maio 24, 2015

Geopolítica da Cafetinagem. Por Suely Rolnik (Territórios de Filosofia)

 Geopolítica da Cafetinagem.

Suely Rolnik.*

Fortes ventos críticos têm agitado o território da arte, desde o início da década de 1990. Com diferentes estratégias, das mais panfletárias e distantes da arte às mais contundentemente estéticas, tal movimentação dos ares do tempo tem, como um de seus principais alvos, a política que rege os processos de subjetivação – especialmente o lugar do outro e o destino da força de criação – própria do capitalismo financeiro que se instalou no planeta a partir do final dos anos 1970. O enfrentamento deste campo problemático impõe a convocação de um olhar transdisciplinar, já que estão aí imbricadas inúmeras camadas da realidade, no plano tanto macropolítico (fatos e modos de vida em sua exterioridade formal, sociológica), quanto micropolítico (forças que agitam a realidade, dissolvendo suas formas e engendrando outras, num processo que envolve o desejo e a subjetividade).

No Brasil, curiosamente este debate só se esboça a partir da virada do século, com uma parcela da nova geração de artistas que começa a ter expressão pública naquele momento, organizando-se freqüentemente nos assim chamados “coletivos”. Mais recente ainda, é a articulação do movimento local com a discussão levada há muito mais tempo fora do país. Hoje, este tipo de temática começa inclusive a ser incorporado ao cenário institucional brasileiro, na esteira do que vem ocorrendo fora do país, onde este movimento tem se transformado em “tendência” no circuito oficial. Tal incorporação, como veremos, diz respeito ao lugar que ocupa a arte nas estratégias do capitalismo financeiro.

Algumas perguntas se colocam diante da emergência deste tipo de temática no território da arte: o que questões como essas vem fazer aí? Porque elas tem sido cada vez mais recorrentes nas práticas artísticas? E no Brasil, porque elas só aparecem agora? E qual o interesse das instituições em incorporá-las? Vou esboçar, aqui, algumas vias de prospecção micropolítica, esperando que elas possam contribuir para o enfrentamento destas perguntas.

Antes de partir para o traçado desta cartografia cabe lembrar que o surgimento de uma questão se dá sempre a partir de problemas que se apresentam num dado contexto, tal como atravessam nossos corpos, provocando uma crise de nossas referências. É o mal-estar da crise que desencadeia o trabalho do pensamento – processo de criação que pode ser expresso sob forma teórico-verbal, mas também plástica, musical, cinematográfica, etc. ou simplesmente existencial. Seja qual for o canal de expressão, pensamos/criamos porque algo de nossas vidas nos força a fazê-lo para dar conta daquilo que está pedindo passagem em nosso dia a dia – nada a ver com a noção de “tendência”, própria da lógica midiática e seu princípio mercadológico. Se entendermos desta perspectiva para que serve pensar, a insistência neste tipo de temática nos indica que a política de subjetivação, de relação com o outro e de criação cultural está em crise e que, com certeza, vem se operando uma mutação nestes campos. A especificidade da arte enquanto modo de expressão e, portanto, de produção de linguagem e de pensamento é a invenção de possíveis – estes ganham corpo e se apresentam ao vivo na obra. Daí o poder de contágio e de transformação de que é portadora a ação artística. É o mundo que está em obra por meio desta ação. Não há então porque estranhar que a arte se indague sobre o presente e participe das mudanças que se operam na atualidade.

 Em busca da vulnerabilidade

Um das buscas que tem movido especialmente as práticas artísticas é a da superação da anestesia da vulnerabilidade ao outro, própria da política de subjetivação em curso. É que a vulnerabilidade é condição para que o outro deixe de ser simplesmente objeto de projeção de imagens pré-estabelecidas e possa se tornar uma presença viva, com a qual construímos nossos territórios de existência e os contornos cambiantes de nossa subjetividade. Ora, ser vulnerável depende da ativação de uma capacidade específica do sensível, a qual esteve recalcada por muitos séculos, mantendo-se ativa apenas em certas tradições filosóficas e poéticas, que culminaram nas vanguardas culturais do final do século XIX e início do século XX, cuja ação propagou-se pelo tecido social ao longo do século XX. A própria neurociência, em suas pesquisas recentes, comprova que cada um de nossos órgãos dos sentidos é portador de uma dupla capacidade: cortical e subcortical [1].

