PICICA: “A razão política europeia
moderna” e “antropocêntrica”, que “limita” ao humano a atividade
política, a qual “gerou a urbanização antes, a industrialização depois e
a destruição das biodiversidades atualmente”, que pensou o “meio
ambiente, a técnica, os animais como objeto, meio para a realização de
sua própria ação”, “chegou hoje ao fim e marca um dos principais
significados da crise da civilização ocidental”, diz o sociólogo Massimo Di Felice à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail. Surge em seu lugar, como tentativa de superar a política moderna, “uma lógica virtual, que é plural, se alimenta do presente e não possui ideologia além daquela produzida no presente pelo ato impulsivo de interação conectiva”.
Na interpretação do pesquisador, o imaginário político e social
europeu desenvolveu um imaginário antropocêntrico, “excluindo
completamente os outros membros constituidores do hábitat natural
(biodiversidades, animais, vegetais, inorgânicos) e colocando-os na
posição de objetos receptores da ação política dos atores-humanos”.
Entretanto, esta antropologia tradicional parece estar em processo de
mudança desde o advento da internet à medida que o mundo está passando
de uma visão “política antropocêntrica e limitada à ação humana para uma dimensão que incluía os membros não humanos”.
Net-ativismo. De uma política antropocêntrica para uma lógica virtual plural. Entrevista especial com Massimo Di Felice
“A grande transformação da nossa época se expressa não apenas por meio de uma mudança de pensamento, mas pela alteração de uma condição habitativa e, portanto, pela passagem de um estatuto ecológico antropocêntrico para outro estatuto, mais amplo e mais complexo”, assegura o sociólogo.
Foto: http://bit.ly/1erhNWI |
Na interpretação do pesquisador, o imaginário político e social europeu desenvolveu um imaginário antropocêntrico, “excluindo completamente os outros membros constituidores do hábitat natural (biodiversidades, animais, vegetais, inorgânicos) e colocando-os na posição de objetos receptores da ação política dos atores-humanos”. Entretanto, esta antropologia tradicional parece estar em processo de mudança desde o advento da internet à medida que o mundo está passando de uma visão “política antropocêntrica e limitada à ação humana para uma dimensão que incluía os membros não humanos”.
O conceito de net-ativismo, nesse sentido, pode apontar uma nova contribuição para a democracia, apesar de surgirem duas compreensões divergentes acerca do que vem a ser tal contribuição.
Segundo ele, “ao edificar uma nova ecologia, que representa a alteração da condição habitativa produzida pela cultura ocidental, as redes digitais conectivas podem significar o advento de uma qualitativa transformação, não apenas pela dimensão política. Esta nova condição habitativa que experimentamos pode significar a possibilidade da construção de uma nova epistemologia, que interprete o conjunto das atividades que se desenvolvem na bioesferas entre atores de diversas naturezas como a possiblidade de repensar o estatuto da nossa dimensão humana”.
Massimo Di Felice é graduado em sociologia pela Università degli Studi La Sapienza, doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo - USP e tem pós-doutorado em Sociologia pela Universidade Paris Descartes V, Sorbonne. Atualmente leciona na USP e é professor visitante na Libera Università di Lingue e Comunicazione - IULM de Milão e professor convidado na Universidade Nacional de Córdoba, Argentina.
Confira a entrevista.
Foto: http://bit.ly/aJbNC7 |
Massimo Di Felice - Em primeiro lugar, gostaria de agradecer pela oportunidade que a qualidade destas perguntas oferece de poder explicar melhor, a mim mesmo e aos leitores, o significado das questões e dos estudos que venho produzindo sobre a temática do net-ativismo. O formato da entrevista nos obriga a ir direto ao ponto e a fazer um esforço de simplificação dos conceitos e das ideias. A resposta a esta primeira questão é articulada.
