasma, ele
volta para tentar organizar a oposição contra o governo que ele mesmo
elegeu, federando as vozes dos descontentes com o governo criado por ele
mesmo e para o qual indicou vários ministros. Não, algo dessa natureza
não poderia acontecer na Argentina. Algo assim só pode ocorrer no
Brasil. Pois não é isso o que estamos vendo com um Lula reconvertido a
arauto da “frente de esquerda” juntamente com o resto do que ainda tem
capacidade de formulação no PT? O mesmo PT que, em um dia, vai à
televisão para afirmar seu compromisso com a defesa dos direitos
trabalhistas para, no dia seguinte (vejam, literalmente no dia seguinte)
votar em peso a favor de um pacote de medidas que visam “ajustar” a
economia não exatamente taxando lucros bancários exorbitantes, mas
diminuindo os mesmos direitos trabalhistas que defendera 24 horas antes.
Nesse contexto, o que pode ser uma frente
de esquerda a não ser a última capitulação da esquerda brasileira à sua
própria impotência? Ou, antes, o reconhecimento tácito de que a
esquerda brasileira só pode oferecer o espetáculo deprimente de
discursos esquizofrênicos divididos entre o reino das boas intenções e a
dureza das decisões no “mundo real”? Acreditar que aqueles que nos
levaram ao impasse serão os mesmos capazes de nos tirar de tal situação é
simplesmente demonstrar como a esquerda brasileira vive de fixações em
um passado que nunca se realizou, que nunca foi efetivamente presente. É
mostrar ao País que a esquerda não tem mais nada a oferecer de
realmente novo e diferente do que vimos.
Se a esquerda quiser ter alguma razão de existência (pois é
disso que se trata), ela deve começar por fazer uma rejeição clara do
modelo que foi aplicado no Brasil na última década, seja no campo
político, seja no campo econômico. O modelo lulista não chegou a seu
esgotamento por questões exteriores, pressão da mídia ou inabilidades de
negociação da senhora Dilma. Ele se esgotou por suas contradições
internas e quem o criou não é capaz de criar nada de distinto do que foi
feito.
Insistiria ainda em como é
falsa a ideia de que a esquerda brasileira está de joelhos sem saber o
que fazer. Há anos, vários setores progressistas têm alertado para o
impasse que agora vivemos. Há anos, várias pautas foram colocadas em
circulação, entre elas a revolução tributária que taxe a renda e libere a
taxação sobre o consumo, a democracia direta com poder de deliberação,
veto e gestão, o combate à especulação imobiliária através de leis que
limitem a propriedade de imóveis, a reforma agrária, a diminuição da
jornada de trabalho, a autogestão de fábricas e locais de trabalho, o
salário máximo, o casamento igualitário, as leis radicais de defesa da
ecologia, o fim da política de encarceramento sistemático, a exposição
da vida financeira de todos os que ocupam cargos de primeiro e segundo
escalão, a punição exemplar da corrupção, o fim do monopólio da
representação política para partidos. Não é a falta de direção que
acomete a esquerda brasileira. É a falta de coragem, o que é muito mais
grave.
- Vladimir Safatle
- Professor da Faculdade de Filosofia da USP, é autor do livro "A esquerda que não teme dizer seu nome"
Fonte: Carta Capital
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