PICICA: "É possível falar em fim do ciclo lulista, principalmente, em face da
incapacidade de o governo Dilma manter aberta a brecha constituinte. Se
as redes de autonomia e autovalorização de pobres, minorias e culturas
de resistência se assentavam, também, sobre efeitos potentes do lulismo,
agora elas são situadas cada vez mais exteriores à lógica de governo.
Cada vez mais retraçadas como políticas “de saída” e, assim,
funcionalizadas dentro da política maior de inclusão social no mercado
de trabalho e na nova franja de expansão da economia brasileira (no
triplo momento: produção, circulação, consumo). Enquanto isso, a
manutenção determinada da política de alianças terminou por subjugar as
tendências de abertura, constrangendo, por exemplo, qualquer
possibilidade de abertura da política indigenista (reacionária), de
direitos LGBT (conservadora), da mulher e do negro (insuficientes). A
inclusão social tem se realizado na forma de mero ingresso de novos
sócios à sociedade brasileira, sem no entanto modificá-la – pretendendo
modificar, isso sim, os candidatos. Com isso, o que se perdeu foi o
aspecto qualitativo do lulismo: a política de composição, carregando um
grande contingente de cidadãos das cobranças, dores e exigências do
Brasil Maior – os “novos batalhadores”, conforme a pesquisa de Jessé
Souza3, moídos entre o sucesso e o fracasso de um dinamizado “capitalismo brasileiro”.
O novo ciclo de lutas arruinou o consenso oco que sobrou do lulismo.
Depois de junho, fica claro como restou somente uma política das
alianças mais impermeável do que nunca, e agora inteiramente estéril,
disfarçando o próprio conservadorismo com a maquiagem economicista e
tecnocrática da gestão do crescimento ou modernização do estado. Medidas
cosméticas, que em vez de atacar pretendem tornar ainda mais eficientes
as estruturas e mediações da desigualdade brasileira.
O golpe de misericórdia veio com a atitude do governo e do PT diante
das manifestações. Ao invés de aproveitar a mobilização social como
oportunidade para aprofundar a democracia, – resgatando a composição
política e polivalente nutrida pelos 10 anos de lulismo, mais aliás do
que qualquer idealista “espírito de Sion” (Singer), desatado da
composição de classe – o governo preferiu considerá-la uma ameaça. Uma
grande ameaça. A maior ameaça, depois do bem sucedido veto à Marina.
Comemorando antecipadamente a vitória na eleição de 2014 em primeiro
turno, chegou à conclusão que os protestos poderiam ser controlados pela
polícia federal, respaldando também a criminalização em nível estadual.
Comprou o ônus da repressão, federalizando-a através do MJ, PF e Abin,
enquanto militariza a organização da Copa do Mundo em todos os âmbitos. A
democratização conduzida por Dilma à luz dos megaeventos está inspirada
em 1964, ou se ama o Brasil Maior, ou então chama a polícia. Opta por
radicalizar, destarte, não a democracia, mas a fidelidade à política de
alianças, ao afluxo de investimentos."
O último prego no caixão lulista
11/11/2013
Por Bruno Cava
Por Bruno Cava
As manifestações dispararam um ciclo irreversível para a política brasileira. Elas puseram fim a uma fase relativamente longa chamada “lulismo”, quando um conjunto de medidas sociais de grande impacto (bolsa família, aumento do salário, microcrédito, eletrificação rural, políticas para o jovem, de acesso universitário) assegurou um apoio decisivo da maioria da população aos governos de Lula (2003-10) e Dilma (2011- ). Esse apoio não se realizou apenas na ratificação eleitoral em 2006 e 2010, como também numa aceitação contínua e difusa de um modo de governar e modular as expectativas e desejos, segundo um consenso construído principalmente pelo PT majoritário nos últimos 10 anos.
Por um lado, o lulismo embutiu uma política de alianças sustentada sobre setores conservadores: grandes “partners” entre empresários e banqueiros, a grande imprensa monopolista, os ruralistas e o agronegócio, um espectro de igrejas e mídias neopentecostais, o PMDB e suas redes clientelistas enraizadas pelo país – essa configuração pouco permeável, porém eficaz, assegurou a consecução de um “reformismo gradual” (André Singer1). Por outro lado, embutiu também uma política da composição, pouco visível nas análises ortodoxas sobre o lulismo, e baseada na ativação multitudinária de capacidades produtivas, comunicativas e políticas, uma autovalorização “desde baixo”, o que terminou por transformar capilarmente a sociedade brasileira. Em suma, o que Giuseppe Cocco chamou2 de “mobilização produtiva dos pobres”: um efeito positivo e disseminado do lulismo que, em certa medida, também explica a magnitude, a rapidez desconcertante, a plenitude drástica das manifestações de 2013.