Isto é, a crise das ideologias políticas é provocada por um conjunto de fatores. Em primeiro lugar, a crise das ideologias, não somente daquelas políticas, é abordada no final do século XX. Penso a obra de F. Lyotard, que aborda a crise das meta-narrativas, indicando-a como a expressão do advento de uma complexidade global sem síntese e, sobretudo, como a expressão de uma crise profunda do pensamento positivista europeu, que ordenava o mundo a partir de conceitos e categorias considerados universais e objetivos (como o marxismo, a psicanálise, o liberalismo, etc.).
Esta perspectiva de Lyotard demonstra que não apenas a política aponta para a crise de um tipo particular de episteme, e que, portanto, a partir desse ponto de vista, se coloca próxima da crítica que Popper produz no âmbito da filosofia da ciência. Trata-se, assim, de uma crítica não apenas política, mas epistêmica à forma e ao método da razão ocidental. Um segundo significado da crise das ideologias políticas é aquele produzido por Vattimo, que na obra A sociedade transparente faz coincidir a crise da modernidade com a crise da concepção unitária da história e com a crise do colonialismo europeu, ou seja, com a crise da concepção europeia da história. Este segundo significado aponta para outro tipo de crise, que diz respeito ao contexto e às origens, geográficas e culturais, das ideologias políticas da época moderna. Estas, de fato, surgiram na Europa, no âmbito da cultura iluminista, e se desenvolveram no âmbito industrial e no interior da razão positivista. Este aspecto me parece importante, porque atribui às principais ideologias políticas da modernidade uma origem e características culturais específicas, isto é, europeia e não universais.
A recepção de tal análise, hoje, no contexto latino-americano, é extremamente importante, pois nos permite refletir sobre um elemento significativo, o qual podemos sintetizar desta maneira: as ideologias políticas e a cultura política latino-americana, quase sem exceções, se formaram basicamente através da transposição mecânica e acrítica das ideologias europeias, baseadas no modelo iluminista e positivista. De S. Bolivar até as democracias contemporâneas, passando pelos diversos tipos de marxismo e de liberalismo, os países do hemisfério Sul da América não produziram uma concepção política própria, limitando-se à imitação dos modelos e dos paradigmas que vinham do velho Continente. Se esse foi um processo normal na época moderna, que aconteceu quase naturalmente no interior dos processos de modernização dos diversos países latino-americanos, hoje, no âmbito contemporâneo — depois da difusão e da consolidação das democracias constitucionais e das crises mundiais das ideologias —, a ausência de um debate e de uma proposta na busca de uma via democrática e política envolvendo as práticas e os valores das diversas culturas que enriquecem o universo destes países se torna algo incompreensível.
Não apenas como explicitado por Vattimo, as ideologias políticas modernas são europeias e, portanto, portadoras de uma específica visão de mundo. Porém estas nasceram num âmbito culturalmente homogêneo, como o âmbito dos contextos culturais europeus, não contemplando, portanto, a diversidade cultural como um elemento central. Ao contrário, a tradição política europeia fundou-se sobre o princípio de igualdade e sobre a uniformidade linguística e identitária.
O significado da crise da ideologia política na América Latina também remete, portanto, a um significado cultural e antropológico que marca claramente a diferença entre o contexto sociocultural latino-americano, composto por povos, etnias e culturas diversas, e aquele originário europeu no interior do qual surgiram as principais ideologias políticas da modernidade. Existe, enfim, mais um significado a respeito da crise da ideologia política, este provavelmente ainda mais profundo e que tem a ver com a superação do caráter antropomórfico, próprio da narrativa política ocidental. Desde a Atena de Péricles, o imaginário político e social europeu desenvolveu um imaginário antropocêntrico, que reduzia o cosmo e o universo à dimensão dos debates das ideias e ao conjunto de deliberações dos cidadãos humanos, excluindo completamente os outros membros constituidores do hábitat natural (biodiversidades, animais, vegetais, inorgânicos) e colocando-os na posição de objetos receptores da ação política dos atores-humanos. M. Serres, no Contrato Social; B. Latour, em Política das Naturezas; I. Stenger, no seu conceito de cosmopolítica, descrevem a passagem de uma política antropocêntrica e limitada à ação humana para uma dimensão que incluía os membros não humanos e apontam para a necessidade de pensar a ação e as atividades sociais no interior de uma dimensão de complexidade que expresse as dimensões de uma condição habitativa ecológica, e não apenas urbana ou nacional.
