PICICA: "A Pittacos reproduz abaixo a
declaração do hackativista Jeremy Hammond, lida no Tribunal de Nova
York, durante o seu julgamento, em 15 de novembro. Hammond foi condenado
a dez anos de prisão por desobediência civil e ação direta
politicamente motivada. Como Manning e Snowden, estava convencido de
que, dado o extremismo e a extensão do poder de estado, a única ação
democrática possível atualmente é aquela que revela, no próprio ato de
se fazer efetiva, os contornos e feições que o poder gostaria de manter
invisível ao público."
Ciberativismo: Declaração de Jeremy Hammond no Tribunal, NY/USA
[Jeremy Hammond]
[David Henry Barnett, ex-agente da
CIA, revelou a identidade de 30 agentes secretos, e outros segredos da
inteligência norte-americana, para a KGB, durante a Guerra Fria. Foi
condenado a 18 anos de prisão, mas saiu em 10.
Chelsea Manning revelou a tortura cometida pelo exército
norte-americano na guerra do Iraque porque não queria que o seu país se
igualasse aos “bárbaros” que dizia combater. Aguardou julgamento na
solitária, e agora cumpre pena de 35 anos. Evidentemente, a discrepância
entre as punições não é o principal – mas diz muito sobre as
preocupações ou os medos que jazem na raiz da necessidade de assim
formulá-las.
Casos
como o de Chelsea Manning ou de Edward Snowden colocam em evidência o
hiato entre a lei e a justiça. Ambos sabiam que, pela letra fria da lei,
estavam cometendo um crime. Mas o fizeram mesmo assim, por que
acreditavam que a publicidade dos atos de governo é antídoto para a
imoralidade da política. Se a luz do sol é de fato o melhor detergente,
Manning e Snowden trataram de escancarar as janelas da Casa Branca
durante uma manhã particularmente luminosa. Suas histórias são
testemunhos de uma época em que a radicalidade do estado de exceção,
abrigado sob o manto protetor do fetiche que acompanha a noção de
democracia, talvez não deixe margem à ações que escapem à própria lógica
da exceção.
A Pittacos reproduz abaixo a
declaração do hackativista Jeremy Hammond, lida no Tribunal de Nova
York, durante o seu julgamento, em 15 de novembro. Hammond foi condenado
a dez anos de prisão por desobediência civil e ação direta
politicamente motivada. Como Manning e Snowden, estava convencido de
que, dado o extremismo e a extensão do poder de estado, a única ação
democrática possível atualmente é aquela que revela, no próprio ato de
se fazer efetiva, os contornos e feições que o poder gostaria de manter
invisível ao público.]
* * *
Bom dia. Obrigado por essa oportunidade.
Meu nome é Jeremy Hammond e estou aqui para ser sentenciado por
atividades de hacking que executei durante meu envolvimento com os
Anonymous. Estou preso no Centro Correcional de Manhattan há 20 meses, e
tive muito tempo para pensar sobre como explicaria minhas ações.
Antes de
começar, quero usar parte desse tempo para reconhecer e agradecer o
trabalho das pessoas que me apoiaram. Quero agradecer a todos os
advogados que trabalharam no meu caso: Elizabeth Fink, Susan Kellman,
Sarah Kunstler, Emily Kunstler, Margaret Kunstler e Grainne O’Neill.
Agradeço também a National Lawyers Guild, à Comissão de Defesa e Rede de
Apoio Jeremy Hammond, aos Free Anons, à Rede de Solidariedade com os
Anonymous, ao Grupo Cruz Negra Anarquista e a todos os demais que
ajudaram com uma carta de apoio, escrevendo para mim, assistindo às
audiências do Tribunal e divulgando minha causa e meu caso.
Agradeço também aos meus irmãos e irmãs trancafiados em prisões e aos que estão fora das prisões, ainda lutando contra o poder.
Os atos de
desobediência civil e ação direta pelos quais estou sendo hoje
sentenciado alinham-se todos pelos princípios de comunalidade e
igualdade que guiaram minha vida. Invadi os computadores de dúzias de
empresas gigantes e instituições do Estado, entendendo muito claramente
que o que fazia era contra a lei, e que minhas ações podiam jogar-me
diretamente numa prisão federal. Mas senti que tinha a obrigação de usar
minhas habilidades e competências para expor e denunciar a injustiça – e
para trazer à luz a verdade.