A primeira corresponde à percepção, a qual nos permite apreender o mundo em suas formas para, em seguida, projetar sobre elas as representações de que dispomos, de modo a lhes atribuir sentido. Esta capacidade, que nos é mais familiar, é pois associada ao tempo, à história do sujeito e à linguagem. Com ela, erguem-se as figuras de sujeito e objeto, claramente delimitadas e mantendo entre si uma relação de exterioridade. Esta capacidade cortical do sensível é a que permite conservar o mapa de representações vigentes, de modo que possamos nos mover num cenário conhecido em que as coisas permaneçam em seus devidos lugares, minimamente estáveis.

Já a segunda capacidade, subcortical, que por conta de sua repressão histórica nos é memos conhecida, nos permite apreender o mundo em sua condição de campo de forças que nos afetam e se fazem presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. O exercício desta capacidade está desvinculado da história do sujeito e da linguagem. Com ela, o outro é uma presença viva feita de uma multiplicidade plástica de forças que pulsam em nossa textura sensível, tornando-se assim parte de nós mesmos. Dissolvem-se aqui as figuras de sujeito e objeto, e com elas aquilo que separa o corpo do mundo. Desde os anos 1980, num livro que acaba de ser reeditado [2], chamei de “corpo vibrátil” esta segunda capacidade de nossos órgãos dos sentidos em seu conjunto. É nosso corpo como um todo que tem este poder de vibração às forças do mundo.

Entre a vibratibilidade do corpo e sua capacidade de percepção há uma relação paradoxal, já que se trata de modos de apreensão da realidade que obedecem a lógicas totalmente distintas e irredutíveis. É a tensão deste paradoxo que mobiliza e impulsiona a potência do pensamento/criação, na medida em que as novas sensações que se incorporam à nossa textura sensível são intransmissíveis por meio das representações de que dispomos. Por esta razão elas colocam em crise nossas referências e impõem a urgência de inventarmos formas de expressão. Assim, integramos em nosso corpo os signos que o mundo nos acena e, através de sua expressão, os incorporamos a nossos territórios existenciais. Nesta operação se restabelece um mapa de referências compartilhado, já com novos contornos. Movidos por este paradoxo, somos continuamente forçados a pensar/criar, conforme já sugerido. O exercício do pensamento/criação tem, portanto, um poder de interferência na realidade e de participação na orientação de seu destino, constituindo assim um instrumento essencial de transformação da paisagem subjetiva e objetiva.

O peso de cada um destes dois modos de conhecimento sensível do mundo, bem como a relação entre eles é variável. Ou seja, varia o lugar do outro e a política de relação que com ele se estabelece. Esta define, por sua vez, um modo de subjetivação. Sabe-se que políticas de subjetivação mudam com as transformações históricas, pois cada regime depende de uma forma específica de subjetividade para sua viabilização no cotidiano de todos e de cada um. É neste terreno que um regime ganha consistência existencial e se concretiza. Daí podermos falar em “políticas” de subjetivação. No entanto, no caso específico do neoliberalismo, a estratégia de subjetivação, de relação com o outro e de criação cultural adquire uma importância essencial, pois ganha um papel central no próprio princípio que rege o capitalismo em sua versão contemporânea. É que é, fundamentalmente, das forças subjetivas, especialmente as de conhecimento e criação, que este regime se alimenta, a ponto de ter sido qualificado mais recentemente como “capitalismo cognitivo” ou “cultural”. [3] De posse destas balizas, posso agora propor uma cartografia das mudanças que tem levado a arte a colocar esse tipo de questão. Tomarei como ponto de partida os anos 1960/70.

Nasce uma subjetividade flexível

Até o início dos anos 1960 estávamos sob regime fordista e disciplinar que atingira seu ápice no american way of life triunfante no pós-guerra, no qual reinava na subjetividade a política identitária e sua recusa do corpo vibrátil – dois aspectos inseparáveis, porque só na medida em que anestesiamos nossa vulnerabilidade é que podemos manter uma imagem estável de nós mesmos e do outro, ou seja uma identidade. Caso contrário, somos constantemente levados a redesenhar os contornos de nós mesmos e de nossos territórios de existência. Até aquele período, a imaginação criadora operava principalmente esgueirando-se pelas margens. Este tempo encerrou-se nos anos 1960/70 como resultado dos movimentos culturais que problematizaram o regime em curso e reivindicaram “a imaginação no poder”. Tais movimentos colocaram em crise o modo de subjetivação então dominante, arrastando junto com seu desmoronamento toda a estrutura da família vitoriana em seu apogeu hollywoodiano, esteio do regime que naquele momento começa então a perder hegemonia. Cria-se uma “subjetividade flexível”[4], acompanhada de uma radical experimentação de modos de existência e de criação cultural, para implodir, no coração do desejo, o modo de vida “burguês”, sua política identitária, sua cultura e, evidentemente, sua política de relação com a alteridade. Nesta contracultura, criam-se formas de expressão para aquilo que indica o corpo vibrátil afetado pela alteridade do mundo, dando conta das problemáticas de seu tempo. As formas assim criadas tendem a veicular a incorporação pela subjetividade das forças que agitam o seu entorno. O advento de tais formas é indissociável de um devir-outro de si mesmo. E mais, elas são o fruto de uma vida pública, no sentido forte: a construção coletiva da realidade, que se faz continuamente a partir das tensões que desestabilizam as cartografias em uso.

