maio 10, 2015

Devir-animal (ou cinismo), por Murilo Duarte Costa Corrêa

PICICA: "Deleuze e Guattari devem ter sido os primeiros a experimentarem os palavrões em filosofia.

Desde a escritura, parece haver um obstinado procedimento de ruptura na filosofia de Deleuze. Podemos afirmar, quase sem medo, que pensar, em Deleuze, se torna romper; que não há pensamento sem ruptura, que não há nada – nem um cu, nem uma lua, nem um olho – que sobrevivam ao pensamento, que não deixa de ser a navalha do cão andaluz. O corte da navalha faz o devir proliferar, arrebentar o olho em lua, assim como em Henri Bergson dividir a duração deve ser possível apenas ao preço de fazê-la resultar uma nova multiplicidade."



 

 Devir-animal (ou cinismo)
 

 por Murilo Duarte Costa Corrêa
 

Deleuze não gostava de cães, nem de gatos. Achava o latido o som mais estúpido da natureza, e detestava que os gatos ficassem se enovelando nas pernas dos donos; o “esfregar-se” felino parecia-lhe uma maneira odiosa de se portar. Em verdade, não é que Deleuze não gostasse de animais de estimação; ele não gostava de animais familiares. Se tivesse que escolher um bicho, certamente seria um percevejo, um carrapato, uma pulga, um lobo ou um rato – animais de matilha, sim, territoriais, mas não familiares. O que fazia Deleuze detestar cães e gatos não era serem cães ou gatos, mas serem demasiado humanos. Um cão de butique não serve para um devir-animal, justamente porque tudo o que vemos são cães de butique. No entanto, Deleuze teve gatos em casa – que só suportou por causa dos filhos. Ele se admirava de como as pessoas podiam falar com seus animais. No fundo, era a humanização dos animais que Deleuze odiava. A fala humana, o gracejo familiar, obliteravam uma potência qualquer – e um animal despotenciado é tão odioso quanto o homem, justamente porque é demasiado parecido com ele. 


Um cão como Diógenes talvez servisse bem a Deleuze. Diógenes tinha um devir-cão não-familiar. Era um cão vagabundo, sem raça, sem dono, provavelmente pulguento, comendo em público, servindo-se do prazer entre outros, à vista de todos... Diógenes pisoteava as almofadas da sala de Platão, com seus pés sujos de barro, e atalhado pelo dono da casa, dizia feliz: “Ah, Platão!, estou a pisar seu orgulho”. Ou, então, talvez o cão andaluz fosse, quem sabe, amável aos olhos de Deleuze: ao assistirmos ao filme de Dalí e Buñuel não cessamos de perguntar “ora, mas que cão? Não há cão nenhum!”. Mas há populações inteiras de formigas arrastando o piano, e todos se lembram da navalha. A moça sentada na barbearia: um devir-mulher atinge um ponto de indiscernibilidade, a visão vacila numa paisagem não-humana, o olho olha a lua e devém: o barbeiro puxa a navalha e rasga o olho, e rasga a lua. Um gesto erótico, e meio batailliano: o olho, a história do olho. Deleuze também não gostava dos surrealistas; eles lhe pareciam grandes fraudes; mas esse filme não busca significar, nem é discernível que haja efetivamente um sonho; é mais um estado de embriaguez que dissolve as passagens: delira-se com a Figura, e não com a representação: o olho que é a lua (devir-caosmos), a lua que é o olho (um devir-molecular) – o olho tem quase o tamanho de uma molécula perto da lua. O olho que é o olho da moça; o olho da moça que é a lua; o olho da história de Battaille que é o olho, mas também o ovo, e também o cu. A brancura do olho, a brancura da lua, a bran-cu-ra. Um delírio é feito de delirar as raças e a história universal, e não de papá-mamã. O agenciamento, antes de tornar-se outra coisa, é mais ou menos este: o olho rasgado, a lua cortada, o cu desflorado. Algo próximo do que acorria à homofonia de Battaille: l’œil e l’œuf. Mas há, também, o procedimento esquizofrênico operado sobre a linguagem – escavar na língua materna uma língua menor, estrangeira. Um procedimento lingüístico inseparável da linguagem, como o fizera Louis Wolfson, ou Raymond Roussel. Deleuze e Guattari devem ter sido os primeiros a experimentarem os palavrões em filosofia.


