maio 11, 2015

GENIUS. Giorgio Agamben (Territórios de Filosofia)


GENIUS. Giorgio Agamben.*

Now my charms are all o’erthrown, And what strength I have’s mine own. Próspero ao público

Os latinos chamavam Genius ao deus a que todo homem é confiado sob tutela na hora do nascimento. A etimologia é transparente, e ainda é visível na língua italiana na aproximação entre genio [gênio] e generare [gerar]. Que Genius tivesse a ver com o gerar é, aliás, evidente, pelo fato de o objeto por excelência “genial” ter sido, para os latinos, a cama: genialis lectus, porque nela se realiza o ato de geração. E sagrado para Genius era o dia do nascimento, motivo pelo qual ainda o denominamos genetliaco. Os presentes e os banquetes com que festejamos o aniversário são, apesar do odioso e já inevitável refrão anglo-saxônico, uma lembrança da festa e dos sacrifícios que as famílias romanas ofereciam ao Genius no aniversário de seus membros. Horácio fala de vinho puro, de um leitão de dois meses, de um cordeiro “imolado”, ou seja, salpicado com a salsa para o sacrifício; mas parece que, originalmente, só havia incenso, vinho e deliciosas cucas [focacce] de mel, porque Genius, o deus que preside ao nascimento, não gostava de sacrifícios sangrentos.

“Chama-se meu Genius, porque me gerou (Genius meus nominatur, guia-me genuit).” Mas não basta. Genius não era apenas a personificação da energia sexual. Claro que cada ser humano macho tinha seu Genius, e cada mulher a sua Juno, ambos manifestação da fecundidade que gera e perpetua a vida. Mas, como é evidente no termo ingenium, que designa a soma das qualidades físicas e morais inatas de quem está para nascer, Genius era, de algum modo, a divinização da pessoa, o princípio que rege e exprime a sua existência inteira. Por esse motivo, consagrava-se a Genius a fronte, e não o púbis; e o gesto de levar a mão à fronte, que fazemos, quase sem nos dar conta, nos momentos de desânimo, quando parece que quase nos esquecemos de nós mesmos, lembra o gesto ritual do culto de Genius (unde venerantes deum tangimus frontem). E dado que esse deus é, de certa forma, o mais íntimo e próprio, é necessário aplacá-lo e tê-lo bem favorável sob todos os aspectos e em todos os momentos da vida.

Há uma expressão latina que exprime maravilhosamente a relação secreta que cada um deve saber cultivar com o próprio Genius: indulgere Genio. É preciso ser condescendente com Genius e abandonar-se a ele; a Genius devemos conceder tudo o que nos pede, pois sua exigência é nossa exigência; sua felicidade, nossa felicidade. Mesmo que suas — nossas! — pretensões possam parecer inaceitáveis e caprichosas, convém aceitá-las sem discussão. Se, para escrever, tendes — tem! — necessidade do papel amarelinho, da caneta especial, se precisamos exatamente da luz fraca que desce da esquerda, é inútil dizer que qualquer caneta cumpre sua tarefa, que qualquer papel e qualquer luz são bons. Se não vale a pena viver sem a camisa de linho celeste (mas, por favor, não a branca com o colarinho de funcionário!), se não parece possível continuar vivendo sem os cigarros compridos envoltos em papel preto, de nada serve ficar repetindo que são simples manias, que seria hora de criar juízo. Genium suum defraudare — fraudar o próprio gênio — significa, em latim, tornar triste a própria vida, ludibriar a si mesmo. E genialis — genial — é a vida que distancia da morte o olhar e responde sem hesitação ao impulso do gênio que o gerou.

Mas esse deus muito íntimo e pessoal é também o que há de mais impessoal em nós, a personalização do que, em nós, nos supera e excede. “Genius é a nossa vida, enquanto não foi por nós originada, mas nos deu