Hoje estas mudanças se consolidaram. O cenário de nossos tempos é outro: não estamos mais sob regime identitário, a política de subjetivação já não é a mesma. Dispomos todos de uma subjetividade flexível e processual tal como foi instaurada por aqueles movimentos – e nossa força de criação em sua liberdade experimental não só é bem percebida e acolhida, mas é inclusive insuflada, celebrada e freqüentemente glamourizada. Mas há um porém, e que não é nem um pouco negligenciável: hoje, o principal destino desta flexibilidade subjetiva e da liberdade de criação que a acompanha não é a invenção de formas de expressividade para as sensações, indicadoras dos efeitos da existência do outro em nosso corpo vibrátil. Não é absolutamente esta a política de criação de territórios – e, implicitamente, de relação com o outro –, que predomina em nossa contemporaneidade: o que nos guia nesta empreitada, em nossa flexibilidade pós-fordista, é a identificação quase hipnótica com as imagens de mundo veiculadas pela publicidade e pela cultura de massa. Ora, independentemente de seu estilo ou público-alvo, tais imagens são invariavelmente portadoras da mensagem de que existiriam paraísos, que agora eles estão neste mundo e não num além dele e, sobretudo, que alguns teriam o privilégio de habitá-los. Mais do que isso, veicula-se a idéia de que podemos ser um destes VIPs, bastando para isso investirmos toda nossa energia vital – de desejo, de afeto, de conhecimento, de intelecto, de erotismo, de imaginação, de ação, etc. – para atualizar em nossas existências estes mundos virtuais de signos, através do consumo de objetos e serviços que os mesmos nos propõem. Um novo élan para a idéia de paraíso das religiões judaico-cristãs, a qual pressupõe uma recusa da vulnerabilidade ao outro e das turbulências que esta traz e, mais ainda, um menosprezo pela fragilidade que necessariamente daí decorre. Em outras palavras, a idéia ocidental de paraíso prometido corresponde a uma recusa da vida em sua natureza imanente de impulso de criação contínua. Em sua versão terrestre, o capital substituiu Deus na função de fiador da promessa, e a virtude que nos faz merecê-lo passou a ser o consumo: este constitui o mito fundamental do capitalismo avançado. Diante disso, é no mínimo equivocado considerar que carecemos de mitos na contemporaneidade: é exatamente através de nossa crença no mito religioso do neoliberalismo, que os mundos-imagem que este regime produz tornam-se realidade concreta em nossas próprias existências.

A subjetividade flexível entrega-se ao cafetão

Em outras palavras, o “capitalismo cognitivo” ou “cultural”, inventado justamente como saída para a crise provocada pelos movimentos dos anos 1960/70, incorporou os modos de existência que estes inventaram e apropriou-se das forças subjetivas, em especial da potência de criação que então se emancipava na vida social, a colocando de fato no poder. Entretanto, hoje sabemos que se trata aí de uma operação micropolítica que consiste em fazer desta potência, o principal combustível de sua insaciável hipermáquina de produção e acumulação de capital, a ponto de podermos falar de uma nova classe de trabalhadores que alguns autores chamam de “cognitariado” [5]. É esta força, assim cafetinada, que com uma velocidade exponencial vem transformando o planeta num gigantesco mercado e, seus habitantes, em zumbis hiperativos incluídos ou trapos humanos excluídos – dois pólos entre os quais se perfilam os destinos que lhes são acenados, frutos interdependentes de uma mesma lógica. Esse é o mundo que a imaginação cria em nossa contemporaneidade. É de se esperar que a política de subjetivação e de relação com o outro que predomina neste cenário seja das mais empobrecidas.

