GENIUS.
Giorgio Agamben.*
Now my charms are all o’erthrown,
And what strength I have’s mine own.
Próspero ao público
Os latinos chamavam Genius ao deus a que
todo homem é confiado sob tutela na hora do nascimento. A etimologia é
transparente, e ainda é visível na língua italiana na aproximação entre genio [gênio] e generare
[gerar]. Que Genius tivesse a ver com o gerar é, aliás, evidente, pelo
fato de o objeto por excelência “genial” ter sido, para os latinos, a
cama: genialis lectus, porque nela se realiza o ato de geração. E
sagrado para Genius era o dia do nascimento, motivo pelo qual ainda o
denominamos genetliaco. Os presentes e os banquetes com que festejamos o
aniversário são, apesar do odioso e já inevitável refrão
anglo-saxônico, uma lembrança da festa e dos sacrifícios que as famílias
romanas ofereciam ao Genius no aniversário de seus membros. Horácio
fala de vinho puro, de um leitão de dois meses, de um cordeiro
“imolado”, ou seja, salpicado com a salsa para o sacrifício; mas parece
que, originalmente, só havia incenso, vinho e deliciosas cucas [focacce]
de mel, porque Genius, o deus que preside ao nascimento, não gostava de
sacrifícios sangrentos.
Há uma expressão latina que exprime maravilhosamente a relação secreta que cada um deve saber cultivar com o próprio Genius: indulgere Genio. É preciso ser condescendente com Genius e abandonar-se a ele; a Genius devemos conceder tudo o que nos pede, pois sua exigência é nossa exigência; sua felicidade, nossa felicidade. Mesmo que suas — nossas! — pretensões possam parecer inaceitáveis e caprichosas, convém aceitá-las sem discussão. Se, para escrever, tendes — tem! — necessidade do papel amarelinho, da caneta especial, se precisamos exatamente da luz fraca que desce da esquerda, é inútil dizer que qualquer caneta cumpre sua tarefa, que qualquer papel e qualquer luz são bons. Se não vale a pena viver sem a camisa de linho celeste (mas, por favor, não a branca com o colarinho de funcionário!), se não parece possível continuar vivendo sem os cigarros compridos envoltos em papel preto, de nada serve ficar repetindo que são simples manias, que seria hora de criar juízo. Genium suum defraudare — fraudar o próprio gênio — significa, em latim, tornar triste a própria vida, ludibriar a si mesmo. E genialis — genial — é a vida que distancia da morte o olhar e responde sem hesitação ao impulso do gênio que o gerou.
Mas esse deus muito íntimo e pessoal é também o que há de mais impessoal em nós, a personalização do que, em nós, nos supera e excede. “Genius é a nossa vida, enquanto não foi por nós originada, mas nos deu
origem.” Se ele parece identificar-se conosco, é só para desvelar-se, logo depois, como algo mais do que nós mesmos, para nos mostrar que nós mesmos somos mais e menos do que nós mesmos. Compreender a concepção de homem implícita em Genius equivale a compreender que o homem não é apenas Eu e consciência individual, mas que, desde o nascimento até à morte, ele convive com um elemento impessoal e pré-individual. O homem é, pois, um único ser com duas fases, que deriva da complicada dialética entre uma parte (ainda) não identificada e vivida, e uma parte já marcada pela sorte e pela experiência individual. Mas a parte impessoal e não identificada não é um passado cronológico que uma vez por todas deixamos para trás, e que podemos, eventual mente, chamar de volta com a memória; ela está presente até agora, em nós e conosco e junto de nós, no bem e no mal, inseparável. O rosto de jovem de Genius, suas longas e trêmulas asas significam que ele não conhece o tempo, que o sentimos bem perto em nós, estremecendo de frio como quando éramos crianças, respirando e batendo as têmporas febris como um presente imemorável. Por isso, o aniversário não pode ser a comemoração de um dia passado, mas, como toda verdadeira festa, abolição do tempo, epifania e presença de Genius. É essa presença inaproximável que impede que nos fechemos em uma identidade substancial, é Genius que rompe com a pretensão do Eu de bastar-se a si mesmo.
A espiritualidade — afirmou-se — é,
sobretudo, essa consciência do fato de que o ser identificado não está
totalmente identificado, mas ainda contém certa carga de realidade
não-identificada, que importa não apenas conservar, mas também respeitar
e, de algum modo, honrar, assim como se honram as próprias dívidas.