Desde a escritura, parece haver um obstinado procedimento de ruptura na filosofia de Deleuze. Podemos afirmar, quase sem medo, que pensar, em Deleuze, se torna romper; que não há pensamento sem ruptura, que não há nada – nem um cu, nem uma lua, nem um olho – que sobrevivam ao pensamento, que não deixa de ser a navalha do cão andaluz. O corte da navalha faz o devir proliferar, arrebentar o olho em lua, assim como em Henri Bergson dividir a duração deve ser possível apenas ao preço de fazê-la resultar uma nova multiplicidade. 


Bem assim o devir-animal de Diógenes, que vira um cão não-familiar. Michel Foucault nos conta como Diógenes inaugura a parrêsia cínica como um modo de vida, com uma nudez da vida que não se confunde com a vida nua do homo sacer mas está mais próxima de uma positividade, uma afirmatividade da nudez da vida. 


Diógenes devém um cão justamente contra a filosofia de salão, contra os cãezinhos de butique; isto é, contra o platonismo. Ao mesmo tempo em que Diógenes é nudez da vida, afirmativa, vida ativa, limiar que o homem faz com o mundo, Diógenes é também o sujeito soberano de si; isto é, não tem soberania sobre os outros nem poder de morte sobre eles, mas exerce uma força sobre si, dobra-se – é soberano sem soberania, soberano sem poder. Isso significa que Diógenes pode ser um cão: nem a vida humana sob o poder da morte, nem o poder de morte sobre a vida, mas um intermezzo que foge corajosamente, que se põe entre as figuras simétricas do homo sacer e do soberano político. Diógenes vive como um cão, e isso implica que não possa morrer como um cão. Isso também implica uma nova forma de vida, e uma nova política. 


A parrêsia de Diógenes, segundo Foucault, consistiria essencialmente em mostrar-se em sua nudez natural, para além de todas as convenções artificialmente impostas pela polis. “Sou um cão” significa sentir-se livre para, diante do poder, dizer aquilo que ele é, violenta e francamente – aquilo que quer, de que precisa, o que é verdadeiro e falso, o justo e o injusto. Nos cínicos, há uma relação do dizer-verdadeiro, do franco-falar, com a política que se pauta na exterioridade, no desafio e no risível, quando em Platão temos uma relação entre filosofia e ação política que será mais da ordem da pedagogia que permite produzir a identificação entre os sujeitos que filosofam e que exercem o poder. 


O devir-cão de Diógenes é não-familiar e rompido. O registro de Diógenes Laércio dá conta de como se opera o devir-animal do cínico, que é, em si mesmo, uma ruptura: Diógenes é filho de um homem que trabalha manipulando moedas, que faz as suas trocas, um banqueiro, um trocador, segundo Foucault; por uma atividade de malversação de recursos, Diógenes e seu pai são exilados em Sinope, e diante de Delphos, é Diógenes quem demanda ao deus Apolo um conselho e um parecer, e a prescrição que recebe é ambígua: “falsifica a moeda corrente”, ou “muda os valores correntes”. 


Deleuze sempre foi fascinado pela velocidade absoluta do pensamento; o que o oráculo implanta em Diógenes, com a ambigüidade da fórmula, é o espaço entre a falsificação da moeda e a modificação dos valores. Justamente o espaço do pensamento: o raio, a velocidade absoluta do pensamento que cruza um abismo no destempo. Por isso, Deleuze admira o procedimento filosófico de Spinoza no Livro V da Ethica: ir de um ponto a outro numa velocidade absoluta, esburacando o caminho por onde o pensamento passa; atravessar uma distância infinita, fazer do pensamento um atletismo, uma prova da distância que se ultrapassa. Nesse ponto estamos entremeados com as essências, as singularidades, os perceptos spinozianos – uma velocidade de potência. 


É apenas a partir do momento em que a fórmula nietzscheana “reverter o platonismo” começa a ressoar entre os vãos da história da filosofia que Deleuze abandona a tradição e foge em direção ao novo – fuga corajosa, em que a fala do cínico já não é o que importa, pois importa a melodia entranhada por fora nas palavras; uma escritura cindida dá a ver o espaço que não é interior às palavras, mas ausente delas, em que a expressão desliza, e o pensamento produz a realidade e a filosofia.

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