Poderia
ter alcançado os mesmos objetivos por meios legais? Tentei de tudo, de
abaixo-assinados e campanhas eleitorais a manifestações pacíficas, e
descobri que os que estão no poder não querem que a verdade seja
exposta. Quando dizemos a verdade ao poder, somos ignorados, no melhor
dos casos; ou brutalmente reprimidos, no pior. Estamos em luta contra
uma estrutura de poder que não respeita nem os seus próprios mecanismos
de fiscalização e equilíbrio, imaginem se respeitam os direitos dos seus
próprios cidadãos ou a comunidade internacional.
Minha
iniciação política aconteceu quando George W. Bush roubou uma eleição
presidencial em 2000 e, na sequência, tirou vantagem das ondas de
racismo e patriotismo depois do 11/9, para lançar guerras imperialistas,
não provocadas, contra o Iraque e o Afeganistão. Saí às ruas para
protestar, acreditando, ingenuamente, que nossas vozes seriam ouvidas em
Washington e que conseguiríamos parar a guerra. Em vez disso, fomos
rotulados como traidores, espancados e presos.
Fui preso
por numerosos atos de desobediência civil nas ruas de Chicago, mas só em
2005 comecei a usar minhas habilidades com computadores para quebrar a
lei, em ação de protesto político. Fui preso pelo FBI por invadir os
computadores de um grupo de direita, pró-guerra, chamado “Protest
Warrior” – organização que vendia camisetas racistas em sua página na
Internet e agredia grupos antiguerra. Fui acusado, nos termos da Lei de
Fraudes e Abusos por Computadores, e o “dano visado” no meu caso foi
arbitrariamente calculado, multiplicando por US$500, os 5.000 cartões de
crédito com os quais operava a base de dados de “Protest Warrior”, o
que resultou num total de $2,5 milhões. Minha sentença foi calculada a
partir desse “dano”, embora nenhum cartão de crédito tenha sido usado ou
algum dado tenha sido divulgado – por mim ou por qualquer outra pessoa.
Fui condenado a dois anos de cadeia.
Na prisão,
vi com meus próprios olhos a feia realidade de como o sistema de
justiça criminal destrói a vida de milhões de pessoas mantidas em
prisões fechadas. A experiência reforçou minha oposição contra as formas
repressivas de poder e a favor de agir na defesa daquilo em que cada um
acredite.
Quando fui
solto, estava ansioso para retomar meu envolvimento nas lutas por
mudanças sociais. Não queria voltar à prisão. Então, me dediquei ao
trabalho de organizar comunidades, trabalho de superfície. Mas, com o
tempo, frustrei-me com as limitações das manifestações pacíficas, que me
parecem reformistas e inefetivas. O governo Obama continuou as guerras
no Iraque e no Afeganistão, aumentou o uso de drones e não fechou a
prisão da Baía de Guantánamo.
Por essa
época, eu acompanhava o trabalho de grupos como Wikileaks e Anonymous.
Era inspirador e estimulante ver as ideias do hackativismo afinal dando
resultados. Fiquei particularmente motivado pela ação heróica de Chelsea
Manning, que revelou ao mundo as atrocidades cometidas pelos militares
estadunidenses no Iraque e no Afeganistão. Ela assumiu enorme risco
pessoal para vazar essa informação – porque acredita que a opinião
pública tem o direito de saber, e por esperar que suas revelações seriam
um passo positivo para pôr fim àqueles abusos. Fica-se com o coração
apertado, só de ouvir contar sobre o tratamento cruel que ela recebeu
numa prisão militar.
Refleti
profunda e longamente sobre escolher outra vez esse caminho. Tive de
perguntar a mim mesmo: se Chelsea Manning mergulhou no pesadelo abismal
da prisão, porque lutava pela verdade, como poderia eu, de boa
consciência, fazer menos que ela, já que eu era capaz? Concluí que o
melhor modo de demonstrar solidariedade era dar continuidade ao trabalho
de expor fatos e enfrentar a corrupção.
Aproximei-me
dos Anonymous, porque acredito em ação direta, descentralizada e
anônima. Naquele momento, os Anonymous estavam envolvidos em operações
de apoio aos levantes da Primavera Árabe, contra a censura, e em defesa
de Wikileaks. Eu tinha muito a oferecer como contribuição, incluindo
competências técnicas, e podia articular melhor ideias e objetivos.
Foram tempos entusiasmantes – o nascimento de um movimento digital de
resistência, quando os conceitos e as competências do hackativismo
estavam ganhando forma.
Interessava-me
especialmente o trabalho dos hackers de LulzSec, que estavam quebrando
alguns alvos importantes e iam-se tornando cada vez mais políticos. Por
essa época, falei pela primeira vez com Sabu, que era muito aberto sobre
as ações de hacking que ele dizia ter cometido, e estimulava os hackers
a unir-se para atacar sistemas de computadores de grandes unidades do
governo e de megaempresas, sob a bandeira do movimento “Anti Security”.