Genius, porém, não é só espiritualidade, não tem a ver apenas com as
coisas que estamos acostumados a considerar mais nobres e elevadas. Todo
o impessoal em nós é genial; genial é, sobretudo, a força que move o
sangue em nossas veias ou nos faz cair em sono profundo, a desconhecida
potência que, em nosso corpo, regula e distribui tão suavemente a
tibieza e dissolve ou contrai as fibras dos nossos músculos. É Genius
que, obscuramente, apresentamos na intimidade de nossa vida fisiológica,
lá onde o mais próprio é o mais estranho e impessoal, o mais próximo é o
mais remoto e indomável. Se não nos abandonássemos a Genius, se
fôssemos apenas Eu e consciência, nunca poderíamos nem sequer urinar.
Viver com Genius significa, nessa perspectiva, viver na intimidade de um
ser estranho, manter-se constantemente vinculado a uma zona de
não-conhecimento. Mas tal zona de não-conhecimento não é uma remoção,
não transfere nem desloca uma experiência da consciência para o
inconsciente, onde ela se sedimenta como um passado inquietante, pronto a
reaparecer em sintomas e neuroses. A intimidade com uma zona de
não-conhecimento é uma prática mística cotidiana, na qual Eu, numa forma
de esoterismo especial e alegre, assiste sorrindo ao próprio
desmantelamento e, quer se trate da digestão do alimento, quer da
iluminação da mente, é testemunha, incrédulo, do incessante insucesso
próprio. Genius é a nossa vida, enquanto não nos pertence.
Devemos, pois, olhar para o sujeito como
para um campo de tensões, cujos pólos antitéticos são Genius e Eu. O
campo é atravessado por duas forças conjugadas, porém opostas; uma que
vai do individual na direção do impessoal, e outra que vai do impessoal
para o individual. As duas forças convivem, entrecruzam-se, separam-se,
mas não podem nem se emancipar integralmente uma da outra, nem se
identificar perfeitamente. Qual é, então, para Eu, o melhor modo de
testemunhar Genius? Suponhamos que Eu queira escrever. Escrever não esta
ou aquela obra, mas simplesmente escrever. Tal desejo significa: Eu
sinto que Genius existe em algum lugar, que há em mim uma potência
impessoal que impele a escrever. Mas a última coisa de que Genius
necessita é de uma obra, ele que nunca pegou em alguma caneta (e menos
ainda em computador). Escrevemos para nos tornarmos impessoais, para nos
tornarmos geniais, e, contudo, escrevendo, identificamo-nos como
autores desta ou daquela obra, distanciamo-nos de Genius, que nunca pode
ter a forma de um Eu, e menos ainda a de um autor. Toda tentativa de
Eu, do elemento pessoal, de se apropriar de Genius, de obrigá-lo a
assinar seu nome, está necessariamente destinada a fracassar. Nascem daí
a pertinência e o sucesso de operações irônicas como aquelas das
vanguardas, nas quais a presença de Genius é testemunhada dês-criando,
destruindo a obra. Se, porém, só uma obra revogada e desfeita pudesse
ser digna de Genius, se o artista realmente genial é sem obra, o
Eu-Duchamp nunca poderá coincidir com Genius e, na admiração geral, vai
pelo mundo afora como a prova melancólica da própria inexistência, como o
portador famigerado da própria improdutividade.
Há uma ética das relações com Genius que define a classe de cada ser. A classe mais baixa inclui aqueles que — e às vezes se trata de autores celebérrimos — contam com o próprio gênio como se fosse um bruxo pessoal (“tudo me sai tão bem!”; “se tu, gênio meu, não me abandonas…”). Muito mais amável e sóbrio é o gesto do poeta que, pelo contrário, menospreza esse sórdido cúmplice, porque sabe que “a ausência de Deus nos ajuda!”.
As crianças sentem um prazer especial em se esconder. E não para serem descobertas no final. Há, no próprio fato de ficarem escondidas, no ato de se refugiarem na cesta de roupa ou no fundo de um armário, no de se encolherem num canto do sótão até quase desaparecer, uma alegria incomparável, uma palpitação especial, a que não estão dispostas a renunciar por nenhum motivo. É dessa palpitação infantil que provêm tanto a volúpia com que Walser garante as condições da sua ilegibilidade (os microgramas) como o desejo obstinado de Benjamin de não ser reconhecido. Eles são os guardas da glória solitária, que sua toca um dia revelou à criança. De fato, o poeta celebra seu triunfo no não-reconhecimento, exatamente corno a criança que se descobre trepidando como o genius loci de seu esconderijo. Segundo Simondon, a emoção é aquilo por meio do qual entramos em contato com o pré-individual. Emocionar-se significa sentir o impessoal que está em nós, fazer experiência de Genius como angústia ou alegria, segurança ou tremor.
