PICICA: "O que caracteriza os novos
movimentos na era de uma “esfera pública do capital”? Ora, se a nova
“sociedade civil” é composta por multiplicidades heterogêneas governadas
imediatamente pelos fluxos das finanças e do mercado, o mesmo se dá com
a composição das formas de resistência. Aquelas velhas categorias
homogêneas que lutavam no horizonte do fordismo, agora ou se derramam em
novos modos de subjetivação, ou precisam se articular com eles para
constituir um movimento real de lutas. No movimento dos professores, por
exemplo, o momento de maior potência foi, sem dúvida, sua articulação
com os jovens precários que já estavam nas ruas realizando uma greve urbana
de novo tipo. E o momento mais enfraquecedor ocorreu quando o sindicato
voltou a operar com base na representação de política e na disciplina."
Entre o choque e as finanças: as UPPs e a “integração” da favela à cidade
05/11/2013
Por Alexandre Mendes
Por Alexandre F. Mendes
–
Na mesma semana em que o
coordenador das UPPs, coronel Frederico Caldas, anuncia a transferência
de 70 policiais da unidade da Rocinha alegando que “fatores
psicológicos” abateram a tropa depois do caso Amarildo, a presidenta do
Instituto Pereira Passos, Eduarda La Roque, divulga o lançamento, para
2014, de um Fundo de Investimentos em Participações das UPPs (FIP –
UPP), com o objetivo de “organizar uma carteira de investimentos sociais
em comunidades pacificadas e não pacificadas e oferecer as cotas do
fundo a investidores brasileiros e estrangeiros” (La Roque, Jornal Valor
Econômico, 1/11/13).
Esses dois fatos, a meu
ver, não se articulam apenas pela coincidência temporal, mas,
principalmente, por evidenciar as linhas, cada vez mais distantes, que
separam uma relação estabelecida entre as UPPs e os movimentos sociais
de resistência (a campanha Cadê o Amarildo) e a governança da
“pacificação” realizada por mecanismos de estado e de mercado (a
campanha pela “integração” entre favela e cidade). Nossa proposta é
ensaiar rapidamente uma compreensão da crise política das UPPs tendo
como ponto de partida essa distância estabelecida entre as mobilizações
democráticas atuais e as tentativas de captura ensaiadas pelo
dispositivo público-privado.
No primeiro caso, um
movimento multitudinário, composto por uma rede heterogênea de sujeitos,
faz emergir o fato escandaloso e dramático dos desaparecimentos
forçados e das torturas policiais em áreas de UPPs (130 desaparecidos
somente em 2010, segundo dados do Instituto de Segurança Pública – ISP).
No segundo, temos a redução dessa composição à denominada “classe C”,
aquela que consome produtos e serviços e, ao mesmo tempo, almeja uma
gradativa ascensão social. A nova classe que luta (e como luta!) é conduzida pelo imperativo do “choque de formalização” e da “inclusão do mercado”: jus imperii e lex mercatoria passam a caminhar juntos na nova economia política da favela.
Por outro lado, talvez a
questão mais instigante não seja constatar a existência do dispositivo
público-privado (estado e mercado estão juntos há muito tempo), mas o
problema de como essa tecnologia se desenvolve em um capitalismo que abandona as políticas do welfare (estado
de bem estar social) e tenta organizar a sociedade — diretamente — pelo
mercado. Sem dúvida, nesse contexto, teremos políticas que estão bem
longe dos projetos fordistas para as favelas (parques proletários,
assistência social, inclusão em empregos formais, divisão entre esfera
da produção e da reprodução social etc.) e movimentos de luta que, para
serem reais, precisam atuar em novas bases, questionando o novo
agenciamento.
Qual seria, então, o
dispositivo que permite a nova relação entre público e privado, e que
também enseja novos conflitos sociais?
