novembro 07, 2013

‘O desaparecimento forçado não ficou nos anos 70; é atual e precisa ser combatido’ - Escrito por Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação

PICICA: "Moradora do México, a argentina conhece de perto a violência policial contra as manifestações de cunho social, algo que destaca ter diminuído muito em seu país, reconhecendo o engajamento dos governos Kirchner na valorização das políticas de direitos humanos e também nos processos de memória, verdade e justiça. Desse modo, acredita que o Brasil de hoje tem condições de responder aos protestos de sua população de forma diferente, isto é, deixando de lado a violência policial."


‘O desaparecimento forçado não ficou nos anos 70; é atual e precisa ser combatido’
 
Escrito por Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação   
Terça, 05 de Novembro de 2013




De passagem pelo Brasil para lançar seu livro, “Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina”, a socióloga Pilar Calveiro conversou com o Correio da Cidadania. A relação entre o sumiço de pessoas na época da ditadura argentina e as formas de atualização que tais políticas receberam por distintos governos, tanto no plano interno quanto global, foi um dos importantes pontos abordado nessa entrevista.
 
“Eu diria que, passados mais de 30 anos do governo militar da Argentina, o estilo autoritário e as distintas formas de autoritarismo se reciclaram, não com o formato de campos de concentração, mas outros. Deve-se dizer que na América Latina segue existindo a modalidade do desaparecimento forçado, hoje aceito de distintas maneiras”, disse Pilar.
 
Moradora do México, a argentina conhece de perto a violência policial contra as manifestações de cunho social, algo que destaca ter diminuído muito em seu país, reconhecendo o engajamento dos governos Kirchner na valorização das políticas de direitos humanos e também nos processos de memória, verdade e justiça. Desse modo, acredita que o Brasil de hoje tem condições de responder aos protestos de sua população de forma diferente, isto é, deixando de lado a violência policial.
 
Ainda sobre seu livro, explica que a narrativa é combinada entre sua escrita em terceira pessoa e diversos testemunhos em primeira pessoa. “Eu acredito que esses processos são vividos e pensados coletivamente. Não se trata do que cada um de nós viveu pessoalmente. Na realidade, o processo ocorre de forma coletiva. E também se pensa de forma coletiva. No livro, aparecem reflexões e intercâmbios entre diferentes pessoas que passamos por tais experiências”, reflete.
 
A entrevista completa com Pilar Calveiro pode ser lida a seguir.

 
Correio da Cidadania: Uma das ideais essenciais de seu livro Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina é a tentativa de compreensão de como se recicla o ‘poder desaparecedor’ nas sociedades que passaram pelo regime militar e que tiveram como modalidade específica de repressão os campos de concentração. Gostaria que você comentasse essa ideia e os conceitos que ela carrega.
 
Pilar Calveiro: As ideias essenciais do livro têm como matriz as manifestações autoritárias de uma sociedade. É algo antigo na América Latina e também na Argentina.
 
O desaparecimento como forma principal de repressão política se praticou em muitos países da América Latina, mas na Argentina se transformou na forma específica, central. A partir do golpe de 1976, praticamente se tornou a única forma repressiva.
Isso tem antecedentes, está fortemente ancorado nas características da sociedade. Entretanto, também continua a acontecer, de formas diferentes, mesmo após a queda do governo militar.
 
Eu diria que, passados mais de 30 anos do governo militar, o estilo autoritário e as distintas formas de autoritarismo se reciclaram, não com o formato de campos de concentração, mas outros. Deve-se dizer que na América Latina segue existindo a modalidade do desaparecimento forçado, hoje aceito de distintas maneiras.
 
Também é preciso destacar que na atualidade, no terreno internacional, isso ocorre, sobretudo, através do que chamam de “guerra antiterrorista”; e no plano interno também ocorre, naquilo que se chama de “guerra contra o crime organizado”, em diversos países. Essas duas políticas dão cobertura ao desaparecimento forçado, que continua sendo praticado.
 
Portanto, o problema do desaparecimento de pessoas não ficou nos anos 70, mas é atual e precisa ser combatido no momento presente.
 
Correio da Cidadania: Como vê a sociedade argentina hoje, à luz desse entendimento?
 