No limiar da zona de não-conhecimento, Eu deve abdicar de suas propriedades, deve comover-se. E a paixão é a corda estendida entre nós e Genius, sobre a qual caminha a vida funâmbula. O que nos maravilha e espanta, antes mesmo do mundo fora de nós, é a presença, dentro de nós, dessa parte para sempre imatura, infinitamente adolescente, que fica hesitante no início de qualquer identificação. E é essa criança elusiva, esse puer obstinado, que nos impele na direção dos outros, nos quais procuramos apenas a emoção, que em nós continuou incompreensível, esperando que, por milagre, no espelho do outro, esclareça-se e se elucide. Se a emoção suprema, a primeira política, é olhar o prazer, a paixão do outro, isso acontece porque buscamos no outro a relação com Genius que não conseguimos alcançar sozinhos, a nossa secreta delícia e a nossa nobre agonia.
Com o tempo, Genius duplica-se e começa a assumir uma coloração ética. As fontes, talvez por influência do tema grego dos dois demônios de cada homem, falam de um gênio bom e de um gênio mau, de um Genius branco (albus) e de um preto (ater). O primeiro nos leva e recomenda o bem, o segundo nos corrompe e nos inclina ao mal. Horácio, provavelmente com razão, sugere tratar-se de fato de um só Genius, que, porém, é mutável, ora cândido, ora tenebroso, ora sábio, ora depravado. Observando bem, isso significa que quem muda não é Genius, mas nossa relação com ele, que passa de luminosa e clara a opaca e tenebrosa. Nosso princípio vital, o companheiro que orienta e torna amável nossa existência, transforma-se assim, de repente, em um silencioso clandestino, que, como sombra, nos persegue a cada passo, conspirando secretamente contra nós. Assim, a arte romana representa, um ao lado do outro, dois Genius um segurando na mão uma tocha acesa, e outro, mensageiro de morte, derrubando a tocha.
Em sua tardia moralização, o paradoxo de Genius emerge em plena luz: se Genius é a nossa vida, enquanto não nos pertence, então devemos responder por algo pelo qual não somos responsáveis; nossa salvação e nossa ruína apresentam um rosto pueril, que é e não é nosso rosto.
Genius encontra uma correspondência na idéia
cristã do anjo da guarda — ou melhor, dos dois anjos; um bom e santo,
que nos guia para a salvação, e um mau e perverso, que nos empurra para a
condenação. Mas é na angelologia irânica que ele encontra sua mais
límpida e inaudita formulação. Segundo tal doutrina, quem preside ao
nascimento de cada ser humano é um anjo, chamado Daena, que tem a forma
de uma belíssima jovem. Daena é o arquétipo celeste a cuja semelhança o
indivíduo foi criado e, ao mesmo tempo, é a muda testemunha que nos
espia e acompanha em todos os instantes da nossa vida. Contudo, o rosto
do anjo não continua igual no tempo, mas, como o retrato de Dorian Gray,
vai se transformando imperceptivelmente a cada gesto nosso, a cada
palavra, a cada pensamento. Assim, no momento da morte, a alma vê seu
anjo, que lhe vem ao encontro transfigurado, dependendo da conduta da
sua vida, ou numa criatura ainda mais bela, ou num demônio horrível, que
sussurra: “Eu sou tua Daena, aquela que os teus pensamentos, as tuas
palavras e os teus atos formaram”. Com uma inversão vertiginosa, nossa
vida plasma e desenha o arquétipo em cuja imagem fomos criados.
Todos fazemos, em alguma medida, um pacto
com Genius, com aquilo que em nós não nos pertence. O modo como cada um
procura livrar-se de Genius, fugir dele, constitui seu caráter. Ele é a
careta [smorfia] que Genius, enquanto foi esquivado e deixado
inexpresso, imprime no rosto do Eu. O estilo de um autor, assim como a
graça de cada criatura, depende, porém, não tanto de seu gênio, mas
daquilo que nele é isento de gênio, de seu caráter. Por isso, quando
amamos alguém, não amamos propriamente nem seu gênio nem seu caráter (e
muito menos seu Eu), mas a maneira especial que ele tem de escapar de
ambos, seu desenvolto ir e vir entre gênio e caráter. (Por exemplo, a
graça pueril com que o poeta em Nápoles degustava os sorvetes ou o jeito
cansado como o filósofo caminhava de lá para cá pelo quarto enquanto
falava, parando de repente para fixar o olhar em um ângulo remoto do
teto.)
*A versão do texto em língua portuguesa, foi publicado originalmente em: AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. A tradução foi realizada por Selvino José Assman.
Fonte: Territórios de Filosofia
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