novembro 28, 2013

"UPP x tráfico: um falso problema", por Bruno Cava

PICICA: "Historicamente no Rio, o tráfico armado das facções nunca foi “estado paralelo”. As facções são produto do estado, e nunca cessaram de estabelecer-lhe uma relação interna que, enquanto causa e efeito de poder, é também expressão do estado."
 
UPP x tráfico: um falso problema
 
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A principal justificativa para a política de pacificação no Rio de Janeiro consiste em definir-se como o oposto do tráfico. O estado estaria ocupando áreas antes dominadas por facções ligadas ao tráfico de drogas. Com a pacificação, os fuzis do “estado paralelo” cedem lugar às armas da polícia militar. Símbolos do CV, TCC ou ADA são substituídos pelas bandeiras nacional e estadual. O império da lei entra em vigor, decretando o fim da lei do terror. As UPPs se tornam a cabeça-de-ponte para uma política de retomada do território pelas autoridades, seguida de um conjunto de políticas sociais  e uma virada cultural, voltadas às populações das comunidades pacificadas.

A oposição entre tráfico e UPP é então usada para legitimar a atual política de segurança pública, como modelo de sucesso e produto de exportação made in Rio. Essa oposição UPP x tráfico, no entanto, é um falso problema. Falso nem tanto por não corresponder à verdade: na medida em que existe toda uma produção de discurso ao redor da oposição que, a seu modo, é uma produção de verdade. É falso porque coloca o problema em coordenadas politicamente paralisantes, segundo uma verdade que não pode ser aceita. Falso porque conforma uma atitude de aceitação passiva, acossando através da chantagem do “menos pior”.

Historicamente no Rio, o tráfico armado das facções nunca foi “estado paralelo”. As facções são produto do estado, e nunca cessaram de estabelecer-lhe uma relação interna que, enquanto causa e efeito de poder, é também expressão do estado.

Em primeiro lugar, porque o estado plantou as condições de existência das facções armadas. Seja inventando o “problema das drogas”, ao definir um campo de ilicitude ao redor de determinadas substâncias consideradas tóxicas à “sociedade de bem”. Isto é, à ordem social. Em vez de questão de saúde pública ou fiscalização sanitária, o circuito produção-distribuição-consumo para essas substâncias específicas é transferido estrategicamente à esfera de ação penal e policial. Seja exercendo o papel de organizador do próprio crime, já que o crime organizado é resultado histórico do sistema prisional e das íntimas negociações territoriais e econômicas entre agentes a serviço do estado e a ponta varejista da cadeia comercial das drogas ilícitas — tudo isso que superestrutura e confere duração às organizações criminosas. Só alguém muito ingênuo para acreditar que a parte do leão do tráfico fique na favela.

Em segundo lugar, porque o estado está presente no inteiro percurso produtivo das drogas ilícitas, sorvendo mais-valor dessa gigantesca economia de ilegalidades,  na forma de arregos, taxas, pedágios, desvios, lavagens, confiscos e derramas. Os fluxos de mais-valor são então capitalizados no sistema financeiro, viabilizam campanhas eleitorais e ajudam a reproduzir a ordem social que, a seu passo, garante o funcionamento geral do sistema. Este depende, obviamente, da invenção do tráfico com origem do mal, bem como da sociedade de bem (sobretudo “nossos-filhos”) como a grande figura ameaçada e a proteger-se. A sociedade, como ensinava Foucault, é efeito do próprio regime de poder, sem relação de exterioridade em relação ao estado. Cada sociedade tem o Para isso, nada mais cômodo do que montar sobre a divisão racista e colonial: do lado do tráfico, o negro e a favela; do lado do estado, o branco e o asfalto.

As UPP, portanto, não podem ser explicadas pela vitória do estado contra o “estado paralelo”, do estado contra o não-estado, ou do império da lei contra a anomia. O estado sempre esteve lá. A favela, como lugar de crime, horror e inferno, é uma construção estatal, e participam dela aqueles que a reforçam, sejam ou não funcionários “oficiais”.

Com a pacificação, os representantes do estado não deixaram de negociar com o tráfico, principalmente com a facção mais domesticável, o Terceiro Comando. Isso quando não assumiram eles próprios o varejo, com a milícia (o exemplo máximo de como o estado organiza o crime e vice-versa). Os repiques eventuais entre policiais e traficantes estão mais relacionados a atritos na negociação, do que a grandes disputas de território e gestão. Na entrevista do pesquisador Paulo Roberto, da Fiocruz, depois de sua libertação, ele diz que, quando chegou ao presídio, deram-lhe quatro opções para a ala em que gostaria de ficar: Comando Vermelho, Povo de Israel, Amigo dos Amigos, milícia ou “neutros” (a versão prisional do “n.d.a.”). Por que não aparece, entre as alternativas, o TC?