Atualmente, passado quase três décadas, já nos é possível perceber esta lógica do capitalismo cognitivo operando na subjetividade. No entanto, no final dos anos 1970, quando teve início sua implantação, a experimentação que vinha se fazendo coletivamente nas décadas anteriores, a fim de emancipar-se do padrão de subjetividade fordista e disciplinar, dificilmente podia ser distinguida de sua incorporação pelo novo regime. A conseqüência desta dificuldade é que muitos dos protagonistas dos movimentos das décadas anteriores caíram na armadilha. Deslumbrados com o entronamento de sua força de criação e de sua atitude transgressiva e experimental – até então estigmatizadas e confinadas na marginalidade –, e fascinados com o prestígio de sua imagem na mídia e com os polpudos salários recém-conquistados, entregaram-se voluntariamente à sua cafetinagem. Muitos deles tornaram-se os próprios criadores e concretizadores do mundo fabricado para e pelo capitalismo nesta sua nova roupagem.

Esta confusão decorre sem dúvida da política de desejo própria à cafetinagem das forças subjetivas e de criação. Um tipo de relação de poder que se dá basicamente por meio do feitiço da sedução. O sedutor convoca no seduzido uma idealização que o sidera: este último identifica-se então com o agressor e a ele se submete, impulsionado por seu próprio desejo, na esperança de ser digno de pertencer a seu mundo. Só recentemente esta situação vem se tornando consciente, o que tende a levar à quebra do feitiço. Isto transparece nas diferentes estratégias de resistência individual e coletiva que se avolumam nos últimos anos, por iniciativa, sobretudo, de uma nova geração que não se identifica em absoluto com o modelo de existência proposto e se dá conta de sua manobra. As práticas artísticas, por sua própria natureza de expressão das problemáticas do presente tal como atravessam o corpo, não poderiam permanecer indiferentes a este movimento. Pelo contrário, é exatamente por esta razão que estas questões emergem na arte desde o início dos anos 1990, como mencionado no início. Com diferentes procedimentos, tais estratégias vêm realizando um êxodo do campo minado que se situa entre as figuras opostas e complementares de subjetividade-luxo e subjetividade-lixo, campo onde se confinam os destinos humanos no planeta do capitalismo globalizado.

Ferida rentável

Mas a dificuldade de resistir à sedução da serpente em sua versão contemporânea, própria do paraíso neoliberal, agrava-se mais ainda em países da América Latina e da Europa do Leste que, como no Brasil, encontravam-se sob regimes totalitários no momento da instalação do capitalismo financeiro. Não esqueçamos que a abertura democrática destes países, que se deu ao longo dos anos 1980, deve-se em parte à chegada do regime pós- fordista para cuja flexibilidade, a rigidez dos sistemas totalitários constituía um estorvo.

É que se abordarmos os regimes totalitários não em sua face visível, macropolítica, mas sim em sua face invisível, micropolítica, constaremos que o que caracteriza tais regimes é o enrijecimento patológico do princípio identitário. Isto vale tanto para totalitarismos de direita, quanto de esquerda, pois do ponto de vista das políticas de subjetivação tais regimes não diferem. A fim de se manterem no poder, não se contentam em ignorar as expressões do corpo vibrátil, ou seja as formas culturais e existenciais engendradas numa relação viva com o outro e que desestabilizam continuamente as cartografias vigentes. Mesmo porque seu próprio advento constitui justamente uma reação violenta à desestabilização, quando esta ultrapassa um limiar de tolerabilidade para as subjetividades mais servilmente adaptadas ao status quo; para estas, tal limiar não convoca a urgência de criar, mas ao contrário a de preservar a ordem estabelecida a qualquer preço. Destrutivamente conservador, o regime totalitário vai mais longe do que a simples desconsideração das expressões do corpo vibrátil: empenha-se obstinadamente em desqualificá-las e humilhá-las até que a força de criação, da qual tais expressões são o produto, esteja a tal ponto marcada pelo trauma deste terrorismo vital que ela acabe por bloquear-se, assim reduzida ao silêncio. Um século e meio de psicanálise nos terá mostrado que o tempo de enfrentamento e elaboração de um trauma deste porte pode estender-se por trinta anos [6].

Não é difícil imaginar que o encontro destes dois regimes torna o cenário ainda mais vulnerável aos abusos da cafetinagem: em sua penetração em contextos totalitários, o capitalismo cultural tirou vantagem do passado experimental, especialmente ousado e singular nestes países, mas também e sobretudo das feridas das forças de criação resultantes dos golpes que haviam sofrido. O novo regime apresenta-se aí não só como o sistema que acolhe e institucionaliza o princípio de produção de subjetividade e de cultura dos movimentos dos anos 1960 e 70, como foi o caso nos EUA e nos países da Europa Ocidental. Nos países sob ditadura, ele ganha um plus de poder de sedução: sua aparente condição de salvador que vem libertar a energia de criação de seu jugo, curá-la de seu estado debilitado, permitindo-lhe reativar-se e voltar a se manifestar. Se bem o poder via sedução, próprio do governo mundial do capital financeiro, é mais light e sutil do que a mão pesada dos governos locais comandados por Estados militares que os antecederam, nem por isso são menos destrutivos seus efeitos, embora com estratégias e finalidades inteiramente distintas. É de se esperar, portanto, que a somatória destes dois fatores históricos, ocorrida nestes países, tenha agravado consideravelmente o estado de alienação patológica da subjetividade, especialmente na política que rege a relação com o outro e o destino de sua força de criação.

