novembro 15, 2013

"Para um destinatário desconhecido", por Gil Vicentes Tavares

PICICA: "A obra é uma denúncia da autora à ascensão do nazismo, na Alemanha, e à perseguição e discriminação dos judeus no regime de Adolf Hitler. A autora também denuncia as vistas grossas do resto do mundo a essa ascensão do mal, pois os nazistas começaram a perseguir, atacar judeus, começaram um processo de rearmamento e o resto do mundo, além de não protestar, por vezes até louvou essa nova Alemanha; e nos Estados Unidos não foi diferente." 

  • Gil Vicente Tavares

    Encenador, dramaturgo, compositor e articulista. Doutor em artes cênicas e diretor artístico do Teatro NU.

Para um destinatário desconhecido



O texto abaixo foi escrito para ser lido como comentário para a Rádio Metrópole, a pedido de Mario Kertsz. Resolvi publicá-lo aqui no site por conta da estreia da versão teatral que fiz da obra.
Na minha estreia, aqui, resolvi falar do livro Destinatário desconhecido, de Kathrine Kressmann Taylor, da editora Companhia das Letras. Conheci essa novela, escrita em formato de cartas, por conta de um convite para adaptá-la ao teatro.

A obra é uma denúncia da autora à ascensão do nazismo, na Alemanha, e à perseguição e discriminação dos judeus no regime de Adolf Hitler. A autora também denuncia as vistas grossas do resto do mundo a essa ascensão do mal, pois os nazistas começaram a perseguir, atacar judeus, começaram um processo de rearmamento e o resto do mundo, além de não protestar, por vezes até louvou essa nova Alemanha; e nos Estados Unidos não foi diferente.

A história é a seguinte: Dois sócios alemães, um deles judeu – Max Eisenstein, têm uma galeria de arte em São Francisco, nos Estados Unidos. É 1932 e Martin Schulse, o outro sócio, resolve voltar com a família para a terra natal. Além da bela amizade, que os une quase como uma família, Martin, mesmo casado, teve um caso com a irmã de Max, Grisella, uma atriz, obviamente, judia. Esse caso ficou para trás, restando apenas o grande afeto entre Martin e Grisella, a despeito das marcas ainda latentes no peito.

Martin volta a Munique e vê uma Alemanha pobre, um povo sem esperanças, e sua condição financeira faz dele um homem rico. Prontamente passa a frequentar a elite de sua cidade, assume um cargo público e adquire um status privilegiado.

Contudo, chega o ano de 1933 e Max ouve, dos Estados Unidos, falar da ascensão de Hitler, e escreve preocupado a Martin. Em princípio, Martin ainda fica desconfiado com o nazismo, apesar de achar Hitler um mal necessário. Contudo, ele vai se inebriando das ideias preconceituosas, totalitaristas e antissemíticas do chanceler alemão e, com isso, a amizade dos dois começa a ser abalada. Martin pede para Max não mais enviar cartas a ele, pois Max é judeu e poderia pegar mal à sua imagem, a relação vai se corroendo, até que aparece Grisella na história. Ela é hostilizada nos palcos alemães e Max pede, pela amizade e história dos dois, que Martin dê guarida à sua irmã.

A história desenrola-se, a partir daí, mostrando o quanto uma ideologia pode destruir o homem, mas, acima de tudo, o quanto um homem deixa-se ser destruído por uma ideologia.

A novela, um grito desesperado de uma americana, escrita em 1938 – um ano antes de eclodir a segunda guerra mundial – pode ser vista, através da pátina do tempo, de forma até óbvia, ingênua, no que tange à conversa dos dois, às palavras de ordem e situações; contudo, o que fica de mais rico da obra é que ela trata do indivíduo.

O efeito nas massas só ocorre porque, um a um, os homens vão se uniformizando, vão se desconstruindo, vão se mediocrizando. Jamais houve um movimento seguido pelas massas que tivesse efeito positivo na história da humanidade. A partir do momento que podemos chamar de “massa” um conjunto de humanos que se juntam em torno de um ídolo, ideologia, em torno de segurança ou em fuga de um perigo, podemos ver nessa massa uma descaracterização do que nos difere e nos legitima como indivíduos; há um belo estudo de Elias Canetti sobre isso. Podemos e devemos tentar ser diferentes, autênticos e legítimos. A sociedade não deveria ser algo mais do que a junção de individualidades sólidas, inteligentes, críticas e dignas de poder conviver em sociedade. Contudo, é difícil ser um. Insistimos em ser massa, preferimos seguir um rebanho qualquer para termos a sensação de ser aceitos.

O livro Destinatário desconhecido, de Kathrine Kressmann Taylor, fala da ascensão do nazismo, mas, sobretudo, da destruição da amizade através da demolição de um homem. A salvação do mundo está dentro de nossa casa, nas nossas relações próximas, em nossos amores, sentimentos e amizades. Se cada indivíduo conhecesse a si mesmo e aprendesse a amar e entender o outro, não haveria intolerância, guerra e preconceito.

Mas ainda queremos ser massa, e, enquanto assim formos, seremos fantoches dos podres poderes, estaremos ao sabor dos falsos líderes, dos falsos deuses, das falsas ideias, sem sermos nós mesmos; e seremos sempre, para o outro, um destinatário desconhecido.

Fonte: Teatro Nu

Nenhum comentário: