PICICA: “A maioria dos políticos tem cabelos
brancos e coração negro. Queremos pessoas que tenham cabelos negros e
coração branco”. A frase, divulgada na internet no âmbito das
manifestações populares da Tunísia em 2011, nos faz lembrar da jovem de
cabelos negros que lutou contra a ditadura no Brasil décadas atrás.
Hoje, eleita presidenta, não possui cabelos brancos porque estes são
tingidos e arrumados pelo cabeleireiro das celebridades, mas tem ouvidos
que não escutam o clamor das ruas, olhos que não enxergam a brutal
repressão policial nas manifestações e um coração enegrecido pela
nefasta política de “governabilidade”.
O Coração Enegrecido da Antropóloga
[Arthur Coelho Bezerra]
“A maioria dos políticos tem cabelos
brancos e coração negro. Queremos pessoas que tenham cabelos negros e
coração branco”. A frase, divulgada na internet no âmbito das
manifestações populares da Tunísia em 2011, nos faz lembrar da jovem de
cabelos negros que lutou contra a ditadura no Brasil décadas atrás.
Hoje, eleita presidenta, não possui cabelos brancos porque estes são
tingidos e arrumados pelo cabeleireiro das celebridades, mas tem ouvidos
que não escutam o clamor das ruas, olhos que não enxergam a brutal
repressão policial nas manifestações e um coração enegrecido pela
nefasta política de “governabilidade”.
No entanto, a frase tunisiana não se
limita à classe política: ela também cai como uma luva para parte da
intelectualidade brasileira. Não me refiro àqueles que sempre defenderam
o crescimento econômico a qualquer custo, que sempre compraram a Veja
ou que se deliciam com as diatribes de um Olavo de Carvalho. Falo
daqueles que, como a presidenta, sofreram perseguição política na época
da ditadura; que possuem uma trajetória ligada à defesa dos direitos dos
mais pobres; que realizaram pesquisas em comunidades carentes,
revelando apreço pela cultura popular e esforçando-se para desconstruir
mitos como a correlação causal entre pobreza e criminalidade. Falo de
gente como a professora Alba Zaluar, que, em artigo publicado na terça
passada na Folha de São Paulo, mostra como seu coração, mais que seus
cabelos, traz as tintas de um pensamento muito distante daquele que
conheci em seus livros. Frente a um sentimento de indignação,
compartilhado por muitos amigos sociólogos e midiativistas, achei
necessário questionar alguns dos argumentos expostos em seu artigo… (o
artigo pode ser lido em http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/11/1370009-alba-zaluar-taticas-fora-de-lugar.shtml )
Primeiramente, cabe frisar que Alba
Zaluar é uma das mais importantes cientistas sociais no que tange o
campo da segurança pública, e sua pesquisa de campo feita na favela
Cidade de Deus, no início dos anos 1980, é até hoje uma importante
referência para todos que se debruçam sobre temas como tráfico de
drogas, criminalidade e violência no Rio de Janeiro. Não obstante,
imagino que se a antropóloga tivesse feito sua imersão etnográfica no
ano passado, no Morro da Providência, e acompanhasse a Secretaria
Municipal de Habitação marcando, como gado, centenas de casas humildes
com vistas à desapropriação e demolição, talvez não condenasse a atuação
dos grupos que tentam “impedir a realização da Copa e da Olimpíada, que
movimentam a economia das cidades e do país”. Se estivesse na escadaria
da Câmara Municipal do Rio de Janeiro no dia 15 de outubro, quando
cerca de 200 pessoas foram presas e muitas levadas para presídios por
estarem manifestando seu direito de protestar, não afirmaria que “ainda
bem que o Estado democrático de Direito está se consolidando no Brasil”.
Se entendesse que a luta do Movimento Passe Livre é contra a política
de transporte a serviço do automóvel – cujas vendas o governo subsidia e
que tem como efeito o roubo do tempo de vida dos cidadãos, que passam
horas espremidos em coletivos todos os dias – não se atreveria a culpar
manifestantes que “obstruem o trânsito por horas depois das passeatas
pacíficas com veículos ou lixo queimados, objetos variados espalhados no
meio da rua e a formação do bloco de confronto com a polícia, impedindo
que trabalhadores cheguem em casa para seu sono reparador”.