Investigar o papel assumido pelas finanças me parece um bom caminho. Segundo o economista Christian Marazzii,
elas serviriam de “dispositivo de agregação dos processos de
individualização”, um tipo de “comunismo do capital”, em que o capital
financeiro passa a ser o representante coletivo dos múltiplos
trabalhadores/investidores que fazem parte da “sociedade civil”. Longe
do modelo do welfare que, com suas políticas sociais de proteção
ao trabalhador, produzia um tipo de inclusão pelo salário sempre
correlata a uma possibilidade de representação política (sindicatos,
partidos, justiça do trabalho etc.), — no neoliberalismo a própria
“financerização define a esfera pública do capital” (Marazzi, C, 2008).
No mesmo ato em que a
sociedade liberal dos patrões e trabalhadores industriais é estilhaçada
nos delgados investimentos do capital, são criadas as condições para uma
“sociedade civil” neoliberal, com o poder de aglutinar os múltiplos
fragmentos que se tornam “empresas” (a forma-empresa se generaliza em
todas as direções). Isso ocorre, explica Marazzi (2008, p. 58), a partir
de dois movimentos: primeiro, com a transformação do trabalhador em
investidor financeiro, que se dá com a conversão dos salários, pensões, e
direitos sociais em geral em ativos financeiros administrados por
bancos, fundos de pensão, fundos de investimento etc. Nessa linha, cada
trabalhador passa a ser interessado direto na valorização financeira dos
valores recebidos, em razão do trabalho ou dos direitos respectivos.
Segundo, a própria possibilidade do trabalhador se manter ocupado, obter
um salário-renda e uma inserção no mercado, acompanha o ritmo das
oscilações das finanças. Por isso, o default de Eike Batista é
mais lamentado pelos pequenos investidores e trabalhadores (que também
alimentam os fundos de pensão e bancos públicos de fomento) do que pelos
grandes acionistas do mercado (digamos, o novo “patronato”).
As finanças, assim, tendem a
incluir diretamente todos os indivíduos em uma nova sociedade (do
capital) governada por modulação, fragmentação e flexibilização, na qual
“o capital financeiro, enquanto capital social cotado em bolsa, se
apresenta como representante coletivo da multidão de sujeitos que povoam
a sociedade civil” (idem). O poder financeiro é, portanto, alavancado
por um processo contínuo de integração. Público e privado, estado e
mercado, aparecem diluídos (mas não confundidos) num poder que opera por
uma inclusão sem universalização (crise dos direitos sociais
universais) e por uma exploração sem homogeneização (o salário se
transforma em renda flexível e incerta). As formas antigas de
representação política, por sua vez, não conseguem (ou não querem)
representar a miríade de heterogêneos “homens-empresa” que lutam
diariamente contra o endividamento e por novos direitos pós-welfare.
Se adentro rapidamente
nessa análise sobre o papel das finanças no capitalismo contemporâneo, é
para sugerir que a prática e o discurso governamental da “integração
entre favela e cidade”, que encontram nas UPPs a sua infantaria, querem
pavimentar uma inclusão de novo tipo. A classe C é este pedaço da
“sociedade civil” a ser produzida e capturada pelas teias das finanças e
do mercado, enquanto o público (estado) pratica as dores da pacificação
e o fomento para o novo arranjo.
Voltemos a reportagem do
jornal Valor Econômico. Antes dessa notícia vir a público, Eduarda La
Roque já tinha escrito um pequeno libelo denominado Rumo ao Fim da Cidade Partida (2012), esboçando várias estratégias políticas, econômicas e sociais que dariam início ao “fim da cidade partida” e o suposto apartheid entre a favela e a cidade. Eduarda, no próprio textoii,
se apresenta como uma economista neoliberal, com forte experiência no
mercado financeiro, e que decidiu assumir o grande desafio, a partir de
2012, de presidir o órgão de planejamento municipal Instituto Pereira
Passos (IPP), a convite do Prefeito Eduardo Paes (La Roque, 2012, p.
195).