É possível falar em fim do ciclo lulista, principalmente, em face da incapacidade de o governo Dilma manter aberta a brecha constituinte. Se as redes de autonomia e autovalorização de pobres, minorias e culturas de resistência se assentavam, também, sobre efeitos potentes do lulismo, agora elas são situadas cada vez mais exteriores à lógica de governo. Cada vez mais retraçadas como políticas “de saída” e, assim, funcionalizadas dentro da política maior de inclusão social no mercado de trabalho e na nova franja de expansão da economia brasileira (no triplo momento: produção, circulação, consumo). Enquanto isso, a manutenção determinada da política de alianças terminou por subjugar as tendências de abertura, constrangendo, por exemplo, qualquer possibilidade de abertura da política indigenista (reacionária), de direitos LGBT (conservadora), da mulher e do negro (insuficientes). A inclusão social tem se realizado na forma de mero ingresso de novos sócios à sociedade brasileira, sem no entanto modificá-la – pretendendo modificar, isso sim, os candidatos. Com isso, o que se perdeu foi o aspecto qualitativo do lulismo: a política de composição, carregando um grande contingente de cidadãos das cobranças, dores e exigências do Brasil Maior – os “novos batalhadores”, conforme a pesquisa de Jessé Souza3, moídos entre o sucesso e o fracasso de um dinamizado “capitalismo brasileiro”.
O novo ciclo de lutas arruinou o consenso oco que sobrou do lulismo. Depois de junho, fica claro como restou somente uma política das alianças mais impermeável do que nunca, e agora inteiramente estéril, disfarçando o próprio conservadorismo com a maquiagem economicista e tecnocrática da gestão do crescimento ou modernização do estado. Medidas cosméticas, que em vez de atacar pretendem tornar ainda mais eficientes as estruturas e mediações da desigualdade brasileira.
O golpe de misericórdia veio com a atitude do governo e do PT diante das manifestações. Ao invés de aproveitar a mobilização social como oportunidade para aprofundar a democracia, – resgatando a composição política e polivalente nutrida pelos 10 anos de lulismo, mais aliás do que qualquer idealista “espírito de Sion” (Singer), desatado da composição de classe – o governo preferiu considerá-la uma ameaça. Uma grande ameaça. A maior ameaça, depois do bem sucedido veto à Marina. Comemorando antecipadamente a vitória na eleição de 2014 em primeiro turno, chegou à conclusão que os protestos poderiam ser controlados pela polícia federal, respaldando também a criminalização em nível estadual. Comprou o ônus da repressão, federalizando-a através do MJ, PF e Abin, enquanto militariza a organização da Copa do Mundo em todos os âmbitos. A democratização conduzida por Dilma à luz dos megaeventos está inspirada em 1964, ou se ama o Brasil Maior, ou então chama a polícia. Opta por radicalizar, destarte, não a democracia, mas a fidelidade à política de alianças, ao afluxo de investimentos.
Num cenário de capitais fluidos e facilmente transferíveis para outras bandas, o governo calcula que a expansão do capitalismo à brasileira não pode correr riscos, sendo impensável qualquer possibilidade de tumulto. Temendo crises macroeconômicas, o governo parece se preocupar fundamentalmente em atender à exigência por segurança de investidores, patrocinadores e FIFA, num caso de miopia (aliás, clássica, caso de livro) do que vem sucedendo nas bases materiais/políticas dessa mesma economia. Centralizando a decisão política, mobilizou até a militância petista não para fazer investigação militante, mas para confrontar aqueles que, indignados com um modelo de progresso, cidade e inclusão social, resolveram recolocar a política onde é mais conflitiva. No lugar onde o PT não existe mais: nas ruas, nas praças, nas ocupações, nas passeatas dissidentes, no longo arco percorrido pelas manifestações em sua atividade diuturna de auto-organização e autodefesa, e diante dos prédios e símbolos da criatura bicéfala, meio estado meio mercado, que sobredetermina as instituições brasileiras.
Bruno Cava, mestre em filosofia do direito pela UERJ, é escritor e blogueiro, e participa da rede Universidade Nômade
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NOTAS
2 COCCO, Giuseppe. Trabalho e cidadania: produção de direitos na crise do capitalismo global. 3a ed. (ampliada). São Paulo: Cortez, 2012 [2000].
3 SOUZA, Jessé. Batalhadores do Brasil; nova classe média ou nova classe trabalhadora?, 2a ed. (ampliada). BH: UFMG, 2012 [2010]
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