origem.” Se ele parece identificar-se conosco, é só para desvelar-se, logo depois, como algo mais do que nós mesmos, para nos mostrar que nós mesmos somos mais e menos do que nós mesmos. Compreender a concepção de homem implícita em Genius equivale a compreender que o homem não é apenas Eu e consciência individual, mas que, desde o nascimento até à morte, ele convive com um elemento impessoal e pré-individual. O homem é, pois, um único ser com duas fases, que deriva da complicada dialética entre uma parte (ainda) não identificada e vivida, e uma parte já marcada pela sorte e pela experiência individual. Mas a parte impessoal e não identificada não é um passado cronológico que uma vez por todas deixamos para trás, e que podemos, eventual mente, chamar de volta com a memória; ela está presente até agora, em nós e conosco e junto de nós, no bem e no mal, inseparável. O rosto de jovem de Genius, suas longas e trêmulas asas significam que ele não conhece o tempo, que o sentimos bem perto em nós, estremecendo de frio como quando éramos crianças, respirando e batendo as têmporas febris como um presente imemorável. Por isso, o aniversário não pode ser a comemoração de um dia passado, mas, como toda verdadeira festa, abolição do tempo, epifania e presença de Genius. É essa presença inaproximável que impede que nos fechemos em uma identidade substancial, é Genius que rompe com a pretensão do Eu de bastar-se a si mesmo.


A espiritualidade — afirmou-se — é, sobretudo, essa consciência do fato de que o ser identificado não está totalmente identificado, mas ainda contém certa carga de realidade não-identificada, que importa não apenas conservar, mas também respeitar e, de algum modo, honrar, assim como se honram as próprias dívidas. Genius, porém, não é só espiritualidade, não tem a ver apenas com as coisas que estamos acostumados a considerar mais nobres e elevadas. Todo o impessoal em nós é genial; genial é, sobretudo, a força que move o sangue em nossas veias ou nos faz cair em sono profundo, a desconhecida potência que, em nosso corpo, regula e distribui tão suavemente a tibieza e dissolve ou contrai as fibras dos nossos músculos. É Genius que, obscuramente, apresentamos na intimidade de nossa vida fisiológica, lá onde o mais próprio é o mais estranho e impessoal, o mais próximo é o mais remoto e indomável. Se não nos abandonássemos a Genius, se fôssemos apenas Eu e consciência, nunca poderíamos nem sequer urinar. Viver com Genius significa, nessa perspectiva, viver na intimidade de um ser estranho, manter-se constantemente vinculado a uma zona de não-conhecimento. Mas tal zona de não-conhecimento não é uma remoção, não transfere nem desloca uma experiência da consciência para o inconsciente, onde ela se sedimenta como um passado inquietante, pronto a reaparecer em sintomas e neuroses. A intimidade com uma zona de não-conhecimento é uma prática mística cotidiana, na qual Eu, numa forma de esoterismo especial e alegre, assiste sorrindo ao próprio desmantelamento e, quer se trate da digestão do alimento, quer da iluminação da mente, é testemunha, incrédulo, do incessante insucesso próprio. Genius é a nossa vida, enquanto não nos pertence.

Devemos, pois, olhar para o sujeito como para um campo de tensões, cujos pólos antitéticos são Genius e Eu. O campo é atravessado por duas forças conjugadas, porém opostas; uma que vai do individual na direção do impessoal, e outra que vai do impessoal para o individual. As duas forças convivem, entrecruzam-se, separam-se, mas não podem nem se emancipar integralmente uma da outra, nem se identificar perfeitamente. Qual é, então, para Eu, o melhor modo de testemunhar Genius? Suponhamos que Eu queira escrever. Escrever não esta ou aquela obra, mas simplesmente escrever. Tal desejo significa: Eu sinto que Genius existe em algum lugar, que há em mim uma potência impessoal que impele a escrever. Mas a última coisa de que Genius necessita é de uma obra, ele que nunca pegou em alguma caneta (e menos ainda em computador). Escrevemos para nos tornarmos impessoais, para nos tornarmos geniais, e, contudo, escrevendo, identificamo-nos como autores desta ou daquela obra, distanciamo-nos de Genius, que nunca pode ter a forma de um Eu, e menos ainda a de um autor. Toda tentativa de Eu, do elemento pessoal, de se apropriar de Genius, de obrigá-lo a assinar seu nome, está necessariamente destinada a fracassar. Nascem daí a pertinência e o sucesso de operações irônicas como aquelas das vanguardas, nas quais a presença de Genius é testemunhada dês-criando, destruindo a obra. Se, porém, só uma obra revogada e desfeita pudesse ser digna de Genius, se o artista realmente genial é sem obra, o Eu-Duchamp nunca poderá coincidir com Genius e, na admiração geral, vai pelo mundo afora como a prova melancólica da própria inexistência, como o portador famigerado da própria improdutividade.

