PICICA: "Deleuze e Guattari devem ter sido os
primeiros a experimentarem os palavrões em filosofia.
Desde a escritura, parece haver um
obstinado procedimento de ruptura na filosofia de Deleuze. Podemos
afirmar, quase sem medo, que pensar, em Deleuze, se torna romper; que
não há pensamento sem ruptura, que não há nada – nem um cu, nem uma lua,
nem um olho – que sobrevivam ao pensamento, que não deixa de ser a
navalha do cão andaluz. O corte da navalha faz o devir proliferar,
arrebentar o olho em lua, assim como em Henri Bergson dividir a duração
deve ser possível apenas ao preço de fazê-la resultar uma nova multiplicidade."
Devir-animal (ou cinismo)
por Murilo Duarte Costa Corrêa
Deleuze não gostava de cães, nem de
gatos. Achava o latido o som mais estúpido da natureza, e detestava que
os gatos ficassem se enovelando nas pernas dos donos; o “esfregar-se”
felino parecia-lhe uma maneira odiosa de se portar. Em verdade, não é
que Deleuze não gostasse de animais de estimação; ele não gostava de
animais familiares. Se tivesse que escolher um bicho, certamente seria
um percevejo, um carrapato, uma pulga, um lobo ou um rato – animais de
matilha, sim, territoriais, mas não familiares. O que fazia Deleuze
detestar cães e gatos não era serem cães ou gatos, mas serem demasiado humanos.
Um cão de butique não serve para um devir-animal, justamente porque
tudo o que vemos são cães de butique. No entanto, Deleuze teve gatos em
casa – que só suportou por causa dos filhos. Ele se admirava de como as
pessoas podiam falar com seus animais. No fundo, era a humanização dos
animais que Deleuze odiava. A fala humana, o gracejo familiar,
obliteravam uma potência qualquer – e um animal despotenciado é tão
odioso quanto o homem, justamente porque é demasiado parecido com ele.
Um cão como Diógenes talvez servisse
bem a Deleuze. Diógenes tinha um devir-cão não-familiar. Era um cão
vagabundo, sem raça, sem dono, provavelmente pulguento, comendo em
público, servindo-se do prazer entre outros, à vista de todos...
Diógenes pisoteava as almofadas da sala de Platão, com seus pés sujos de
barro, e atalhado pelo dono da casa, dizia feliz: “Ah, Platão!, estou a
pisar seu orgulho”. Ou, então, talvez o cão andaluz fosse, quem sabe,
amável aos olhos de Deleuze: ao assistirmos ao filme de Dalí e Buñuel
não cessamos de perguntar “ora, mas que cão? Não há cão nenhum!”. Mas há
populações inteiras de formigas arrastando o piano, e todos se lembram
da navalha. A moça sentada na barbearia: um devir-mulher atinge
um ponto de indiscernibilidade, a visão vacila numa paisagem
não-humana, o olho olha a lua e devém: o barbeiro puxa a navalha e rasga
o olho, e rasga a lua. Um gesto erótico, e meio batailliano: o olho, a história do olho.
Deleuze também não gostava dos surrealistas; eles lhe pareciam grandes
fraudes; mas esse filme não busca significar, nem é discernível que haja
efetivamente um sonho; é mais um estado de embriaguez que dissolve as
passagens: delira-se com a Figura, e não com a representação: o olho que
é a lua (devir-caosmos), a lua que é o olho (um devir-molecular) – o
olho tem quase o tamanho de uma molécula perto da lua. O olho que é o
olho da moça; o olho da moça que é a lua; o olho da história de
Battaille que é o olho, mas também o ovo, e também o cu. A brancura do
olho, a brancura da lua, a bran-cu-ra. Um delírio é feito de
delirar as raças e a história universal, e não de papá-mamã. O
agenciamento, antes de tornar-se outra coisa, é mais ou menos este: o
olho rasgado, a lua cortada, o cu desflorado. Algo próximo do que
acorria à homofonia de Battaille: l’œil e l’œuf. Mas há,
também, o procedimento esquizofrênico operado sobre a linguagem –
escavar na língua materna uma língua menor, estrangeira. Um
procedimento lingüístico inseparável da linguagem, como o fizera Louis
Wolfson, ou Raymond Roussel. Deleuze e Guattari devem ter sido os
primeiros a experimentarem os palavrões em filosofia.
