novembro 27, 2013

"Tatuagem: só o cu nos salva!" - Texto de Jamil Cabral Sierra

PICICA: "[...]tal como uma tatuagem, a busca por novas formas relacionais, a instauração de novas formas de desejar e amar, a criação de formas de vida que acedam a partir de um trabalho de criação estético-política, tudo isso pode ser uma experiência radicalmente viva, vibrante e, especialmente, modificadora de nós mesmos. Essa experiência transformadora de nós é algo que de tão risonho e colorido, como dizem os versos da canção de Chico, se torna o corrosivo necessário a fazer derreter toda convenção e todo princípio deflagradores do ódio, do terror e do extermínio de vidas vadias e fora-da-lei que purpurinam nossa existência. Essa necessária corrosão das convenções sociais, morais, religiosas só pode vir da vida que escandaliza, do interdito que é publicizado, do proibido que é escancarado em pele e pelo, em riso e lágrima, em dor e prazer: só o cu nos salva! Mas nada vem de graça. O que colore a tatuagem é também aquilo mesmo que, ao marcar a ferro cru, faz sangrar." 


Tatuagem: só o cu nos salva!


Texto de Jamil Cabral Sierra.

“Quero pesar feito cruz nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem
Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, a ferro e fogo
Em carne viva” [1]

Foi preciso novembro chegar, em que o ano, já quase entregue ao passado, vai se despedindo, para que eu pudesse assistir ao melhor filme nacional de 2013 — e acho, dos últimos tempos. E confesso: saí do cinema em transe, tal como a Terra de Glauber.

Postêr do filme 'Tatuagem' (2013).
Postêr do filme ‘Tatuagem’ (2013).

“Tatuagem”, de Hilton Lacerda, não é apenas mais um ótimo filme vindo de terras recifenses. É muito mais que isso. É a denúncia, atualíssima, de um estado de coisas, no Brasil, que carregamos, no mínimo, desde à ditatura e das quais precisamos, urgentemente, liberarmo-nos: tortura, opressão, militarização, terrorismo de Estado, fundamentalismos religiosos. E, seguramente, nada melhor que o riso, o escárnio, a piada e o deboche como arma de guerrilha contra quem quer tampar nossos corpos, nossas tetas, nossos cus – seja mirando-nos uma escopeta, seja mirando —nos a Bíblia.

É por isso, aliás, que “Tatuagem”, apesar de se passar nos anos 1970, conta dos dias de hoje. Conta de nós mesmos do presente, porque é o retrato daquilo que ainda nos persegue e contra o qual lutamos, ainda hoje, para desmantelar. Conta de nós porque simboliza a vontade de contravenção, contraconduta, subversão e questionamento das normas sociais – de gênero e sexuais, principalmente – que vemos marchar em coletivos contemporâneos como a Marcha das Vadias, por exemplo.

Conta de nós porque sinaliza a resistência como possibilidade de invenção ética e estética tão necessárias em nosso tempo e que, esforçadamente, vemos se constituir em algumas coletividades nos dias de hoje. Não falo de coletivos hierarquizados, institucionalizados, burocratizados, disciplinados e militarizados, tal como o quartel em que a personagem Fininha se obriga estar; mas de coletividades como a do “Chão de Estrelas”, lugar onde Fininha escolhe estar e palco não só de elaboração artística, mas também – e sobretudo – de experiências comunitárias efetivamente dispostas ao convívio e à criação ético-política.

É bem por isso que “Tatuagem” conta do hoje. O futuro não é o “lá”, o depois do amanhã, senão o “aqui”, o agora. E não há gesto mais subversivo na luta do presente senão colocarmo-nos de corpo-em-pelo, de peito-à-frente e de cu-pra-lua! O cu é o símbolo máximo de liberdade – “a utopia do cu é a única utopia possível”, diz a personagem Clécio no filme. Esse é o potencial contestatório necessário para ensaiar, aqui e agora, um futuro com possibilidades relacionais realmente inovadoras. É disso, pois, que se trata o filme: escancarar os corpos em pelo – e à contrapelo – para que desse movimento venha à tona a vida em carne viva, a vida vadia, a vida-outra, a vida livre. A liberdade, como modo de vida, não é algo dado. É preciso conquistar. É um tornar-se. É, como nos diz Foucault, um processo criativo, eminentemente marcado pela maneira como vivemos nossos corpos, nossos desejos, bem como pela forma como nos relacionamos com o sexo:
A liberdade é algo que nós mesmos criamos — ela é nossa própria criação, ou melhor, ela não é a descoberta de um aspecto secreto de nosso desejo. Nós devemos compreender que, com nossos desejos, por meio deles, instauram-se novas formas de relações, novas formas de amor e novas formas de criação. O sexo não é uma fatalidade; ele é uma possibilidade de aceder a uma vida criativa. [2]
Nesse sentido, tal como uma tatuagem, a busca por novas formas relacionais, a instauração de novas formas de desejar e amar, a criação de formas de vida que acedam a partir de um trabalho de criação estético-política, tudo isso pode ser uma experiência radicalmente viva, vibrante e, especialmente, modificadora de nós mesmos. Essa experiência transformadora de nós é algo que de tão risonho e colorido, como dizem os versos da canção de Chico, se torna o corrosivo necessário a fazer derreter toda convenção e todo princípio deflagradores do ódio, do terror e do extermínio de vidas vadias e fora-da-lei que purpurinam nossa existência. Essa necessária corrosão das convenções sociais, morais, religiosas só pode vir da vida que escandaliza, do interdito que é publicizado, do proibido que é escancarado em pele e pelo, em riso e lágrima, em dor e prazer: só o cu nos salva! Mas nada vem de graça. O que colore a tatuagem é também aquilo mesmo que, ao marcar a ferro cru, faz sangrar.


Trailer do filme ‘Tatuagem’ (2013)

Referências

[1] Excertos da canção “Tatuagem”, de Chico Buarque.

[2] Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e a política da identidade (.pdf). Revista Verve, 5, 2004. p. 260-277.

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Jamil Cabral Sierra é professor da UFPR, pesquisador na área de Gênero e Diversidade Sexual e, como não canto, não danço, não atuo, não toco nenhum instrumento, não pinto… nem bordo (só às vezes), não desenho e não esculpo, resta apenas inventar-me na/pela escrita. Uso os caracteres como arma de guerrilha.

Fonte: Blogueiras Feministas

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