Know how antropofágico

 Se focarmos a lente micropolítica no Brasil, encontraremos uma situação mais específica ainda. É que há um traço singular da contracultura tal como se deu neste país que diz respeito a um revival da Antropofagia nos anos 1960/70, que aparece em movimentos culturais como o Tropicalismo, tomado em seu sentido mais amplo [7]. O que faz reativar esta herança é, sem dúvida, o fato de que a convocação das marcas desta tradição inscritas em nosso corpo traz o respaldo necessário para sustentar a criação de uma subjetividade flexível e a conquista de uma liberdade de experimentação que se constituíam naquele momento. Redescobre-se na Antropofagia, como já o havia proposto o próprio Oswald de Andrade, um “programa de reeducação da sensibilidade” que pode funcionar como uma “terapêutica social para o mundo moderno” [8].

De fato, como todas as vanguardas culturais daqueles anos, o espírito visionário dos modernistas brasileiros apontou criticamente, já nos anos 1920, os limites das políticas de subjetivação, de relação com o outro e de produção de cultura própria do regime disciplinar. Também como as demais vanguardas, um dos principais alvos de sua crítica foi a política identitária promovida por aquele regime. Mas na Europa as vanguardas tiveram que inventar, do zero, novas formas de viver e de criar e, em alguns casos, o fizeram inspirando-se na figura de seu suposto “outro”, o colonizado – objeto da projeção do imaginário utópico dos colonizadores, que tendia a ser o avesso idealizado de si mesmos. No Brasil, no entanto, esta outra política de subjetivação não tinha que ser inventada: ela estava inscrita em nossa memória, desde os primórdios da fundação do país. Refiro-me à inexistência de uma identificação absoluta e estável com qualquer repertório ou de obediência cega às regras estabelecidas, a abertura para incorporar novos universos, a liberdade de hibridação, a flexibilidade de experimentação e de improvisação para criar territórios e suas respectivas cartografias – e tudo isso levado com alegria, ginga e descontração. O serviço que o movimento modernista brasileiro prestou à cultura do país foi o de circunscrever e valorizar esta política, dando-lhe o nome de antropofagia. Isso possibilitou a tomada de consciência desta singularidade cultural que pode assim ser afirmada, a contrapelo da idealização da cultura européia, herança colonial que marcava a inteligentzia do país. Cabe notar que esta identificação submissa ainda hoje marca boa parte da produção intelectual brasileira, a qual em alguns de seus setores, apenas substituiu seu objeto de idealização pela cultura norte- americana, o que é especialmente o caso no campo da arte.

Nos anos 1960/70 as mudanças inventadas na arte do início do século deixaram de se restringir às vanguardas culturais; passadas algumas décadas, elas haviam contaminado o tecido social e viriam a expressar-se mais contundentemente na geração nascida após a segunda guerra mundial. Para esta geração, a sociedade disciplinar que atingiu seu auge naquele momento tornou-se absolutamente intolerável, o que a fez lançar-se num processo de ruptura com este padrão em sua própria existência cotidiana. A subjetividade flexível tornou-se assim o novo modelo. No Brasil, neste mesmo período, o ideário antropofágico foi reativado, o que dava a este movimento no país uma liberdade de experimentação especialmente radical.

Zumbis antropofágicos

A existência desta tradição antropofágica gerou no Brasil uma situação peculiar também no processo de instalação do neoliberalismo e da clonagem que operou dos movimentos das décadas anteriores: o know how antropofágico dava aos brasileiros um jogo de cintura especial para adaptar-se aos novos tempos. Ficamos embevecidos por sermos tão contemporâneos, tão à vontade na cena internacional das novas subjetividades pós-identitárias, de tão bem aparelhados que somos para viver esta flexibilidade pós-fordista (o que nos torna por exemplo campeões internacionais de publicidade e nos posiciona entre os grandes no ranking mundial das estratégias midiáticas [9]). No entanto, esta é apenas a forma que tomou a voluptuosa e alienada entrega a este regime em sua aclimatação em terras brasileiras, fazendo de seus habitantes, principalmente os urbanos, verdadeiros zumbis antropofágicos. Características previsíveis num país de passado colonial? Seja qual for a resposta, um sinal evidente desta identificação pateticamente a-crítica com o capitalismo financeiro de uma parcela da própria elite cultural brasileira, é o fato de que a liderança do grupo que reestruturou o Estado brasileiro engessado pelo regime militar, fazendo do processo de redemocratização o seu alinhamento ao neoliberalismo, compõe-se, em grande parte, de intelectuais de esquerda, tendo muitos deles vivido no exílio no período da ditadura.