Mas logo no início do meu envolvimento, os outros hackers de Lulzsec
foram presos; restei eu, para quebrar sistemas e escrever press
releases. Sabu: Hector Xavier Monsegur. Adiante, eu descobriria que Sabu
foi o primeiro a ser preso, e que, durante todo o tempo em que eu
falava com ele, ele já era informante do FBI.
Os
Anonymous também se envolveram nos estágios iniciais de Occupy Wall
Street. Participei regularmente nas ruas, como militante de Occupy
Chicago, e fiquei entusiasmado ao ver um movimento mundial de massa
contra as injustiças do capitalismo e do racismo. Ao final de uns poucos
meses, as “Occupations” chegaram ao fim, destruídas por ataques da
Polícia e prisões em massa de manifestantes, arrancados de suas próprias
praças públicas.
A
repressão contra os Anonymous e o Movimento Occupy deu o tom da ação dos
Antisec nos meses seguintes – a maior parte de nossas ações de hacking
contra alvos da Polícia foram retaliações contra as prisões de nossos
camaradas.
Eu,
pessoalmente, tomei por alvo os sistemas policiais, por causa do racismo
e da desigualdade com que se aplica a lei criminal. Tomei por alvo as
indústrias e distribuidores de equipamentos militares e policiais, que
lucram com a fabricação e a venda das armas que os EUA usam para impor
seus interesses políticos e econômicos por todo o mundo, e para reprimir
cidadãos estadunidenses aqui mesmo. Tomei por alvo empresas privadas de
segurança da informação, porque trabalham secretamente para proteger
interesses do governo e de empresas privadas, à custa de atacarem
direitos civis individuais, minando e desacreditando ativistas,
jornalistas e outros que trabalham para conhecer e divulgar a verdade; e
porque vivem de disseminar a desinformação.
Nunca
tinha ouvido falar de Stratfor, até que Sabu falou sobre eles. Sabu
estava encorajando pessoas a invadir sistemas, e ajudando a facilitar e
dar organização estratégica aos ataques. Chegou a fornecer-me pontos
vulneráveis dos alvos, passados a ele por outros hackers. Por isso, foi
grande surpresa quando soube que, durante todo o tempo, Sabu trabalhava
com o FBI.
Dia
4/12/2011, Sabu foi contatado por outro hacker que já havia invadido a
base de dados dos cartões de crédito de Stratfor. Sabu, então, sob o
olhar atento dos agentes do governo que o estavam manipulando, levou o
hack para o movimento Antisec, convidando aquele hacker para nossa sala
privada de bate-papo, onde ele forneceu os links para baixar toda a base
de dados dos cartões de crédito, além dos pontos iniciais de
vulnerabilidade para acessar os sistemas de Stratfor.
Passei
algum tempo pesquisando Stratfor e revisando a informação que nos fora
fornecida, e decidi que suas atividades e a base de clientes tornavam a
empresa alvo bem merecido. Achei curioso que os ricos e poderosos
clientes da base de dados de Stratfor só usassem seus cartões de crédito
para doar para organizações humanitárias, mas meu principal papel no
ataque era obter as pastas dos e-mails privados de Stratfor, onde,
tipicamente, estão os segredos mais sujos.
Demorei
mais de uma semana para conseguir mais acesso aos sistemas internos de
Stratfor, mas acabei entrando no servidor principal. Era tanta coisa,
que precisamos de vários servidores nossos para transferir os e-mails.
Sabu, que estava envolvido em todos os passos da operação, ofereceu um
servidor – que ele recebera do FBI e era monitorado pelo FBI. Nas
semanas seguintes, os e-mails foram transferidos, os cartões de crédito
usados para doações, e os sistemas de Stratfor foram desconfigurados e
destruídos.
Por que o
FBI nos apresentou o hacker que descobrira a vulnerabilidade inicial e
por que o FBI permitiu que ele continuasse o que havia começado são
coisas que, para mim, continuam a ser um mistério total.
Resultado
da ação de hacking contra os sistemas de Stratfor, conhecem-se hoje
alguns dos perigos de haver uma indústria privada de inteligência sem
qualquer tipo de regulação. Revelou-se através de Wikileaks e do
trabalho de outros jornalistas pelo mundo, que Stratfor mantinha uma
rede de informantes pelo mundo, informantes que a empresa usava para
todos os tipos de atividade ilegal de vigilância, sempre a serviço de
grandes empresas multinacionais.