Pilar Calveiro: Acredito que na Argentina houve um processo social muito interessante, a partir de todas as práticas de memória levadas a cabo pela sociedade civil. E também, nos últimos 10 anos, com apoio do governo, que teve uma intervenção muito interessante em propiciar práticas de memória, principalmente a partir dos julgamentos dos responsáveis pelos crimes de lesa-humanidade. Acredito que esse contexto permitiu um processo social importante e a sociedade, neste momento, se encontra numa situação muito diferente da que tinha nos anos 70.
 
Correio da Cidadania: Diria assim que a Argentina acertou as contas com seu passado?
 
Pilar Calveiro: Como dizia, o processo é muito importante, foi construído por diversos atores. No caso, os organismos de direitos humanos, que começaram a trabalhar depois do regime militar.
Posteriormente, esses organismos de direitos humanos se ampliaram, multiplicaram e encontraram sustentação social, mesmo ao longo dos anos 90, por exemplo. Foram anos bem difíceis, mas tais organismos mantiveram a luta pela memória e os direitos humanos, além de conseguirem na justiça processos que puseram fim às leis de impunidade.
 
Mais recentemente, mais situações foram construídas, a partir de um apoio do governo. Hoje, existem organismos de direitos humanos, distintas organizações da sociedade civil, grupos políticos que levantam questões de direitos humanos e o próprio governo envolvido no assunto.

 cenário confluiu para um processo de memória, verdade e justiça, que tem sido muito interessante.
 
Correio da Cidadania: O que diria do desempenho da Comissão da Verdade brasileira, inclusive tomando como parâmetro o processo argentino?
 
Pilar Calveiro: Não se pode comparar, são dois momentos diferentes, são histórias e sociedades diferentes. Mas, acredito, a Comissão da Verdade do Brasil precisa também desempenhar um papel importante em termos políticos e históricos, para que se alcance a verdade. Creio que está fazendo isso e avançando na direção do esclarecimento da história.
 
Correio da Cidadania: A partir desse contexto, e tendo em conta as manifestações populares que tomaram conta do Brasil e o enfrentamento do Estado a esta situação, como você enxerga a sociedade brasileira hoje?
 
Pilar Calveiro: Creio ser esta uma questão muito importante numa democracia. É preciso reconhecer e aceitar a mobilização social, sem respostas repressivas. Nesse sentido, é preocupante quando a mobilização social se depara com repressão. Precisa de outro tipo de resposta.
 
Correio da Cidadania: Vocês, na Argentina, recebem notícias sobre a violência policial brasileira?
 
Pilar Calveiro: Sim. Vivo no México e também vejo que o problema da violência contra as mobilizações e protestos chega a diferentes países. É preocupante. Poderia ser evitado, pois o Brasil tem um processo democrático que permite responder de formas diferentes às atuais circunstâncias.
 
Na Argentina, é claro que existe violência policial. Mas ela ocorre, basicamente, em algumas regiões do país. Podemos também falar da polícia da província de Buenos Aires, que sofre diversas denúncias.
 
Mesmo assim, é preciso dizer que um dos maiores compromissos, em todos os governos Kirchner, foi o de não reprimir o protesto social. Trata-se esta de uma das conquistas mais importantes dos últimos governos para o processo político argentino.
 
Correio da Cidadania: Como foi a experiência de escrever um livro em terceira pessoa, ainda que você tenha sofrido na própria pele os horrores da ditadura e da repressão? O que inspirou esta abordagem?


Pilar Calveiro: Eu acredito que esses processos são vividos e pensados coletivamente. Não se trata do que cada um de nós viveu pessoalmente. Na realidade, o processo ocorre de forma coletiva. E também se pensa de forma coletiva. No livro, aparecem reflexões e intercâmbios entre diferentes pessoas que passamos por tais experiências.

Na verdade, o livro é mais do que de uma narrativa de terceira pessoa, pois trato de passar por uma série de testemunhos. E uma série desses testemunhos está escrita em primeira pessoa. Dessa maneira, trato de fazer uma voz coletiva. São muitas vozes simultâneas, explicando e tentando entender o sentido de uma experiência complicada, complexa, mas que carrega muitos elementos em comum.

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

Fonte: Correio da Cidadania

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