A economista aproveita para
defender a sua gestão como Secretária de Fazenda do Município,
afirmando que, em três anos, a Prefeitura conquistou sustentabilidade
fiscal e o aumento, por três vezes consecutivas, do rating de
avaliação de risco para investimentos, igualando-se à União. Seria,
portanto, a hora de avançar e trabalhar em prol de uma “sustentabilidade
social, econômica e ambiental” da cidade do Rio de Janeiro, nunca
esquecendo o papel no alinhamento entre as três esferas do poder
(federal, estadual e municipal) na “virada histórica” que a cidade
estaria vivendo.
Nesse contexto, três
elementos seriam fundamentais: a mudança na segurança pública com a
chegada das Unidades de Polícia Pacificadoras; a entrada dos serviços
públicos nas favelas e a UPP Social, a participação da “sociedade civil”
na integração almejada. É justamente nesse último elemento que a
economista lança como fundamental o conceito de “Parceria
Público-Privada e com o Terceiro Setor”, representada pelo acrônimo
“PPP3” (idem, p. 197). A mobilização da “sociedade civil” e um novo
arranjo entre público e privado devem caminhar juntos no caminho até a
integração.
Eduarda sabe da importância das ONGs para a governança dos territórios pós-welfare,
mas parece desconfiar do atual funcionamento desse mecanismo. A
economista, nunca fazendo críticas diretas, parece estar atenta à ampla
insatisfação com o trabalhos de algumas organizações civis, seja pela
baixa qualidade do serviço prestado, seja pela relação problemática com o
poder público, determinada, muitas vezes, por critérios de compadrio
político, de grupo, ou mesmo familiar. As ONGs precisam funcionar em um
novo sistema aberto às dinâmicas do capital gerido financeiramente: elas
precisam aderir à forma-empresa e à forma-mercado.
Por isso, a hipótese é que
Eduarda, no esteio neoliberal, mira no tipo de “corporativismo” do
terceiro setor para guiar as ações por critérios de eficiência,
concorrência e profissionalização da gestãoiii.
O mercado aqui aparece como dispositivo para “quebrar” relações
viciadas estabelecidas entre as organizações e o poder público, com um
impacto negativo no território: o capital precisa fluir para produzir
sua “esfera pública” e a inclusão da nova sociedade civil. Digamos que
as velhas ONGs são vistas como as antigas “corporações de ofício”
criticadas por Adam Smith, na emergência da economia clássica. Elas
precisam ser desarticuladas para emergir a ONG-empresa aberta às
escolhas do mercado.
Assim, a proposta apresentada por Eduarda La Roque para 2014, que pode ser encontrada no texto Inclusão social e o papel do mercado financeiro (2012)iv,
pressupõe um controle das atividades do terceiro setor, não pela ideia
de patrocínio público de iniciativas privadas (facilmente direcionadas
por critérios “fora do mercado”), mas por uma nova interação
(neoliberal) entre o estado e o mercado, entre público e privado. Ela
tenta introjetar a ideia de gestão, profissionalização e concorrência
entre as ONGs, que se tornariam verdadeiros “players” em busca de
financiamento em um mercado de ativos sociais e ambientais.
A economista cita os
exemplos da Lei Rouanet e da Lei Municipal de Incentivo a Cultura, para
defender um amplo repertório de incentivos fiscais que estimularia
empresas e proprietários a investir nos fundos socioambientais. O
sistema de rating avaliaria o potencial de cada organização civil
e o resultado dos projetos realizados, garantindo o controle do
investidor. Com a regulação da CVM, surgiria um “novo mercado” e as
políticas públicas poderiam ser afetadas pela “agilidade e eficiência do
setor privado”. A escolha dos projetos seria realizada de forma
parecida como o “market timing” dos ativos financeiros, mas os especialistas seriam outras “ONGs” com o expertise de selecionar projetos promissores.