Este último significativo da crise da ideologia política exprime a passagem qualitativa de uma condição que limitava o mundo às representações do humano e suas dimensões para uma dimensão que abrange a inteira biosfera e a própria Gaia (J. Lovelock). Esta é, a meu ver, a grande transformação da nossa época, que se expressa não apenas por meio de uma mudança de pensamento, mas pela alteração de uma condição habitativa e, portanto, pela passagem de um estatuto ecológico antropocêntrico para outro estatuto, mais amplo e mais complexo.
IHU On-Line - O que é o net-ativismo e de que forma contribui para a democracia?
Massimo Di Felice - Começarei com a segunda parte da pergunta, relativa à contribuição do net-ativismo para a democracia. Existem duas linhas opostas. Uma que pensa que o acesso aos dados e a tomada coletiva da palavra provocados pelo digital sejam, de fato, a ampliação da esfera pública moderna e a constituição de uma nova esfera digital de participação e interação (M. Castells, P. Levy), mais aberta e horizontal, capaz de realizar tecnologicamente as promessas de inclusão e de participação da democracia ocidental.
A segunda linha de interpretação trata da relação entre net-ativismo e democracia ao contrário: podemos pensá-la a partir do último significado de crise das ideologias políticas, que acabamos de relacionar com as políticas da natureza de Latour, a teoria de Gaia de J. Lovelock, o contrato natural de M. Serres e, sobretudo, com o conceito de cosmopolítica de I. Stenger. Nesta perspectiva, o net-ativismo pode ser entendido não como a ampliação da esfera pública, mas como a arquitetura de uma nova condição habitativa e de um particular novo tipo de ação, que reúne indivíduos em dispositivos, banco de dados e territorialidades.
Assim, o net-ativismo não é pensado como a ampliação ou o aprimoramento da democracia ocidental, mas, ao contrário, como a sua superação enquanto expressão de um tipo de social não mais apenas antropomórfico, mas ampliado a uma dimensão maior, não apenas representativa ou opinativa. Esta passagem marca a crise do modelo democrático desenvolvido no ocidente que, apesar de determinar o alcance de formas mais inclusivas e não violentas de participação, resulta hoje insuficiente para alcançar os desafios ecológicos da nossa contemporaneidade e para acompanhar os desejos e as possibilidades tecnológicas de participação nos âmbitos comunicativos digitais.
IHU On-Line - Quais são as principais formas de net-ativismo e como elas se desdobram em países como Brasil, França, Itália e Portugal?
Massimo Di Felice - Numa recente pesquisa internacional, coordenada pelo Centro de Pesquisa Atopos, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo — e que reuniu importantes centros de pesquisa internacionais —, foram identificadas algumas características comuns que marcaram a qualidade das ações net-ativistas nestes diversos países.
A pesquisa obteve o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP, foi desenvolvida durante os anos de 2011 a 2013 e contou com a participação dos coordenadores de três centros de pesquisas envolvidos no projeto, a saber: Prof. José Bragança de Miranda, do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagem – CECL, da Universidade Nova de Lisboa; Prof. Alberto Abruzzese, do Núcleo Italiano de Midiologia - N.I.M., da Universidade de Milão; Prof. Michel Maffesoli, do Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano - CeaQ, da Universidade Sorbonne, Paris.
A pesquisa internacional desenvolveu um estudo comparativo sobre a qualidade da ação nestes diversos países. A primeira característica foi identificada na particular ecologia de tais ações e nas suas múltiplas localidades. Estas têm como origem as redes digitais e continuam nas ruas das cidades, sem deixar a sua dimensão informativo-digital, sendo filmadas, transmitidas, fotografadas, postadas e comentadas on-line. Expressam, assim, as dimensões não apenas locais ou urbanas, uma vez que a qualidade dessas ações e sua eficácia são o resultado muito mais de suas capacidades conectivas atópicas do que de suas específicas localidades físicas e geográficas. (Refiro-me aqui ao conceito de atopia por mim elaborado no livro Paisagens pós urbanas. Ed. Annablume, São Paulo.)
Uma localidade, portanto, não mais expressa pelas contraposições real/virtual, público/privado, mas conectivas, continuamente redefinidas pelo atravessamento de fluxos informativos e por suas conexões sincrônicas.
A segunda característica identificada dos diversos movimentos net-ativistas se expressa na singular não linearidade de suas ações. Esta, de fato, apresenta-se como o conjunto de ações não apenas humanas, isto é, não apenas expressões da vontade de um sujeito-ator, de movimentos sociais ou de opinião, mas resultado da sinergia de diversos actantes (circuito informativo, dispositivos, smarthphones, câmaras digitais, gravadores, redes sociais, como Facebook, movimentos sociais, indivíduos etc.), como manifestado na teoria ator-rede de Bruno Latour.
Em síntese, a especificidade de tais ações que não se originam, portanto, apenas na esfera política e das reivindicações, foi apontada na complexa e intermitente dimensão de alteração da própria condição habitativa, proporcionada pela conectividade aos circuitos informativos territoriais. Um ulterior aspecto identificado pela pesquisa encontra-se na recursividade de suas ações que parecem ter, como objetivos principais, ao lado das reivindicações públicas e externas, a consciente expressão de reivindicações internas que se exprimem na exigência radical de transparência, de democracia real e de tomada coletiva das decisões no âmbito dos próprios movimentos, deslocando, assim, de forma elíptica, a própria ação e a direção do seu próprio impacto.
Enfim, além da qualidade das ações, da ecologia da condição habitativa e da recursividade, a pesquisa apontou mais duas características. A primeira, a valorização do anonimato e a recusa de uma identidade política, ideológica ou sintetizada em figuras carismáticas ou em líderes; e a segunda, caracterizada pela recusa da institucionalização, expressa seja na comum aversão aos partidos políticos de qualquer tendência, seja na recusa, também generalizada de se tornar uma força política institucional. Nesse sentido, parecem evidentes as distinções dos movimentos sociais em rede em relação aos movimentos sociais políticos modernos.
IHU On-Line - O senhor menciona que as redes digitais criaram outros tipos de fluxo comunicativo, descentralizados, que permitem o acesso às informações e a participação de todos na construção de significados. O que isso significa em contraposição ao modelo político e comunicacional anterior?
Massimo Di Felice - Aqui também a resposta pode assumir dois rumos e dois tipos de interpretações distintas. Para a concepção segundo a qual o net-ativismo constituiria a ampliação da esfera pública e o advento de uma forma mais aprimorada da democracia (M. Castells), as formas de ativismo em redes podem ser entendidas como a possibilidade histórica do acesso de todos a todos os dados. Tal tipo de transformação remeteria, segundo tal interpretação, a um conjunto de inovações que tem, na tecnologia de informação e no acesso aos dados, suas caraterísticas principais. Tais perspectivas se articulam em diversos pontos.
Em primeiro lugar, prevê a possibilidade de melhorar a performance do governo na sua relação com os cidadãos, na perspectiva da construção do E-governament, ou governo eletrônico, e da divulgação digital das informações por parte dos governos.
Um segundo nível é constituído para a criação de arquiteturas de diálogo que permitem um nível inicial de interação entre a população e as instituições. Um terceiro nível, enfim, é constituído pela criação de arquiteturas para a consulta direta da população.
Todas estas formas remetem ainda a uma perspectiva de tomada de decisões centralizada, embora baseada em forma de consulta. A forma mais avançada de e-governance que está sendo desenvolvida atualmente de forma experimental na Europa, pelo partido Pirata, pelo movimento 5 stelle e pelo 15 M, prevê a construção de arquiteturas digitais para o debate e a decisão colaborativa mediada por redes de decisões. A população, através de interações e debates on-line, propõe e discute as leis, chegando até a sua elaboração definitiva. Esta perspectiva diferencia-se da forma do governo eletrônico e constituiria uma nova era da democracia, não mais limitada à dimensão representativa e ao processo eleitoral.
Voltando à segunda interpretação, esta remete, ao contrário, a uma diversa concepção do processo de tomada de decisões não mais pensado como a esfera de deliberações dos cidadãos humanos, mas como um articulado e complexo processo de interação e de escolha que envolve todos os membros da bioesfera, humano e não. As referências teóricas por esta segunda interpretação estão em diversos autores, entre eles M. Serres, B. Latour e, sobretudo, I. Stenger.
IHU On-Line - Que mudanças políticas são possíveis vislumbrar a partir da democratização da informação e dessa articulação horizontal em rede? Como essa mudança no fluxo comunicativo muda ou mudou a dimensão política?
Massimo Di Felice - A crise da forma política representativa, que limita a participação do cidadão à formulação do voto na urna eleitoral a cada quatro anos, atribuindo assim a participação apenas a uma dimensão opinativa, que afasta o cidadão da tomada de decisões, é hoje explícita e mundial. Não evoluímos muito a respeito da dinâmica eleitoral e opinativa da Atenas do século V a.C. Mas a verdadeira transformação está, a meu ver, na alteração do mesmo conceito de política e de participação que marca o advento e a qualidade das ações net-ativistas.
Estas não são apenas a expressão das ações dos sujeitos-atores que ao se conectar expandem seu protagonismo e seu poder. A qualidade das interações net-ativistas remete a uma alteração da condição habitativa e exprime a emergência de um novo tipo de ação, que merece uma análise mais profunda. Vou tentar explicar por pontos.
1. As formas de conflitualidade difundidas nos últimos anos em cada região do planeta não são apenas a expressão de um novo tipo de conflitualidade social, mas a consequência de uma profunda alteração da condição habitativa que se caracteriza pela agregação, por meio de diversos tipos de conectividade, de indivíduos, dispositivos de conexão, fluxos de informações, bancos de dados e territorialidades.
2. Tal interação singular é o resultado da difusão em larga escala, de um lado, dos dispositivos móveis de conexão (tablets, smarthphones, notebooks, etc.) e de formas de conexão wi-fi (banda larga, satélite, RFID, etc.) e, de outro, da proliferação das social networks, as quais deram origem a uma particular forma conectiva ecológica, não só social, capaz de conectar, em tempo real, pessoas, dispositivos, informações, territórios e dados de todo tipo.
3. Tal interatividade representa o advento de formas conectivas e ecossistêmicas do habitar que exprimem um tipo particular de interação o qual associa pessoas, dispositivos, fluxos informativos, bancos de dados e territorialidades em um novo tipo de sociabilidade reticular, não mais exprimível a partir da linguagem teórica do social desenvolvido pelas disciplinas positivistas europeias, nem delimitável por meio da tradicional dimensão antropomórfica da política.
4. As características destas interatividades são determinadas por um novo tipo de ação em rede, não mais expressão da atividade de um único sujeito-ator, nem consequência de um tipo de movimento de um ator em direção ao exterior e ao território.
5. A ação em rede apresenta-se, pois, como um ato de conexão a outros “actantes” (B. Latour) que, ao interagirem, contribuem para modificar a geometria da ação, colaborando para a construção tanto da forma como do significado dela própria.
6. Os diversos membros que intervêm e contribuem para a realização de uma ação não são, portanto, apenas sujeitos humanos, mas também todos os conjuntos de dispositivos, tecnologias, circuitos, bancos de dados e todo tipo de entidade-ator que “deixa rastro” (B. Latour).
7. É necessário repensar, pois, a qualidade da ação expressa pelas formas de ativismo em rede, dado que a mesma não exprime apenas o agir de um sujeito (seja este um indivíduo, grupo ou movimento), mas torna-se o resultado imprevisível da conexão dos diversos actantes e atores-rede humanos e não humanos (B. Latour).