É que a Antropofagia em si mesma é apenas uma forma de subjetivação, de fato distinta da política identitária. No entanto, isto não garante nada pois esta forma pode ser investida segundo diferentes éticas, das mais críticas às mais execravelmente reacionárias, o que já Oswald de Andrade apontava, designando estas últimas de “baixa antropofagia”. [10] O que distingue tais éticas é o mesmo “porém” que assinalei anteriormente ao referir-me à diferença entre a subjetividade flexível inventada nos anos 1960/70 e seu clone fabricado pelo capitalismo pós-fordista. Esta diferença está na estratégia de criação de territórios e, implicitamente, na política de relação com o outro: para que este processo se oriente por uma ética de afirmação da vida é necessário construir territórios com base nas urgências indicadas pelas sensações – ou seja, os sinais da presença do outro em nosso corpo vibrátil. É em torno da expressão destes sinais e de sua reverberação nas subjetividades que respiram o mesmo ar do tempo que vão se abrindo possíveis na existência individual e coletiva.

Ora, não é absolutamente esta a política de criação de territórios que tem predominado no Brasil: o neoliberalismo mobilizou o que esta tradição tem de pior, a mais baixa antropofagia. A “plasticidade” da fronteira entre público e privado e a “liberdade” de apropriação privada dos bens púbicos levada na brincadeira é uma de suas piores facetas, impregnada da herança colonial – é exatamente para esta faceta da antropofagia que Oswald de Andrade chamara a atenção para designar seu lado reativo. Esta linhagem intoxica a tal ponto a sociedade brasileira, especialmente sua classe política, que seria ingênuo imaginar que ela possa desaparecer num passe de mágica.

São cinco séculos de experiência antropofágica e quase um de reflexão sobre a mesma, a partir do momento em que, ao circunscrevê-la criticamente, os modernistas a tornaram consciente. Diante disso, de fato nosso know how antropofágico pode ser útil na atualidade, mas não para garantir nosso ingresso nos paraísos imaginários do capital, e sim, ao contrário, para nos ajudar a problematizar esta infeliz confusão entre as duas políticas da subjetividade flexível, separando o joio do trigo, que se distinguem basicamente pelo lugar ou não lugar que ocupa o outro. Esse conhecimento nos permite participar de modo fecundo do debate que se trava internacionalmente em torno da problematização do regime que hoje se tornou hegemônico e, indissociavelmente, da invenção de estratégias de êxodo do campo imaginário que tem origem em seu mito nefasto. [11] A arte tem uma vocação privilegiada para realizar semelhante tarefa na medida em que rasga a cartografia do presente ao liberar a vida em seus pontos de interrupção devolvendo-lhe a força de germinação – uma tarefa em tudo distinta e irredutível àquelas de denúncia ou de conscientização, que são do domínio da macropolítica.

Mas para isso temos que tratar a doença que resultou da infeliz confluência no Brasil de três fatores históricos que incidiram negativamente em nossa imaginação criadora: a traumática violentação pela ditadura, a cafetinagem pelo neoliberalismo e a ativação de uma baixa antropofagia. Esta confluência tornou sem dúvida mais exacerbadas, o rebaixamento da capacidade crítica e a identificação servil com o novo regime.

Aqui podemos voltar à nossa indagação inicial acerca da situação peculiar do Brasil no campo geopolítico do debate internacional que vem se travando, há quase duas décadas, no território da arte, em torno do destino da subjetividade, sua relação como outro e sua potência de invenção, sob o regime do capitalismo cultural. A triste confluência dos três fatores históricos pode ser uma das razões pelas quais este debate seja tão recente no país. É claro que há exceções entre nós, como é o caso de Lygia Clark que já um ano depois de maio de 1968 prenuncia esta situação. Eis como ela a descreve na época: “No próprio momento em que digere o objeto, o artista é digerido pela sociedade que já encontrou para ele um título e uma ocupação burocrática: ele será o engenheiro dos lazeres do futuro, atividade que em nada afeta o equilíbrio das estruturas sociais. A única maneira, para o artista de escapar da recuperação é procurar desencadear a criatividade geral, sem qualquer limite psicológico ou social. Sua criatividade se expressará no vivido.” [12]

O que pode a arte?