Chegamos, então, a seguinte
conjuntura: (a) se hoje, antes da “reforma La Roque”, as mobilizações
sociais multitudinárias e das favelas são “pacificadas”, dentre outros
meios mais violentos, por ONGs que, em sua relação com o estado, atuam,
muitas vezes, para neutralizar e capturar os conflitos por justiça que
emergem, agora (b) esse novo tipo de “representação” será exercido, a
partir de 2014, diretamente pelo mercado, que poderá combinar desenhos
de “políticas sociais” para os moradores de favela com o lançamento de
novos produtos e serviços para os mesmos moradores. No “comunismo do
capital” o intermediário (seja ele uma ONG, um sindicato ou um partido) é
reduzido a um longa manus do mercado, para a constituição de uma “esfera pública” diretamente governada pelas finanças e pelas planilhas de lucro.
Não estou, nesse texto,
lamentando pelo destino de algumas ONGs que, já há algum tempo, são
consideradas “vendidas” ou “não confiáveis” por movimentos sociais e de
resistência nas favelas. O que me chama a atenção são os novos desafios
colocados por esse novo mecanismo que inclui a “Classe C” nas redes do
mercado e do endividamento e, ao mesmo tempo, entrega o território da
favela às políticas dos “gestores” escolhidos pelo mesmo mercado. Nesse
movimento, desaparecem todas as forças de participação social do
território, todas as tentativas de se realizar articulações autônomas de
moradores e afetados pelas políticas públicas, ou seja, toda a
possibilidade de democratizar de alguma forma o processo
de “pacificação”. A única mobilização permitida é a do próprio mercado e
sua “esfera pública”. Movimentos reais de conflito acabam “atrapalhando
os negócios”, como parece ser a própria visão que todos os governos
possuem dos recentes embates por direitos ocorridos desde junho de 2013.
O processo de integração: estratégias do estado e do mercado
Continuo pedindo a
paciência do leitor para outro dado importante na compreensão das atuais
políticas de “integração da favela à cidade”. Elas não se limitam a uma
visão local da cidade do Rio de Janeiro, mas também são elaboradas no
âmbito da Presidência da República. Em um seminário realizado
recentemente, intitulado “Integração da favela à cidade” (maio de 2012),
a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República
elaborou um texto-basev,
cuja premissa é que as favelas estão “desintegradas” da cidade em razão
do distanciamento com o “regular”, a prestação de serviços públicos, os
padrões “subnormais” urbanísticos, o controle do poder público e a
legislação existente (BARROS, R. et al, 2012).
A favela é um campo de
atuação para o estado, que deve assumir a agenda da formalização, do
poder de polícia e do controle público. E no texto encontramos a
seguinte afirmação: “a formalização das atividades nessas comunidades
deverá elevar, por sua vez, os custos para empreendedores e usuários de
serviços públicos (idem, grifo nosso)”. Ora, a questão do aumento
de custos de vida não só é colocada expressamente pelos autores, como
naturalizada como um efeito normal, previsível e incontornável. A
formalização, operada por intervenções públicas, “deverá” elevar os
custos para os moradores e comerciantes da favela.
E como deverá ocorrer o aumento de custo de vida e todo o processo de “integração”? Nesse momento, os autores assumem o caráter unilateral
da medida, admitindo que, normalmente, a comunidade não é consultada
sobre seu interesse na integração. O leitor que, com razão, desconfie de
tamanha sinceridade, pode acessar o documento, onde encontrará a
seguinte afirmação: “Como uma mudança imposta, não
necessariamente demandada, é natural que se ofereça um período de
incentivos para ajuste à nova ordem” (idem, grifo nosso).
A Secretaria de Assuntos
Estratégicos propõe, assim, uma “transição escalonada e programada” na
qual será oferecido para a comunidade um período de incentivos para “o
ajuste à nova ordem”. Portanto, sabedores das possíveis resistências dos
habitantes de favelas ao aumento do custo de vida e dos custos nas
atividades geradores de renda, os estrategistas propõem uma integração
unilateral, sem participação, mas suave. Se em Eduarda La Roque
temos a proposta de uma gestão flexível que entrega ao mercado a
capacidade de realizar investimentos sociais, aqui a integração
unilateral é operada por uma estratégia de imposição sutil e progressiva
de uma ordem na qual a participação democrática e comunitária é
naturalmente afastada.