Alba inicia seu texto dizendo que a
globalização é um “um processo irresistível, até mesmo nas novas formas
de protesto contra diferentes governos em diferentes contextos sociais
no nosso vasto e lindo planeta”, e na sequência afirma que “os “black
blocs”, a Mídia Ninja, com seus múltiplos grupelhos, são contra a
globalização, mas nada mais global do que seus nomes de super-heróis e
suas táticas de “occupy”, ditas sempre em inglês”. Teria a autora
apontado o mesmo anacronismo nos milhares de egípcios que, ao ocupar a
praça Tahir, proclamaram “a Tunísia é a solução”, em referência aos
protestos daqueles país? Ou em relação aos Indignados da Espanha que, em
suas acampadas, gritavam “a Islândia é a solução”, em referência à
Revolução das Panelas na Islândia em 2008? Ou talvez nos próprios
norteamericanos, que batizaram de Praça Tahir o seu primeiro acampamento
em Wall Street? Seria preguiça ou má fé da consagrada antropóloga em
não diferenciar a circulação e o compartilhamento mundial de informação e
cultura, uma forma de globalização jamais questionada pelos protestos,
da luta contra uma globalização econômica, fundada em grandes blocos de
livre mercado sob os auspícios da Organização Mundial do Comércio?
Foi precisamente a luta contra o bloco
econômico da América do Norte – o NAFTA, cuja implementação no México
foi acompanhada de uma política de remoções que usurpou o direito
secular de terras aos povos indígenas – que pautou a revolta de Chiapas
em 1994. Esta, por sua vez, serviu de exemplo para o levante de Seattle
contra a reunião da OMC em 1999, e cada uma das manifestações seguintes
– de Praga em 2000 e Gênova em 2001, passando pelas manifestações na
Europa e no mundo Árabe em 2011 e desembocando no Brasil em 2013 –
serviu de combustível para levantes vindouros. É claro que cada
movimento tem suas particularidades, seja nas reivindicações, nas formas
de ocupação do espaço público ou mesmo no uso das redes digitais.
Entretanto, há similaridades entre a grande maioria deles, especialmente
no que tange à influência do campo econômico na agenda política e à
distância das vozes populares do cenário político, que vem acompanhada
de uma crítica não à democracia em si, mas à representatividade
político-partidária tal como se vê nos países ditos democráticos.
Atos de destruição contra símbolos do
capitalismo, como bancos, cadeias de fast food e outras marcas
multinacionais, foram verificados em todos os protestos supracitados,
estando longe de ser uma exclusividade das manifestações brasileiras.
Nesse sentido, é desanimador que uma pessoa respeitável e
intelectualizada reforce o estigma do brasileiro ao escrever que, por
aqui, se copiam as táticas black blocs “mas não a finalidade política
destes, que é o combate ao capital financeiro”, e que os manifestantes
tupiniquins “afirmam que combatem o capitalismo, inimigo maior da
humanidade, mas escolheram alvos no mínimo deslocados”. Seria o Palácio
Guanabara um alvo deslocado? Quem sabe o Palácio Pedro Ernesto, mais
conhecido como Câmara Municipal do Rio de Janeiro? Ou o Maracanã,
durante um importante jogo da Copa das Confederações, transmitido para o
mundo? Ou então o Windsor Barra Hotel, durante o leilão em que a
extração de bilhões de barris de petróleo era negociada sem nenhum tipo
de esclarecimento à população? E se eram alvos tão deslocados, por que é
que forças municipais, estaduais e até nacionais de segurança foram
enviadas para tais sítios para cobrir manifestantes de porrada, gás
lacrimogêneo, spray de pimenta e balas de borracha?
O mais triste disso tudo é que qualquer
tentativa de desconstruir o equivocado texto da renomada antropóloga
jamais terá o alcance do texto em si, publicado por um dos maiores
veículos da grande imprensa brasileira e totalmente alinhado com o
discurso dos políticos de coração enegrecido. Como cantou certa vez Mano
Brown, “era a brecha que o sistema queria”. Quanto a Alba, seriam mais
apropriados os versos de Cazuza: “meus heróis morreram de overdose; meus
inimigos estão no poder”.
Fonte: Revista Pittacos
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