Desde a escritura, parece haver um
obstinado procedimento de ruptura na filosofia de Deleuze. Podemos
afirmar, quase sem medo, que pensar, em Deleuze, se torna romper; que
não há pensamento sem ruptura, que não há nada – nem um cu, nem uma lua,
nem um olho – que sobrevivam ao pensamento, que não deixa de ser a
navalha do cão andaluz. O corte da navalha faz o devir proliferar,
arrebentar o olho em lua, assim como em Henri Bergson dividir a duração
deve ser possível apenas ao preço de fazê-la resultar uma nova multiplicidade.
Bem assim o devir-animal de Diógenes, que vira um cão não-familiar. Michel Foucault nos conta como Diógenes inaugura a parrêsia cínica como um modo de vida, com uma nudez da vida que não se confunde com a vida nua do homo sacer mas está mais próxima de uma positividade, uma afirmatividade da nudez da vida.
Diógenes devém um cão justamente
contra a filosofia de salão, contra os cãezinhos de butique; isto é,
contra o platonismo. Ao mesmo tempo em que Diógenes é nudez da vida,
afirmativa, vida ativa, limiar que o homem faz com o mundo, Diógenes é
também o sujeito soberano de si; isto é, não tem soberania sobre os
outros nem poder de morte sobre eles, mas exerce uma força sobre si,
dobra-se – é soberano sem soberania, soberano sem poder. Isso significa
que Diógenes pode ser um cão: nem a vida humana sob o poder da morte,
nem o poder de morte sobre a vida, mas um intermezzo que foge corajosamente, que se põe entre as figuras simétricas do homo sacer
e do soberano político. Diógenes vive como um cão, e isso implica que
não possa morrer como um cão. Isso também implica uma nova forma de
vida, e uma nova política.
A parrêsia de Diógenes,
segundo Foucault, consistiria essencialmente em mostrar-se em sua nudez
natural, para além de todas as convenções artificialmente impostas pela polis.
“Sou um cão” significa sentir-se livre para, diante do poder, dizer
aquilo que ele é, violenta e francamente – aquilo que quer, de que
precisa, o que é verdadeiro e falso, o justo e o injusto. Nos cínicos,
há uma relação do dizer-verdadeiro, do franco-falar, com a política que
se pauta na exterioridade, no desafio e no risível, quando em Platão
temos uma relação entre filosofia e ação política que será mais da ordem
da pedagogia que permite produzir a identificação entre os sujeitos que
filosofam e que exercem o poder.
O devir-cão de Diógenes é
não-familiar e rompido. O registro de Diógenes Laércio dá conta de como
se opera o devir-animal do cínico, que é, em si mesmo, uma ruptura:
Diógenes é filho de um homem que trabalha manipulando moedas, que faz as
suas trocas, um banqueiro, um trocador, segundo Foucault; por uma
atividade de malversação de recursos, Diógenes e seu pai são exilados em
Sinope, e diante de Delphos, é Diógenes quem demanda ao deus
Apolo um conselho e um parecer, e a prescrição que recebe é ambígua:
“falsifica a moeda corrente”, ou “muda os valores correntes”.
Deleuze sempre foi fascinado pela
velocidade absoluta do pensamento; o que o oráculo implanta em Diógenes,
com a ambigüidade da fórmula, é o espaço entre a falsificação da moeda e
a modificação dos valores. Justamente o espaço do pensamento: o raio, a
velocidade absoluta do pensamento que cruza um abismo no destempo. Por
isso, Deleuze admira o procedimento filosófico de Spinoza no Livro V da Ethica:
ir de um ponto a outro numa velocidade absoluta, esburacando o caminho
por onde o pensamento passa; atravessar uma distância infinita, fazer do
pensamento um atletismo, uma prova da distância que se ultrapassa.
Nesse ponto estamos entremeados com as essências, as singularidades, os
perceptos spinozianos – uma velocidade de potência.
É apenas a partir do momento em que a
fórmula nietzscheana “reverter o platonismo” começa a ressoar entre os
vãos da história da filosofia que Deleuze abandona a tradição e foge em
direção ao novo – fuga corajosa, em que a fala do cínico já não
é o que importa, pois importa a melodia entranhada por fora nas
palavras; uma escritura cindida dá a ver o espaço que não é interior às
palavras, mas ausente delas, em que a expressão desliza, e o pensamento
produz a realidade e a filosofia.
Fonte: Cultura e Barbárie
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