8. A distinção entre ação e ato (M. Maffesoli) — no sentido do αìον grego, que ressalta sua dimensão espontânea, impermanente e sua não reprodutibilidade — determina a qualidade das ações em rede como a emergência de um ato conectivo (Di Felice) que interpreta o agir não mais do ponto de vista do sujeito-ator, nem do sujeito teleológico — consequência de uma estratégia racional humana —, mas a partir da dimensão ecossistêmica e conectiva própria dos contextos reticulares.
9. O ato conectivo configura-se, assim, como a expressão de uma forma comunicativa do habitar (Di Felice) instável e emergente, que restabelece continuamente, por meio da intermitência das práticas conectivas das interações entre os diversos actantes, as características e as dimensões da condição habitativa.
10. Mais que parte da esfera pública e da dimensão opinativa e política, as práticas do net-ativismo são a expressão mais evidente da emergência de uma nova cultura ecológica não mais sujeito-cêntrica nem tecnocêntrica, mas portadora de uma ontologia relacional (M. Heidegger) e de uma dimensão conectiva específica que lhe altera continuamente forma e significados.
11. Tal ação se dissemina, portanto, fora do social, ou seja, fora da dimensão urbana e política ocidental, enquanto portadora de uma ecologia interativa diversa a qual não pode ser explicada apenas por meio de sua dimensão comunicativa, se por comunicação entendemos somente a dimensão midiático-informativa das trocas de informações.
12. O advento das condições singulares de interações reticulares, expressas pelas formas do net-ativismo e pelas dimensões heteronômicas da conectividade, é responsável pela qualidade e pelos significados de um tipo particular de interação que não encontra forma e explicação anterior ao seu próprio surgimento, mas somente após a conexão e às práticas de interatividade ecossistêmicas.
13. Determina-se, assim, a passagem das lógicas frontais (A. Abruzzese), estruturais, identitárias e teóricas do social e da ecologia para as lógicas imersivas, ecossistêmicas, intermitentes, imprevisíveis e inovadoras das formas temporárias e instáveis das agregações conectivas.
IHU On-Line - Recentemente o senhor afirmou que a “razão política moderna é fálica e cristã, busca dominar o mundo, rotula pensamentos enquanto os simplifica, necessita de inimigos e promete a salvação. Já a lógica virtual é plural, se alimenta do presente e não possui ideologia, além de viver o presente ato impulsivo”. Que acréscimos e mudanças vislumbra a partir dessa lógica virtual e plural em contraposição à “razão política moderna fálica e cristã”?
Massimo Di Felice - A razão política europeia moderna é antropocêntrica. Na democracia ocidental, a atividade política limita-se ao humano e às suas ideias sobre o mundo. A política é o debate das ideias que vai decidir a ação do humano sobre a natureza. É este o sentido das atividades da “polis”, que gerou a urbanização antes, a industrialização depois e a destruição das biodiversidades atualmente. Há um laço histórico que marca a civilização ocidental e está exatamente nesta sua caraterística de pensar o meio ambiente, a técnica, os animais como objeto, meio para a realização de sua própria ação. Tal cultura, que põe o homem ao centro e acima de tudo, chegou hoje ao fim e marca um dos principais significados da crise da civilização ocidental.
A causa de tal mudança está também no processo de disseminação de um novo tipo de protagonismo tecnológico que vai desde a bio e a nanotecnologia até os dispositivos de conectividades e das interações em redes, que nos deram a clara percepção do limite da concepção autopoiética do humano. Sabemos, hoje, através de circuitos informativos digitais, que as ações humanas são recursivas, provocam consequências e impactos não apenas “ao externo”, mas no próprio humano.