Vejamos o texto:
“Integração unilateral
– Uma questão a ser enfrentada na integração é precisamente a
importância e a adequação de legislação que seja específica para as
comunidades, assim como a necessidade de um período de transição para a
formalização. Há dois argumentos nesse sentido: (1º) A regularização
representa uma profunda mudança nas regras de funcionamento da
comunidade. Isso significa mudanças de hábitos e com custos de magnitude
significativa na maioria das vezes. Uma das formas de mitigar alguns
desses custos e tornar a mudança de hábitos viável é a opção por uma
transição escalonada e programada. (2º) A natureza unilateral da
integração. Normalmente, a comunidade não é consultada sobre seu
interesse na integração. Dessa maneira, presume-se que o interesse
coletivo encontra-se acima dos interesses locais. Como uma mudança
imposta, não necessariamente demandada, é natural que se ofereça um
período e incentivos para ajuste à nova ordem (idem, p. 12).”
Integração unilateral, seja
pelo mercado, ou por um estado que, literalmente, trapaceia, tentando
suavizar os custos e dissabores da chamada “formalização”. Nesse caso, a
democracia desaparece em troca de um genérico “interesse coletivo”, na
mesma medida que o possível endividamento dos moradores é assumido como
um mal necessário, uma naturalidade inerente ao processo. É preciso
abrir a favela à dinâmica dos serviços (todos privatizados, por sinal),
na mesma medida em que o poder público garante a “mudança imposta” e
propõe uma transição escalonada para dispersar eventuais resistências.
A integração da favela à cidade pela via do mercado aparece também nas pesquisas e conclusões do economista Marcelo Neri. No paper denominado UPP2 e a Economia da Rocinha e do Alemão: Do Choque de Ordem ao de Progresso (2011)vi,
o “choque de formalização”, segundo o autor, não levaria somente ao
aumento da arrecadação tributária, mas, principalmente, à abertura das
favelas ao mercado. A arrecadação de IPTU e dos impostos relacionados às
atividades comerciais e de serviço seriam importantes, mas, o
fundamental seria, a partir da função primordial do estado em fornecer
segurança e o império da Lei, “completar a operação dos mercados”:
“O eixo não
é, e não deve ser, levar os favelados ao (cofres do) Estado mas muito
mais levar o Estado às favelas e com isso pela função talvez mais
primitiva do Estado de prover segurança e o império da lei e com isso
(sic) completar a operação dos mercados. É preciso ir além e dar o
mercado as comunidades, completando o movimento dos últimos anos quando
houve queda da desigualdade entre favela e asfalto, demos os pobres aos
mercados (consumidores). (idem, p. 38)
Nessa reflexão, o processo
de integração apresenta uma “agenda favorável aos mercados” porque a
pacificação não representa custos fiscais adicionais ao setor privado.
Além disso, com a presença do estado, seria possível atingir um “ótimo
de Pareto”, a partir de uma convergência de elementos vantajosos para o
mercado, o estado e os moradores. O “choque de ordem”, necessário para
Neri, poderia ser converter também em “choque de progresso”, com ganhos
de capital e de bem estar.
Um dos elementos desse
processo ocorre porque “o choque de ordem das UPPs cria terreno fértil
para o desenvolvimento dos mercados consumidores na base da pirâmide”
(idem, p. 39). Segundo Neri, uma “nova classe média” emergirá do
reconhecimento do direito de propriedade nesses territórios e que deve
ser acompanhado de políticas públicas e regulatórias. Além disso, as
UPPs “abrem o mercado desta classe média emergente às empresas de fora
que ainda tem o interesse de colocar suas marcas nas favelas por merchandising”
(idem, p. 40). O choque de progresso seria o “crescimento vertical”
contínuo das favelas no sentido de expandir os limites colocados aos
mercados e ao estado.