É de dentro deste novo cenário que emergem as perguntas que se colocam para todos aqueles que pensam/criam – especialmente, os artistas – no afã de traçar uma cartografia do contemporâneo, de modo a identificar seus pontos de tensão e fazer irromper aí a força de criação de outros mundos.

Um primeiro bloco de perguntas seria relativo à cartografia da cafetinagem. Como se opera em nossa vitalidade o torniquete que nos leva a tolerar o intolerável, e até a desejá-lo? Por meio de que processos, nossa vulnerabilidade ao outro se anestesia? Que mecanismos de nossa subjetividade nos levam a oferecer nossa força de criação para a realização do mercado? E nosso desejo, nossos afetos, nosso erotismo, nosso tempo, como são capturados pela fé na promessa de paraíso da religião capitalista? Que práticas artísticas têm caído nesta cilada? O que nos permite identificá-las? O que faz com que elas sejam tão numerosas?

Um outro bloco de perguntas, na verdade inseparável do primeiro, seria relativo à cartografia dos movimentos de êxodo. Como liberar a vida destes seus novos impasses? O que pode nossa força de criação para enfrentar este desafio? Que dispositivos artísticos estariam conseguindo fazê-lo? Quais deles estariam tratando o próprio território da arte, cada vez mais cobiçado (e minado) pela cafetinagem que encontra aí uma fonte inesgotável para extorquir mais-valia de poder? Em suma, como reativar nos dias de hoje a potência política inerente à ação artística, seu poder de instauração de possíveis?

Respostas a estas e outras tantas perguntas estão sendo certamente construídas por diferentes práticas artísticas junto com os territórios de toda espécie que se reinventam a cada dia. Ao que tudo indica, a paisagem geopolítica da cafetinagem globalizada já não é exatamente a mesma. Correntes moleculares vêm movimentando as terras. Neste momento elas estariam atravessando os subterrâneos da América Latina.

Notas.

1. Hubert Godard, “Regard aveugle”. In: Lygia Clark, de l’oeuvre à l’événement. Nous sommes le moule. A vous de donner le souffle. Suely Rolnik & Corinne Diserens (Org.). Nantes: Musée de Beaux- Arts de Nantes, 2005. Tradução brasileira: “Olhar cego”. In: Lygia Clark, da obra ao acontecimento. Somos o molde, a você cabe o sopro. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2006. O texto é a transcrição de uma entrevista que filmei com Godard no contexto de um projeto que venho desenvolvendo desde 2002, visando a construção de uma memória viva sobre as práticas experimentais propostas por Lygia Clark e o contexto cultural brasileiro e francês onde tiveram sua origem. Os 56 filmes realizados até o momento foram objeto de uma exposição na França e no Brasil, da qual a publicação acima mencionada constitui o catálogo.

2. Cartografia Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. (Esgotado). Reedição com novo prefácio: Porto Alegre: Sulina, 2006.

3. As noções de “capitalismo cognitivo” ou “cultural”, propostas pelo grupo de pensadores ligados a Toni Negri e à revista Multitude, a partir dos anos 1990, é herdeira da idéia que permeia toda a obra de Deleuze e Guattari acerca do estatuto da cultura e da subjetividade no regime capitalista contemporâneo.

4. Desenvolvi a noção de “subjetividade flexível” em alguns de meus ensaios recentes entre os quais “Politics of Flexible Subjectivity. The Event-Work of Lygia Clark”. In: Terry Smith, Nancy Condee & Okwui Enwezor (Edit.). Antinomies of Art and Culture: Modernity, Postmodernity and Contemporaneity, Durham: Duke University Press, 2006. “Life for Sale”. In: Adriano Pedrosa (Org.), Farsites: urban crisis and domestic symptoms. San Diego/Tijuana: InSite, 2005. Ver igualmente Brian Holmes, “The Flexible Personality”. In: Hieroglyphs of the Future (Zagreb: WHW/Arkzin, 2002), online at: www.u-tangente.org.