Depois de Stratfor, continuei a quebrar outros sistemas-alvos, usando uma poderosa “zero day exploit”
que me permitia acesso de administrador a sistemas que rodavam a
popular plataforma Plesk de hospedagem de rede. Várias vezes, Sabu me
pediu que lhe desse acesso a essa exploração. Recusei sempre. Sem ter
seu próprio acesso independente, Sabu continuou a me fornecer listas de
alvos vulneráveis. Invadi inúmeras páginas que ele me sugeriu,
descarreguei as contas de e-mails e bancos de dados roubados no servidor
FBI de Sabu; e passei a ele senhas e backdoors que permitiram que Sabu (e, portanto, também o FBI que controlava Sabu) controlassem aqueles alvos.
Essas intrusões, todas sugeridas por
Sabu quando já cooperava com o FBI, afetaram milhares de nomes de
domínio; na grande maioria eram páginas oficiais de governos
estrangeiros, dentre os quais XXXXXXX, XXXXXXXX, XXXX, XXXXXX, XXXXX,
XXXXXXXX, XXXXXXX e XXXXXX XXXXXXX. Num caso, Sabu e eu demos informação
de acesso a hackers que trabalharam para desconfigurar e destruir
muitas páginas oficiais de governo em XXXXXX. Não sei como outras
informações que lhes forneci podem ter sido usadas, mas penso que a
coleta e o uso desses dados, pelo FBI e, portanto, pelo governo dos EUA,
têm de ser investigados.
O governo
hoje está celebrando minha condenação e minha prisão, na esperança de
que fechará a porta e encerrará a história para sempre. Eu assumi plena
responsabilidade pelos meus atos, quando me declarei culpado. Quando o
governo dos EUA será forçado a responder pelos seus crimes?
Os EUA
inflam a ameaça que os hackers representariam, para justificar os
negócios multibilionários do complexo industrial da cibersegurança, mas,
ao mesmo tempo, o próprio governo é também responsável pela mesma
conduta que ele mesmo processa e condena, e diz que trabalha para
prevenir. A hipocrisia da “lei e da ordem” e as injustiças causadas pelo
capitalismo não podem ser “curadas” por reformas institucionais; só
podem ser corrigidas por desobediência civil e ação direta. Sim, eu
violei a lei. Mas acredito que às vezes as leis têm de ser violadas,
para criar espaço para a mudança.
Nas
palavras imortais de Frederick Douglas: “O poder não dá nada que não lhe
seja exigido. Nunca deu e nunca dará. Descubra a quê algum povo
submeteu-se em silêncio, e você terá a exata medida da injustiça e dos
malfeitos impostos àquele povo, e a injustiça e os malfeitos
continuarão, até que o povo se levante contra eles, seja com palavras
seja com armas, ou com ambos. Os limites de cada tirano podem ser
medidos pela capacidade de tolerar dos que eles oprimem.”
Não estou
dizendo que não me arrependo de nada. Percebo que divulguei informação
pessoal de gente inocente, que nada tinha a ver com as operações das
instituições que tomei como alvos. Peço desculpas pela divulgação de
dados que tenha ofendido pessoas e eram irrelevantes para meus
objetivos. Acredito no direito individual à privacidade – contra a
vigilância do Estado e contra agentes como eu; e vejo bem a ironia de eu
ter-me envolvido em ataques contra esses direitos.
Meu
compromisso é trabalhar para fazer desse mundo um lugar melhor para
todos nós. Ainda acredito na importância do hackativismo como forma de
desobediência civil, mas é hora, para mim, de mudar para outros modos de
buscar a mudança. O tempo de cadeia pesa muito sobre minha família,
meus amigos e a comunidade. Sei que precisam de mim em casa. Reconheço
que, há sete anos, já estive à frente de um juiz federal, enfrentando
acusações semelhantes, mas isso não diminui a sinceridade do que digo
aqui hoje.
Custou-me
muito escrever isso, para explicar minhas ações, sabendo que o que fiz –
sinceramente – pode custar-me ainda mais anos de vida na cadeia. Sei
que posso ser condenado a dez anos, mas espero que não seja, porque
acredito que há muito trabalho a ser feito.
Mantenham-se fortes e continuem a lutar.
Jeremy Hammond
Sexta-feira, 15 de novembro de 2013.
Declaração ao Jeremy Hammond no Tribunal, New York, EUA, 16/11/2013
http://en.wikipedia.org/wiki/Jeremy_Hammond
opednews.com
http://goo.gl/2skN35
Sabu
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sabu_%28hacker%29
http://en.wikipedia.org/wiki/Stratfor
http://www.stratfor.com/
Fonte: http://www.rededemocratica.org/index.php?option=com_k2&view=item&id=5454:jeremy-hammond
Fonte: Revista Pittacos
Nenhum comentário:
Postar um comentário