No livro intitulado O lado brilhante dos pobres (2010),
Marcelo Neri e sua equipe traçam uma ampla análise estatística para
demonstrar a centralidade da chamada “Classe C” no Brasil,
principalmente, a partir do Governo Lula. A “nova classe média” aqui é
definida a partir de Thomas Friedman, que no livro O mundo é plano,
afirma que a classe média é “aquela que tem um plano bem definido de
ascensão social para o futuro” (NERI, M. [Coord]. 2010, p. 26). A
definição não é feita ao acaso, o esforço do livro é mostrar que o
governo brasileiro, nas pegadas na nova classe média, realiza um caminho
de crescimento gradual que o coloca, de forma relativamente segura,
imune à crise global que irrompeu em 2008vii.
Vejam que a metáfora do
“Choque de Progresso” se aplica perfeitamente à análise realizada sobre a
economia brasileira. Aqui vemos um tripé formado pela nova classe média
e as virtudes do mercado e do estado. O resultado desta tríade é a
perspectiva de anos dourados de crescimento estável e duradouro.
Entregar a “nova classe média aos mercados”, afirmar a capacidade do
estado em regular a sociedade, garantir a propriedade e realizar
políticas públicas de equidade, são fórmulas para garantir esse sucesso
(idem). A favela, nesse raciocínio, deve ser incorporada como novo
mercado consumidor e nova fronteira de expansão dos mercados. O choque
de ordem e de progresso retornam para o imaginário, agora na bandeira de
uma suposta convergência virtuosa entre mercado e estado.
Resumindo, então, os discursos apresentados percebemos uma afinidade que
define um processo de integração constituído por novos agenciamentos
entre público e privado: a) em La Roque as finanças são colocadas como
uma nova “esfera pública” que permite investimentos sociais direcionados
pelo mercado e executados por ONGs-empresas; b) na Presidência da
República a estratégia de formalização é assumida como processo
unilateral e escamoteada por mecanismos de transição que teriam como
finalidade suavizar o aumento do custo de vida dos moradores; c) em
Marcelo Neri o choque de ordem e de formalização são pressupostos para a
abertura da favela aos mercados e ao merchandising, conduzidos
por um novo protagonismo da Classe C, que deseja gradualmente consumir e
ascender socialmente. Esta seria a base para o crescimento do Brasil em
geral, e não apenas da favela.
Entre o público e o privado: constituir o comum
De volta ao livro de
Christian Marazzi, o economista afirma que o poder financeiro, ao
englobar toda a vida em seu circuito, também precisa enfrentar os
“ativos que escapam”. Não estamos mencionando o termo em seu sentido
econômico e literal, mas evidenciando que as subjetividades podem adotar
rumos inesperados, operar reviravoltas, recusar o destino que estava
anteriormente escrito. Não seria esse o fenômeno que irrompeu no Brasil
em uma conjuntura que ninguém afirmaria ser favorável às revoltas
sociais?
Eis que a Classe C, a nova
classe média, aquela na qual Friedman e Neri enxergavam um modelo de
segurança e estabilidade, demonstra que pode caminhar por curvas, a
contrapelo, e não apenas por linhas retas. E o Rio de Janeiro, que era o
laboratório reluzente dos novos arranjos entre público e privado, a
nova cidade-empresa, se constitui como cidade insurgente, onde
todos os ativos parecem escapar, desafiando ao mesmo tempo o poder
público que impõe a ordem e o poder privado que governa com base na
propriedade.