5. Ver nota 3.

6. No início da vigência da ditadura militar no Brasil, o movimento cultural persiste com toda a Com a promulgação do AI5 em dezembro de 1968, o regime recrudesce e o movimento perde fôlego, tendendo a paralisar-se. Como todo regime totalitário, seus efeitos mais nefastos talvez não tenham sido aqueles, palpáveis e visíveis, de prisão, tortura, repressão e censura, mas outros, mais sutis e invisíveis: a paralisia da força de criação e a frustração subseqüente da inteligência coletiva, por ficarem estas associadas à ameaça aterrorizadora de um castigo que pode levar à morte. Um dos efeitos mais tangíveis de tal bloqueio, foi o número significativo de jovens que viveram episódios psicóticos na época, muitos dos quais foram internados em hospitais psiquiátricos e não foram poucos os que sucumbiram à “psiquiatrização” de seu sofrimento, não tendo jamais voltado da loucura. Tais manifestações psicóticas, em parte decorrentes do terror da ditadura, ocorreram igualmente no âmbito das experiências-limite, características da assim chamada contracultura, que consistiam em toda espécie de experimentação sensorial, incluindo geralmente o uso de alucinógenos, numa postura de resistência ativa à política de subjetivação burguesa. A presença difusa do terror e a paranóia que este engendra terá sem dúvida contribuído para os destinos patológicos destas experiências de abertura do sensível à sua capacidade vibrátil.

7. O movimento contracultural no Brasil foi especialmente radical e amplo, tendo sido o Tropicalismo uma das principais expressões de sua A juventude ativa da época se dividia entre a contracultura e a militância, as quais sofreram igual violência por parte da ditadura: prisão, tortura, assassinato, exílio, além dos muitos que sucumbiram à loucura, como já assinalado. A contracultura, no entanto, jamais foi reconhecida em sua potência política, a não ser pelo regime militar que castigou ferozmente aqueles que dela participaram, os colocando nos mesmos pavilhões destinados aos presos oficialmente políticos. A sociedade brasileira projetava sobre a contracultura uma imagem pejorativa, oriunda de uma visão conservadora, compartilhada neste aspecto específico pela direita e pela esquerda (inclusive pelos militantes da mesma geração). Tal negação, ainda hoje, persiste na memória do período que, diferentemente, preserva e enaltece o passado militante.

8. Oswald de Andrade, “A marcha das utopias” [1953]. In: A Utopia Antropofágica, Obras Completas de Oswald de Globo, São Paulo, 1990.

9. A televisão brasileira ocupa um lugar privilegiado no cenário internaciona Um sinal evidente disto é o fato de que as novelas da rede Globo são hoje veiculadas em mais de 200 países.

10. Oswald de Andrade , “Manifesto Antropófago” [1928]. In: op.cit.

11. Comecei a elaborar a questão da antropofagia, no sentido em que a estou problematizando aqui, no início dos anos Este trabalho foi objeto de três textos. O primeiro, escrito em 1993, é Schizoanalyse et Anthropophagie. In: Eric Alliez (Org.). Gilles Deleuze. Une vie philosophique. Paris: Les empêcheurs de penser en rond, 1998 ; p.463-476. Edição brasileira: Esquizoanálise e Antropofagia. In: Gilles Deleuze. Uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000; pp. 451-462. O segundo é “Subjetividade Antropofágica” / “Anthropophagic Subjectivity”. In: Paulo Herkenhoff & Adriano Pedrosa (Edit.). Arte Contemporânea Brasileira: Um e/entre Outro/s, XXIVa Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998; pp. 128-147. Edição bilíngüe (português/inglês). Reeditado In: Daniel Lins (Org.), Razão Nômade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. O terceiro é “Zombie Anthropophagy”. In: Ivet Curlin e Natasa Ilic (Org.), Collective Creativity dedicated to anonymous worker. Kunsthalle Fridericianum: Kassel, 2005. Edição bilíngüe (alemão/inglês). Publicado em francês como “Anthropophagie Zombie”. In: Mouvement. L’indiscipline des Arts Visuels, no 36-37, pp. 56-68. Paris: Artishoc, sept-décembre 2005.

12. “1969: O corpo é a casa”. Publicado pela primeira vez em francês com o título “L’homme structure vivante d’une architecture biologique et celulaire”. In: Robho, 5-6, Paris, 1971; reproduzido in: Lygia Clark. Rio de Janeiro: Funarte, 1980 e, posteriormente, in: Manuel J.Borja Villel e Nuria Enguita Mayo (Edit.), Lygia Clark (catálogo de exposição), Fondació Antoni Tàpies, Barcelona, 1997; edições bilingües: espanhol/inglês e francês/português.

*Este escrito foi originalmente partilhado no território do Núcleo de Estudos da Subjetividade – PUC-SP. Para conhecer outros discursos, corpos e pesquisas do Núcleo, acesse o território: http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/

Fonte: Territórios de Filosofia

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