O verdadeiro problema aparece quando consideramos a instalação da UPP como substituição de uma tecnologia do estado por outra. Não mais terceirizar o domínio territorial às facções e jogo do bicho, para adotar outra forma, mais pervasiva de ação, mais adequada às necessidades. As UPPs são signo de um novo momento do controle social do Rio, que vem junto com a expansão capitalista. O capitalismo, na sua continuada e voraz expansão, dissolve formas antigas a fim de distender as próprias contradições e crises.

Antes, quando a favela apresentava baixíssima renda social, a lógica se assentava sobre a velha tarefa escravocrata, legada desde os tempos do quilombo de Catumbi e da Real Guarda Portuguesa, que consiste em “manter os negros sob controle”. Era uma matriz mais disciplinar, para novamente usar uma categoria foucaultiana. Com o aumento da renda dos últimos tempos, conquistado sobretudo pela mobilização popular, o morador da favela ou periferia foi incluído/se incluiu no mercado de trabalho e consumo. Nesta fase, o número de miseráveis cai exponencialmente, ao mesmo tempo em que se generaliza a condição socioeconômica da dita “Classe C”: renda ainda relativamente baixa, mas consumidor, com conta bancária e telefone, potencial acesso à universidade e emprego formal, e com possibilidade de auferir crédito e mesmo empreender.

Agora, ao funcionamento do capitalismo, interessa aumentar a margem de mais-valor, antes associada apenas às oportunidades da economia de ilegalidades, onde o morro servia de desaguadouro varejista. Agora, vale a pena explorar também os serviços de telefonia, água, luz, internet, transporte, segurança. Não precisam subir o morro apenas os esquadrões da morte, mas também as agências bancárias, os cobradores das concessionárias, o comércio formalizado, o transporte formalizado, os turistas e os arquitetos. Com a inclusão social da última década, tudo isso agora passou a ser visto como uma imensa jazida humana para ser explorada. Acontece uma “virada ao pobre” pelo consenso de governabilidade. A UPP e a política de pacificação fazem parte dessa tecnologia capitalista de estado.

O drama é que o conflito social não desaparece com o avanço da franja capitalista. O racismo é redimensionado, mas permanece violento. A desigualdade continua tensionando as relações. A brutalidade enraizada do colonialismo segue embutida nas práticas e na cultura. Mas comete erro de avaliação quem pensa que o aumento do poder de consumo e renda contribui, por si sós, para pacificar as pessoas. Quanto mais conquistam, mais se empoderam e mais querem conquistar, e mais qualidades e recursos podem ser mobilizados para lutar politicamente. Quanto melhor, melhor. São consumidores, mas o consumo também extravasa uma dimensão produtiva: pode tornar as pessoas mais produtoras, ao se reapropriarem das ferramentas e saberes, subjetivando-se de maneira autônoma ao capital.

Além disso, a estratégia exaspera a contradição da ação estatal. O estado precisa propagandear o sucesso da nova paz, embora essa paz continue sendo do medo, do domínio armado e de fundo racista, — cujo limite está na tortura e execução sumária das Amarildas e Amarildos, — sobre o território. A verdade do poder — a guerra, a guerra contra negro, índio, pobre — acaba se expondo quanto mais o estado tenta definir-se como o oposto da violência.

O que é melhor: UPP ou tráfico? Nenhum. Os dois são “piores”. Essa é uma falsa opção. Porque foram os próprios negros, os pobres que conquistaram todos os direitos que, precariamente, hoje podem exercer. A expansão capitalista significa também o reconhecimento inevitável de uma potência, uma riqueza e uma rede de produção que, no passado, eram simplesmente usurpadas, repondo-se em seu lugar o signo do horror. O capital vem atualmente para capturar essa força viva, transformando seus vetores mais potentes em mercado explorável e controlável. É aí que a UPP tenta se inscrever: pacificar para explorar, para conservar a desigualdade, para manter a panela de pressão sob controle, enquanto caudalosos rios de valor descem o morro.

Portanto, o  nosso problema só merece ser recolocado saindo dele em diagonal, para adotar a ideia de outro filósofo, Gilles Deleuze. O verdadeiro problema é aquele que condiciona uma pragmática à altura de nossa esperança e alegria, e que portanto está implicado no desejo motriz de nossas vidas. Muito além do poder do crime e do crime do poder, de estados de controle, paralelos, de falso direito ou exceção. Todo problema que importa é imediatamente uma teoria implicada da ação.

Hoje, o terceiro excluído, entre o estado e o tráfico, é o manifestante. As manifestações propiciam a luta em termos inéditos: nem polícia, nem traficante. Outra coisa. Diferente. Não admira serem vigiadas com olhos de doberman. Eis o xis da questão, o tamanco nas engrenagens de dicotomias falsas. O “verdadeiro” do problema, aqui, é a verdade da paz: a possibilidade de conquistar os direitos sem, no processo, ceder a dignidade, a nossa vida comum.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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