O que caracteriza os novos
movimentos na era de uma “esfera pública do capital”? Ora, se a nova
“sociedade civil” é composta por multiplicidades heterogêneas governadas
imediatamente pelos fluxos das finanças e do mercado, o mesmo se dá com
a composição das formas de resistência. Aquelas velhas categorias
homogêneas que lutavam no horizonte do fordismo, agora ou se derramam em
novos modos de subjetivação, ou precisam se articular com eles para
constituir um movimento real de lutas. No movimento dos professores, por
exemplo, o momento de maior potência foi, sem dúvida, sua articulação
com os jovens precários que já estavam nas ruas realizando uma greve urbana
de novo tipo. E o momento mais enfraquecedor ocorreu quando o sindicato
voltou a operar com base na representação de política e na disciplina.
No mesmo sentido, os
movimentos de moradia e das favelas devem procurar atravessamentos
semelhantes e aberturas à multiplicidade. A campanha pela verdade no
caso Amarildo foi uma experiência talvez única desse tipo de
experimentação. Um movimento que se espalhou por toda a cidade
articulando diferentes sujeitos, perspectivas, mundos e pontos de
partida. Nesse horizonte, a luta por Amarildo questionou o funcionamento
das UPPs não com base em argumentos de estado ou de mercado, não por
representações políticas ou por ONGs formalizadas, mas a partir da
constituição de um terreno comum, que é a própria possibilidade de entrelaçar paz e democracia em um sentido material (real).
Com o lançamento do
programa de Fundos de Investimentos e Participações em UPPs, para 2014, a
disputa para estilhaçar a “esfera pública do capital” em uma partitura comum
dos movimentos e mobilizações deverá se acentuar. Está claro que é esse
o único campo possível para que a integração da cidade, a partir de
suas singularidades, ocorra de baixo para cima, como constituição do comum,
e não como choque de ordem (público) e captura financeira (privada).
Essas duas linhas sobre a “pacificação” já estão colocadas. A primeira
aponta para uma democracia real, produzida na multiplicidade e numa
permanente abertura, a segunda, ninguém mais tem dúvida, reatualiza a
ditadura por outros meios.
—
Alexandre Mendes, doutor em direito pela UERJ, é professor da PUC e participa da rede Universidade Nômade.
NOTAS
i Cf. MARAZZI, C. Il comunismo del capitale Finanziarizzazione, biopolitiche del lavoro e crisi globale, 2008.
ii Cf. LA ROQUE, E. Rumo ao fim da cidade partida.
In: REIS VELLOSO, J.P. [Org]. Desenvolvimento Humano, “Indústrias
Criativas”, favelas e “Os Estatutos do Homem” (Ode ao amor, à vida e à
liberdade). Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.
iii
Devo esta hipótese a uma comunicação oral realizada pelo Prof. Giuseppe
Cocco (UFRJ) em reunião que estive presente com as pesquisadoras da
PUC-RJ Andrea Mello e Noelle Resende, ocorrida no início de agosto de
2013.
iv LA ROQUE, E; BOAVISTA, S.M.J. Inclusão social e o papel do mercado financeiro. Revista RI, outubro, 2012. Disponível em: http://ipprio.rio.rj.gov.br/wp-content/uploads/2012/10/RI-167-SUSTENTABILIDADE-por-Eduarda-La-Rocque-e-Jos%C3%A9-Marcelo-Boavista-1.pdf. Acesso em 27 de junho de 2013.
vi Cf. NERI, Marcelo [Coord]. O lado brilhante dos pobres. Rio de Janeiro: FGV/CPS, 2010.; NERY, M. UPP2 e a Economia da Rocinha e do Alemão: do Choque de Ordem ao de Progresso. Rio de Janeiro: FGV/CPS, 2011.
vii
A relação entre a emergência de uma nova composição de classe e sua
exploração por novas formas de capitalismo cognitivo no contexto da
integração das favelas é comentada por Giuseppe Cocco em entrevista à
Revista Online do IHU, edição de 10 de março de 2011. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/40363-o-complexo-do-alemao-e-as-mudancas-na-relacao-entre-capitalismo-mafioso-e-capitalismo-cognitivo-entrevista-especial-com-giuseppe-cocco. Acesso em 29 agosto de 2013.
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