PICICA: "A Constituição brasileira,
fruto das lutas sociais travadas nos anos 1980 para construção de uma
cultura de direitos coletivos no Brasil, eleva a política nacional de
saúde a um patamar desmercantilizado, vedando o repasse de recursos
públicos para auxílio ou subvenção às instituições privadas com fins
lucrativos."
Política social para todos? Quem patrocina e a quem se destina?
Ialê Falleiros*
Difunde-se, no pensamento político e social brasileiro, a crítica ao modelo neoliberal de Estado e sua agenda para as políticas sociais, pautada na focalização, na privatização, na descentralização da execução e numa participação pulverizada, utilizada como instrumento de ratificação das decisões tomadas a nível central. Um novo modelo de Estado vem sendo proposto, inspirado no ideário denominado desenvolvimentista, e, em seu interior, as políticas sociais assumem renovadas feições. O Estado volta a ser compreendido como uma arena onde os interesses públicos podem ser desenvolvidos – e não sobrepostos aos interesses privados.
Essa perspectiva se inscreve no contexto posterior à ascensão da socialdemocracia reformada ao executivo central e efetivação da reforma da aparelhagem estatal nos moldes gerenciais. A reforma do Estado estruturada no país, nos governos de FHC e Lula, instituiu o desenvolvimento econômico e social por meio das parcerias. As políticas sociais afirmadas constitucionalmente foram, aos poucos, perdendo o caráter originário de direito de cidadania, e passam a ser compreendidas como serviços públicos nãoexclusivos do Estado.
No novo ordenamento, o núcleo estratégico se atribui o papel de formulador da política, delegando sua execução à chamada sociedade civil ativa, composta por entidades de direito privado de interesse público e mesmo a instituições privadas lucrativas. O Estado agora financia, equipa, remunera, avalia e incentiva de diversas outras formas (com isenções, linhas de crédito etc.) os tais serviços nãoexclusivos (educação, saúde, cultura), abrindo novos horizontes para os negócios na área de serviços sociais.
A profundidade dessa estruturação pode ser observada no arcabouço legal que instituiu as Organizações Sociais (OS) (lei 9.637/1998); que criou a figura jurídica da Organização Social de Interesse Público (OSCIP) (lei 9.790/1999); e que estabeleceu as parcerias público-privadas na provisão de serviços sociais (PPP) / (lei 11.079/2004).
Entre as novas regras para a prestação dos serviços públicos de saúde por OS, por exemplo, afirma-se a contratação de trabalhadores sem concurso público e demissão por não cumprimento de metas de desempenho, compras sem licitação, obtenção de recursos extra orçamentários pela venda de serviços e pela celebração de convênios com planos privados de saúde e seguros-saúde.
A lei autoriza, ainda, que o fundo público de saúde seja administrado por uma fundação que contrate diversos prestadores, ou mesmo diretamente por uma associação civil, sem restrição à aplicação de recursos no mercado financeiro.
Ainda, ao longo dos anos 1990 e primeira década de 2000, verifica-se o aporte de recursos para reestruturação financeira e financiamento de débitos de hospitais filantrópicos (Caixa Hospitais, em 1998 e, mais recentemente, o Timemania, em 2006), a diminuição da quantidade de leitos para o atendimento ao SUS para concessão do certificado de filantropia (decreto n. 4481/2002), programas de empréstimos para a rede hospitalar prestadora de serviços ao SUS (REFORSUS) e a instituição da “dupla porta”, prática do duplo (e desigual) atendimento, por hospitais privados conveniados ao SUS e pelos Hospitais Universitários, aos consumidores dos planos e seguros de saúde e aos usuários do sistema público, que compartilham instalações, equipamentos e profissionais de saúde com duplo vínculo, recebendo valores distintos pelos procedimentos pagos pelo setor “suplementar” e pelo SUS.
Como parte da política do Estado, formas emergentes de financiamento (planos individuais e de grupo) vêm garantindo o dinamismo e a autonomia dos serviços privados na área, por meio da autorização legal para o repasse pelas empresas das despesas com planos de saúde de seus empregados aos preços dos produtos como custos operacionais, deduzindo-o da renda bruta e do cálculo para o imposto de renda; da permissão legal de deduções do gasto com saúde do imposto de renda de pessoa física e jurídica (lei 9250/1995); e dos incentivos fiscais e isenções de tributação a entidades sem fins lucrativos incidentes sobre cooperativas médicas e medicinas de grupo vinculadas a instituições filantrópicas.