Sabemos hoje que habitamos ecossistemas interagentes e que não podemos destruir o meio ambiente para alcançar nossos objetivos sem arcar com as consequências que tal escolha comporta. Trata-se de um problema filosófico, de uma forma particular de ver o mundo e o humano que foi produzida ao largo dos séculos, encontrando, em contextos diversos, várias aplicações, mas sempre mantendo sua oposição entre o humano e a natureza, entre o sujeito e o objeto. É neste pressuposto filosófico que se origina a razão política moderna, que também se apresenta como a prática do agir humano e, ao mesmo tempo, como a promessa de sua emancipação. Na política ocidental, a emancipação do humano coincide com a destruição do meio ambiente e com o seu desenvolvimento socioeconômico pelo qual são utilizadas matérias-primas e todos os recursos necessários. Esta dimensão construiu um social simplificado, antropocêntrico, cujas interações eram erroneamente pensadas apenas como o conjunto das atividades humanas.
Na América Latina, temos ainda hoje a resistência de culturas nativas — sobreviventes de um dos maiores extermínios da história da humanidade perpetuados pela civilização europeia —, portadoras de uma concepção do social muito mais complexa do que a do ocidente e que consideram os elementos não humanos como atores-membro da sociedade, e não apenas como objeto. Sem dúvida, o cristianismo é um dos elementos constituidores da cultura ocidental e, portanto, representou uma parte significativa pela produção do mundo ocidental e de sua específica visão de mundo. A centralidade europeia na história e sua pretensão de ser modelo e inspiração para o mundo se deve, em boa parte, à ideia cristã de evangelização, no seu sentido histórico, segundo a qual, em épocas distintas, era necessário levar a “verdade” aos outros povos.
Este elemento disseminador, como observado por Peters, não se deu historicamente em forma de diálogo, mas de disseminação, e constituiu o clima cultural no interior do qual se produziu a dominação econômica, militar e política do ocidente. Outro elemento que também marca a tradição política no ocidente e que encontra elementos comuns no âmbito do cristianismo ocidental é o antropocentrismo, que embora no caso da tradição religiosa não coincida com a prática da devastação da biodiversidade, é sem dúvida uma caraterística importante que, seguindo a tradição judaica, põe o homem como dono da criação e como único ser à imagem de Deus.
Obviamente existem na tradição cristã outras tendências contrárias ao antropocentrismo, como a espiritualidade e a concepção de S. Francisco de Assis ou como as observações teológicas de S. Boaventura de Bagnoregio, entre outros, que, ao contrário, produziram uma concepção ecológica da fé cristã e que, portanto, constituem ainda hoje motivo de inspiração para os cristãos.
Mas a matriz antropocêntrica foi historicamente a prevalente. O advento das redes digitais e da digitalização, que permite a conexão e a interação entre humanos, objetos, animais e a biodiversidade em geral, constitui um dos maiores desafios da nossa época, que obriga as universidades, o pensamento e até mesmo as instituições religiosas a saírem de sua matriz de conforto e a responderem aos desafios do advento desta nova condição habitativa, que agrega em ecossistema interativo entre humanos, objetos, dispositivos, territorialidades, circuitos, florestas e tudo o que existe.
É neste sentido que me referia na citação acima: a existência de uma lógica virtual é plural, se alimenta do presente e não possui ideologia, além daquela produzida no presente pelo ato impulsivo de interação conectiva. Ao edificar uma nova ecologia, que representa a alteração da condição habitativa produzida pela cultura ocidental, as redes digitais conectivas podem significar o advento de uma transformação qualitativa, não apenas pela dimensão política.
Esta nova condição habitativa que experimentamos pode significar a possibilidade da construção de uma nova epistemologia, que interprete o conjunto das atividades que se desenvolvem na biosfera entre atores de diversas naturezas como a possiblidade de repensar o estatuto da nossa dimensão humana.
Esta mudança se parece com uma oportunidade e um desafio que é possível pensar com mais facilidade nos contextos epistêmicos brasileiros, pois é aqui no Brasil onde ainda se podem encontrar, ainda vivas, formas de conhecimentos não ocidentais que se associam e se misturam de forma original. Trata-se de um desafio para os intelectuais brasileiros. Trata-se de um começo importante e de uma transformação em direção a um novo conceito de ecologia e de humano. A nossa época é interessante por isso, pois nos questiona em profundidade.
(Por Patricia Fachin)
Fonte: IHU
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