Por isso, o encontro com Genius é terrível. Se, por um lado, é poética a vida que se leva na tensão entre o pessoal e o impessoal, entre Eu e Genius, por outro é pânico o sentimento de que Genius venha a exceder-nos e superar-nos sob todos os aspectos, que nos aconteça algo infinitamente maior do que nos parece ser suportável. Por isso, a maioria dos homens foge aterrorizada frente à parte impessoal própria, ou procura, hipocritamente, reduzi-la à própria estatura minúscula. Nesse caso, pode acontecer que o impessoal rejeitado volte a aparecer em forma de sintomas e tiques ainda mais impessoais, de trejeitos ainda mais exagerados. Mas tão ridículo e fátuo é também quem vive o encontro com Genius como um privilégio, o Poeta que faz pose e se dá ares de importante, ou, pior ainda, agradece, com fingida humildade, pela graça recebida. Frente a Genius, não há grandes homens; todos são igualmente pequenos. Alguns, porém, são suficientemente inconscientes a ponto de se deixarem abalar e atravessar por ele até que caiam aos pedaços. Outros, mais sérios, mas menos felizes, rejeitam personificar o impessoal, emprestar os próprios lábios a uma voz que não lhes pertence.

Há uma ética das relações com Genius que define a classe de cada ser. A classe mais baixa inclui aqueles que — e às vezes se trata de autores celebérrimos — contam com o próprio gênio como se fosse um bruxo pessoal (“tudo me sai tão bem!”; “se tu, gênio meu, não me abandonas…”). Muito mais amável e sóbrio é o gesto do poeta que, pelo contrário, menospreza esse sórdido cúmplice, porque sabe que “a ausência de Deus nos ajuda!”.

As crianças sentem um prazer especial em se esconder. E não para serem descobertas no final. Há, no próprio fato de ficarem escondidas, no ato de se refugiarem na cesta de roupa ou no fundo de um armário, no de se encolherem num canto do sótão até quase desaparecer, uma alegria incomparável, uma palpitação especial, a que não estão dispostas a renunciar por nenhum motivo. É dessa palpitação infantil que provêm tanto a volúpia com que Walser garante as condições da sua ilegibilidade (os microgramas) como o desejo obstinado de Benjamin de não ser reconhecido. Eles são os guardas da glória solitária, que sua toca um dia revelou à criança. De fato, o poeta celebra seu triunfo no não-reconhecimento, exatamente corno a criança que se descobre trepidando como o genius loci de seu esconderijo. Segundo Simondon, a emoção é aquilo por meio do qual entramos em contato com o pré-individual. Emocionar-se significa sentir o impessoal que está em nós, fazer experiência de Genius como angústia ou alegria, segurança ou tremor.

No limiar da zona de não-conhecimento, Eu deve abdicar de suas propriedades, deve comover-se. E a paixão é a corda estendida entre nós e Genius, sobre a qual caminha a vida funâmbula. O que nos maravilha e espanta, antes mesmo do mundo fora de nós, é a presença, dentro de nós, dessa parte para sempre imatura, infinitamente adolescente, que fica hesitante no início de qualquer identificação. E é essa criança elusiva, esse puer obstinado, que nos impele na direção dos outros, nos quais procuramos apenas a emoção, que em nós continuou incompreensível, esperando que, por milagre, no espelho do outro, esclareça-se e se elucide. Se a emoção suprema, a primeira política, é olhar o prazer, a paixão do outro, isso acontece porque buscamos no outro a relação com Genius que não conseguimos alcançar sozinhos, a nossa secreta delícia e a nossa nobre agonia.

Com o tempo, Genius duplica-se e começa a assumir uma coloração ética. As fontes, talvez por influência do tema grego dos dois demônios de cada homem, falam de um gênio bom e de um gênio mau, de um Genius branco (albus) e de um preto (ater). O primeiro nos leva e recomenda o bem, o segundo nos corrompe e nos inclina ao mal. Horácio, provavelmente com razão, sugere tratar-se de fato de um só Genius, que, porém, é mutável, ora cândido, ora tenebroso, ora sábio, ora depravado. Observando bem, isso significa que quem muda não é Genius, mas nossa relação com ele, que passa de luminosa e clara a opaca e tenebrosa. Nosso princípio vital, o companheiro que orienta e torna amável nossa existência, transforma-se assim, de repente, em um silencioso clandestino, que, como sombra, nos persegue a cada passo, conspirando secretamente contra nós. Assim, a arte romana representa, um ao lado do outro, dois Genius um segurando na mão uma tocha acesa, e outro, mensageiro de morte, derrubando a tocha.