Neste contexto, cabe ainda falar em forças publicizantes em defesa do Sistema Único de Saúde? Acreditamos que sim. A Constituição brasileira, fruto das lutas sociais travadas nos anos 1980 para construção de uma cultura de direitos coletivos no Brasil, eleva a política nacional de saúde a um patamar desmercantilizado, vedando o repasse de recursos públicos para auxílio ou subvenção às instituições privadas com fins lucrativos.
A naturalização da execução das políticas sociais por entes privados como vetor da política social no Brasil tem como elemento central a ampliação e maior complexidade dos interesses empresariais nas últimas duas décadas. A transferência direta e indireta de recursos públicos para prestadores privados de saúde, contudo, embora constante, não é algo “natural”. É expressão de um projeto de sociedade que vem se impondo há pelo menos cinco décadas, mas nas últimas duas décadas assume um novo ingrediente: a “colaboração”. Tornam-se ainda mais nebulosos os interesses envolvidos na realização das políticas sociais.
A colaboração apregoada pelas entidades empresariais consiste na afirmação do individualismo como valor moral radical, incorporando a competitividade e a corresponsabilidade ambiental e social individual; corresponde ao empreendedorismo e a aceitação das modernas técnicas de gestão empresarial; exprime a noção de que o Estado deve garantir mínimos sociais para acabar com a pobreza extrema e estimular a inclusão social via trabalho, consumo, e crédito; e reforça a ideia de que os que podem pagar por educação e saúde é justo que o façam, num contexto em que os gastos do Estado devem estar direcionados, em última instância, para o fomento ao chamado setor produtivo rumo ao desenvolvimento.
Nesse sentido, o próprio desenvolvimento precisa ser qualificado se quisermos evidenciar quem patrocina e a quem se destina. É urgente que pensadores, políticos e militantes que acreditam nos valores universalistas e na construção de uma cultura de direitos recoloquem em pauta o debate sobre a política estatal de mercantilização das políticas sociais. Que possam, assim, contribuir para o desvelamento das formas de imposição, com base em sofisticados métodos de produção do consenso, de um projeto societário produtor de injustiças e desigualdades e, quiçá, contribuir para a rearticulação das forças publicizantes no tecido social, com vistas a sua superação.
* – Doutora em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz. Integrante do Coletivo de Estudos de Política Educacional e do Núcleo de Estudos em Democratização e Sociabilidade na Saúde
Texto publicado originalmente na rede Plataforma Política Social.
Difunde-se, no pensamento político e social brasileiro, a crítica ao modelo neoliberal de Estado e sua agenda para as políticas sociais, pautada na focalização, na privatização, na descentralização da execução e numa participação pulverizada, utilizada como instrumento de ratificação das decisões tomadas a nível central. Um novo modelo de Estado vem sendo proposto, inspirado no ideário denominado desenvolvimentista, e, em seu interior, as políticas sociais assumem renovadas feições. O Estado volta a ser compreendido como uma arena onde os interesses públicos podem ser desenvolvidos – e não sobrepostos aos interesses privados.
Essa perspectiva se inscreve no contexto posterior à ascensão da socialdemocracia reformada ao executivo central e efetivação da reforma da aparelhagem estatal nos moldes gerenciais. A reforma do Estado estruturada no país, nos governos de FHC e Lula, instituiu o desenvolvimento econômico e social por meio das parcerias. As políticas sociais afirmadas constitucionalmente foram, aos poucos, perdendo o caráter originário de direito de cidadania, e passam a ser compreendidas como serviços públicos nãoexclusivos do Estado.
No novo ordenamento, o núcleo estratégico se atribui o papel de formulador da política, delegando sua execução à chamada sociedade civil ativa, composta por entidades de direito privado de interesse público e mesmo a instituições privadas lucrativas. O Estado agora financia, equipa, remunera, avalia e incentiva de diversas outras formas (com isenções, linhas de crédito etc.) os tais serviços nãoexclusivos (educação, saúde, cultura), abrindo novos horizontes para os negócios na área de serviços sociais.
A profundidade dessa estruturação pode ser observada no arcabouço legal que instituiu as Organizações Sociais (OS) (lei 9.637/1998); que criou a figura jurídica da Organização Social de Interesse Público (OSCIP) (lei 9.790/1999); e que estabeleceu as parcerias público-privadas na provisão de serviços sociais (PPP) / (lei 11.079/2004).
