novembro 15, 2013

"Da lepra à peste: desafios do movimento ante a repressão", por Bruno Cava

PICICA: "Até aqui, para enfrentar as manifestações, os governos desastrosamente tentaram conter o contágio com a polícia. Nunca houve confronto entre polícia e os ditos “black blocs”. Houve o esmagamento sistemático das manifestações, por meio de uma força física muito superior, superviolenta e superarmada. Mas o efeito foi insignificante, e terminou por levar a um efeito bumerangue. A repressão não só acelerou e incitou os protestos, como expôs o modelo da segurança pública brasileira, baseado na guerra contra o mal, caça ao inimigo e execução sumária. Expôs, também, o grau do cinismo com que a mídia corporativa fabrica o mal, apenas para passar senha à brutalidade do estado e depois garantir a tranquilidade de sua consciência. A repressão direta não evita os sintomas da peste, como subproduto produzindo inflamatórias erupções de imagens nas mentes recém e bruscamente acordadas, que agitam ainda mais os corpos. Com tudo isso, não houve qualquer esvaziamento dos protestos pela violência. Doce autoilusão do poder. Não houve tampouco pelas prisões — e cada prisão, de fato, tem um custo político elevado. O que está sucedendo são fluxos e refluxos, temporalidades distintas para um ciclo de lutas que está só começando a ganhar momento."

Da lepra à peste: desafios do movimento ante a repressão
“Tiros, gritaria, engarrafamento de trânsito, comércio fechado, transporte público assaltado e queimado, lampiões quebrados às pedradas, destruição de fachadas dos edifícios públicos e privados, árvores derrubadas, trilhos arrancados e barricadas em várias ruas: o povo do Rio de Janeiro se revolta contra o projeto de vacinação obrigatório proposto pelo sanitarista Oswaldo Cruz. O centro do Rio de Janeiro virou um campo de guerra.” – Gazeta de Notícias, 14/11/1904.

Nos cursos do final dos anos 1970, Foucault explica a diferença política entre a lepra e a peste. A cada uma corresponde uma tecnologia de poder. A ameaça da lepra era enfrentada por meio do regime de segregação. Os leprosos eram excluídos da cidade. Perdiam a cidadania e, sem rosto, em situação de morte civil, eram depositados nos leprosários. A peste (negra, varíola, influenza), por outro lado, exigiu a elaboração de outro regime. Mais sofisticado, não previa a exclusão, já que a peste não se manifestava numa lógica tudo-ou-nada. A infecção se disseminava mediante uma gradação de sintomas, por toda a extensão urbana. Foi preciso instituir mecanismos de vigilância, exame e classificação do empesteamento, de modo a exercer um controle interno da epidemia. O controle intramuros da peste regula a vida das pessoas no seu dia a dia, seus corpos, suas expressões. Faz com que os próprios cidadãos fiscalizem os sintomas uns dos outros, denunciando-se mutuamente conforme o caso.

Até aqui, para enfrentar as manifestações, os governos desastrosamente tentaram conter o contágio com a polícia. Nunca houve confronto entre polícia e os ditos “black blocs”. Houve o esmagamento sistemático das manifestações, por meio de uma força física muito superior, superviolenta e superarmada. Mas o efeito foi insignificante, e terminou por levar a um efeito bumerangue. A repressão não só acelerou e incitou os protestos, como expôs o modelo da segurança pública brasileira, baseado na guerra contra o mal, caça ao inimigo e execução sumária. Expôs, também, o grau do cinismo com que a mídia corporativa fabrica o mal, apenas para passar senha à brutalidade do estado e depois garantir a tranquilidade de sua consciência. A repressão direta não evita os sintomas da peste, como subproduto produzindo inflamatórias erupções de imagens nas mentes recém e bruscamente acordadas, que agitam ainda mais os corpos. Com tudo isso, não houve qualquer esvaziamento dos protestos pela violência. Doce autoilusão do poder. Não houve tampouco pelas prisões — e cada prisão, de fato, tem um custo político elevado. O que está sucedendo são fluxos e refluxos, temporalidades distintas para um ciclo de lutas que está só começando a ganhar momento.

A repressão aos protestos no Brasil, contudo, está entrando na fase 2. Nela, as coisas mudam. A federalização indica a introdução de métodos mais sofisticados. À brutalidade é adicionada outra dimensão. Dá-se com um esforço concatenado de inteligência, que envolve classificação, exame, estatísticas e mapeamento de redes sociais. É a dimensão do controle, que não se preocupa tanto com indivíduos X ou Y, mas massas de dados, viralizações e infestações: aquilo que tem potencial para gerar progressões geométricas, curvas exponenciais, milhões nas ruas. Agora, os mesmos programas desenvolvidos por pesquisadores da internet servem aos dispositivos de vigilância pelo controle. O estado aprende rápido com a multidão, num jogo de gato e rato. O objetivo é realizar um escaneamento intramuros. Sondar os sintomas na medida em que se conjugam, em que começam a desencadear processos epidemiológicos. Não se tem tanta sanha em interromper a comunicação (o que seria impossível), mas deixá-la fluir, controlando-a no fluxo mesmo. Em vez da segregação de 10 ou 100 leprosos, o controle de 100 mil, 1 milhão de empesteados. Não que seja um regime intrinsecamente pior (é difícil imaginar coisa pior do que  o sistema penal “duro”), mas com certeza é um regime mais eficiente e com enorme efeito de escala, não se limitando a punir indivíduos. Pior, enquanto efeito de contenção, desmobilização, apaziguamento.

O controle não é simplesmente resultado da ação do estado. Não parte apenas de um centro de poder situado, digamos, da esfera federal. O controle se espraia na própria cidade que está sob quarentena. A vacinação sempre foi uma campanha sobretudo educativa, que visa a difundir procedimentos sanitários a adotar-se por todos, para o bem de todos. Existe uma face moral da vacina. Consiste não só em realçar o benefício geral, mas em espalhar o medo da contaminação nos cidadãos. Esse medo não sucede, somente, dos “cidadãos de bem” em relação aos manifestantes, vândalos ou “black blocs”. O medo da contaminação acontece, também, entre os próprios manifestantes. Ameaçados pelos dispositivos de controle, passam a desconfiar uns dos outros, a adotar sucessivas precauções até o ponto da paranoia. O objetivo é, mesmo, que temam a própria sombra. Isto provoca um efeito centrípeto, de esterilização, de fechamento. Os poucos grupos mais organizados estabelecem regras próprias de segregação: círculos de ingresso, limites do coletivo, espaços de segredo, preceitos cada vez mais rígidos para os relacionamentos internos e externos. Isto contribui com o controle não só ao institucionalizar o medo, como também para evitar o contágio. A infestação se dava numa proliferação selvagem de relações em contínua diferenciação, o que não acontece mais quando os grupos se delimitam e se centram em si próprios. Como ouvi de Talita, “o medo reforça a identidade”. Ou seja, ajuda a frustrar a aberta dinâmica relacional que alimenta a peste em primeiro lugar. É um mecanismo de defesa. E pior, paradoxalmente, favorece a repressão pelo regime mais tosco da lepra, uma vez que os próprios grupos facilitam o trabalho de identificação. É um grande risco e um grande desafio superá-lo.


Com a colaboração de Talita Tibola. Vários elementos a partir de conversa com Luís Alencar na Glória. Dicas de Foucault por Alexandre F. Mendes.

Fonte:  Quadrado dos Loucos

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