Em sua tardia moralização, o paradoxo de Genius emerge em plena luz: se Genius é a nossa vida, enquanto não nos pertence, então devemos responder por algo pelo qual não somos responsáveis; nossa salvação e nossa ruína apresentam um rosto pueril, que é e não é nosso rosto.

Genius encontra uma correspondência na idéia cristã do anjo da guarda — ou melhor, dos dois anjos; um bom e santo, que nos guia para a salvação, e um mau e perverso, que nos empurra para a condenação. Mas é na angelologia irânica que ele encontra sua mais límpida e inaudita formulação. Segundo tal doutrina, quem preside ao nascimento de cada ser humano é um anjo, chamado Daena, que tem a forma de uma belíssima jovem. Daena é o arquétipo celeste a cuja semelhança o indivíduo foi criado e, ao mesmo tempo, é a muda testemunha que nos espia e acompanha em todos os instantes da nossa vida. Contudo, o rosto do anjo não continua igual no tempo, mas, como o retrato de Dorian Gray, vai se transformando imperceptivelmente a cada gesto nosso, a cada palavra, a cada pensamento. Assim, no momento da morte, a alma vê seu anjo, que lhe vem ao encontro transfigurado, dependendo da conduta da sua vida, ou numa criatura ainda mais bela, ou num demônio horrível, que sussurra: “Eu sou tua Daena, aquela que os teus pensamentos, as tuas palavras e os teus atos formaram”. Com uma inversão vertiginosa, nossa vida plasma e desenha o arquétipo em cuja imagem fomos criados.

Todos fazemos, em alguma medida, um pacto com Genius, com aquilo que em nós não nos pertence. O modo como cada um procura livrar-se de Genius, fugir dele, constitui seu caráter. Ele é a careta [smorfia] que Genius, enquanto foi esquivado e deixado inexpresso, imprime no rosto do Eu. O estilo de um autor, assim como a graça de cada criatura, depende, porém, não tanto de seu gênio, mas daquilo que nele é isento de gênio, de seu caráter. Por isso, quando amamos alguém, não amamos propriamente nem seu gênio nem seu caráter (e muito menos seu Eu), mas a maneira especial que ele tem de escapar de ambos, seu desenvolto ir e vir entre gênio e caráter. (Por exemplo, a graça pueril com que o poeta em Nápoles degustava os sorvetes ou o jeito cansado como o filósofo caminhava de lá para cá pelo quarto enquanto falava, parando de repente para fixar o olhar em um ângulo remoto do teto.)

Surge, contudo, para cada um o momento em que deve separar-se de Genius. Pode ser de noite, de improviso, quando, ao som da brigada que passa, ouves, não sabes por quê, que teu deus te abandona. Ou então somos nós que o despedimos, na hora lucidíssima, extrema, em que sabemos que há salvação, mas nós já não queremos ser salvos. Vá embora, Ariel! É a hora em que Próspero renuncia a seus encantos e sabe, com a força que lhe sobra, que é sua hora, a última estação, tardia, em que o artista velho quebra o seu pincel e contempla. O quê? Os gestos: pela primeira vez só nossos, completamente libertos de qualquer encanto. Se a vida, sem Ariel, certamente perdeu seu mistério e, mesmo assim, de algum lugar nos é feito saber que só agora nos cabe, que só agora começamos a viver uma vida puramente humana e terrena, então a vida que não manteve suas promessas pode agora, por isso mesmo, dar-nos infinitamente mais. É o tempo exausto e suspenso, a brusca penumbra em que começamos a nos esquecer de Genius; é a noite esperada. Porventura alguma vez existiu Ariel? O que é essa música que se dilui e se distancia? Só a despedida é verdadeira, só agora inicia o longo desaprendimento de si. Antes que a vagarosa criança volte a experimentar, um a um, os seus rubores; uma a uma, imperiosamente, as suas hesitações.

*A versão do texto em língua portuguesa, foi publicado originalmente em: AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. A tradução foi realizada por Selvino José Assman.

Fonte: Territórios de Filosofia

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