Entre as novas regras para a prestação dos serviços públicos de saúde por OS, por exemplo, afirma-se a contratação de trabalhadores sem concurso público e demissão por não cumprimento de metas de desempenho, compras sem licitação, obtenção de recursos extra orçamentários pela venda de serviços e pela celebração de convênios com planos privados de saúde e seguros-saúde.
A lei autoriza, ainda, que o fundo público de saúde seja administrado por uma fundação que contrate diversos prestadores, ou mesmo diretamente por uma associação civil, sem restrição à aplicação de recursos no mercado financeiro.
Ainda, ao longo dos anos 1990 e primeira década de 2000, verifica-se o aporte de recursos para reestruturação financeira e financiamento de débitos de hospitais filantrópicos (Caixa Hospitais, em 1998 e, mais recentemente, o Timemania, em 2006), a diminuição da quantidade de leitos para o atendimento ao SUS para concessão do certificado de filantropia (decreto n. 4481/2002), programas de empréstimos para a rede hospitalar prestadora de serviços ao SUS (REFORSUS) e a instituição da “dupla porta”, prática do duplo (e desigual) atendimento, por hospitais privados conveniados ao SUS e pelos Hospitais Universitários, aos consumidores dos planos e seguros de saúde e aos usuários do sistema público, que compartilham instalações, equipamentos e profissionais de saúde com duplo vínculo, recebendo valores distintos pelos procedimentos pagos pelo setor “suplementar” e pelo SUS.
Como parte da política do Estado, formas emergentes de financiamento (planos individuais e de grupo) vêm garantindo o dinamismo e a autonomia dos serviços privados na área, por meio da autorização legal para o repasse pelas empresas das despesas com planos de saúde de seus empregados aos preços dos produtos como custos operacionais, deduzindo-o da renda bruta e do cálculo para o imposto de renda; da permissão legal de deduções do gasto com saúde do imposto de renda de pessoa física e jurídica (lei 9250/1995); e dos incentivos fiscais e isenções de tributação a entidades sem fins lucrativos incidentes sobre cooperativas médicas e medicinas de grupo vinculadas a instituições filantrópicas.
Neste contexto, cabe ainda falar em forças publicizantes em defesa do Sistema Único de Saúde? Acreditamos que sim. A Constituição brasileira, fruto das lutas sociais travadas nos anos 1980 para construção de uma cultura de direitos coletivos no Brasil, eleva a política nacional de saúde a um patamar desmercantilizado, vedando o repasse de recursos públicos para auxílio ou subvenção às instituições privadas com fins lucrativos.
A naturalização da execução das políticas sociais por entes privados como vetor da política social no Brasil tem como elemento central a ampliação e maior complexidade dos interesses empresariais nas últimas duas décadas. A transferência direta e indireta de recursos públicos para prestadores privados de saúde, contudo, embora constante, não é algo “natural”. É expressão de um projeto de sociedade que vem se impondo há pelo menos cinco décadas, mas nas últimas duas décadas assume um novo ingrediente: a “colaboração”. Tornam-se ainda mais nebulosos os interesses envolvidos na realização das políticas sociais.
A colaboração apregoada pelas entidades empresariais consiste na afirmação do individualismo como valor moral radical, incorporando a competitividade e a corresponsabilidade ambiental e social individual; corresponde ao empreendedorismo e a aceitação das modernas técnicas de gestão empresarial; exprime a noção de que o Estado deve garantir mínimos sociais para acabar com a pobreza extrema e estimular a inclusão social via trabalho, consumo, e crédito; e reforça a ideia de que os que podem pagar por educação e saúde é justo que o façam, num contexto em que os gastos do Estado devem estar direcionados, em última instância, para o fomento ao chamado setor produtivo rumo ao desenvolvimento.
Nesse sentido, o próprio desenvolvimento precisa ser qualificado se quisermos evidenciar quem patrocina e a quem se destina. É urgente que pensadores, políticos e militantes que acreditam nos valores universalistas e na construção de uma cultura de direitos recoloquem em pauta o debate sobre a política estatal de mercantilização das políticas sociais. Que possam, assim, contribuir para o desvelamento das formas de imposição, com base em sofisticados métodos de produção do consenso, de um projeto societário produtor de injustiças e desigualdades e, quiçá, contribuir para a rearticulação das forças publicizantes no tecido social, com vistas a sua superação.
* – Doutora em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz. Integrante do Coletivo de Estudos de Política Educacional e do Núcleo de Estudos em Democratização e Sociabilidade na Saúde
Texto publicado originalmente na rede Plataforma Política Social.
Fonte: Cebes
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