PICICA: "Ao pensarmos na problemática do poder
punitivo, cabe-nos dissecar a instauração do que poderíamos chamar, numa
camada mais superficial, de “sequestro do conflito”, perfeitamente
interpretável realisticamente enquanto um sequestro do tempo, do espaço e
do ser.
O sequestro do conflito nunca representa
pura e simplesmente o sequestro de um conflito. Aliás, muitas vezes o
conflito nem sequer existe mais (e às vezes desde o início não existia).
O sequestro, sempre.
Este é o referencial quando pensamos em poder punitivo (na acepção adotada): sequestro."
Poder punitivo e Direito Penal: Sequestro do conflito, do tempo e do ser – Por Guilherme Moreira Pires
Por Guilherme Moreira Pires – 12/05/2015
Ao pensarmos na problemática do poder
punitivo, cabe-nos dissecar a instauração do que poderíamos chamar, numa
camada mais superficial, de “sequestro do conflito”, perfeitamente
interpretável realisticamente enquanto um sequestro do tempo, do espaço e
do ser.
O sequestro do conflito nunca representa
pura e simplesmente o sequestro de um conflito. Aliás, muitas vezes o
conflito nem sequer existe mais (e às vezes desde o início não existia).
O sequestro, sempre.
Este é o referencial quando pensamos em poder punitivo (na acepção adotada): sequestro.
Nesse sentido, destaca-se:
La característica diferencial del poder punitivo es la confiscación del conflicto, o sea, la usurpación del puesto del damnificado o víctima por parte del señor (poder público), degradando a la persona lesionada o víctima a la condición de puro dato para la criminalización.
[…] Sólo cuando se extrae el conflicto de ese modelo y se lo resuelve
conforme a alguno de los otros modelos de decisión de conflictos se
llega a una solución, pero en ese supuestro el poder punitivo
desaparece, porque por definición nos habremos salido de su modelo. Lo
cierto es que, desde el momento de la confiscación de la víctima, el
poder público adquirió enorme capacidad de decisión (no de solución)
[…] para lo cual ejerce un constante poder de vigilancia controladora
sobre toda la sociedad y, en especial, sobre los que supone real o
potencialmente dañinos para su jerarquización. (ZAFFARONI, Eugenio Raúl, 2009, p. 30-31).
Deparamo-nos, portanto, com enorme
capacidade de decisão, não de solução; não se extraindo do/no sequestro
do conflito nem sequer a proteção prometida, mas tão-somente maior poder de decisão
do Estado; em outras palavras, maior legitimação para o uso de seu
aparato coercitivo, validando seu poder punitivo (então transformado em ius puniendi – direito de punir) e incutindo no imaginário social a ideia de que, sem tal modus operandi, vislumbrar-se-ia o caos, algo próximo da falaciosa bellum omnium contra omnes
(guerra de todos contra todos) hobbesiana, desprovida de conteúdo
sério e dados empíricos que confiram a devida sustentação para sua
incorporação enquanto única possibilidade concreta de coexistência,
influenciada por uma determinada visão de humanidade.
(Sobre isso, leia mais aqui)
Poder de decisão que não se confunde com
capacidade de solução ou minimização de danos; tampouco deve, em
nenhuma estrutura de pensamento, ser equiparado à ideia de Justiça,
equiparação temerária que não se pretende legitimar ou (re)produzir
neste artigo.
Em suma, sob o pretexto de conter essa
caótica espiral de violências que emanaria dessa guerra-total (que jura
vislumbrar), o Estado se proclama (e se coloca) como a única entidade
capaz (e portanto legítima) de conter esse cenário dito inescapável, de
um turbilhão de violências intermináveis quando ausente o austero
controle paternalista, apresentado como bom, justo e necessário para se
evitar um cenário terrível.
Assim, sequestra da vítima o conflito,
magicamente colocando-se como a nova vítima, afastando a verdadeira,
isto é, a realmente lesada (se é que de fato existe uma lesão associada
ao crime no caso concreto), afastada e abandonada enquanto referencial,
reduzida à condição de gatilho.
Permuta-se a vítima real e concreta por
uma fictícia, abstrata e simbólica, o “Estado”, a “lei”, a “sociedade”, o
“pai-soberano” dos “filhos-súditos”, detentor da construção ius puniendi,
o poder de “castigar”, sempre atrelado à imposição de sofrimentos e
dores em detrimento de uma reflexão capaz de desmistificar antigas
superstições do senso-comum.
Ao tentar subtrair da vítima o conflito, o Estado assume o papel da vítima por excelência, abstrata, acionando o discurso que legitima a sua supremacia, a ideia de que só ele pode conter o turbilhão das violências recíprocas, da guerra de todos contra todos, que os ódios da vítima real tenderiam a impulsionar.
Discurso nitidamente desmascarado pela forma caricatural, seletiva,
abusiva e também caótica, pela qual o Estado realiza a vingança pública
por meio do espetáculo dos suplícios, obediente a uma determinada economia política do castigo forjada pelo poder soberano. (CARVALHO, Thiago Fabres de, 2010, p. 319).
Nesse mote, à luz dessa distorção de
papéis, uma simples infração de “A” perante “B” torna-se um crime de
lesa-majestade, a incidir contra a pessoa do soberano e sua lei,
valendo-se de uma retórica associada ao imaginário (e premissas)
descritas; a linguagem-crime nem sequer se dissocia do pecado perante o
Deus-Mortal-Leviatã – e sua Justiça (vingança) no formato de lei -, ao
qual devíamos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa.
Essa concepção política de vingança
pública, antigamente associada aos povos (equivocadamente) ditos
primitivos faz-se escamoteada no Estado Moderno, sob a escusa (comprada
de bom grado pelo público) de tratar-se de um crime à sociedade, como no
caso da guerra às drogas.
Daí, a infração tornar-se-ia negação
dessa autoridade, cuja negação deveria ser negada através da punição,
que, uma vez sendo negação da negação, resultaria na reafirmação da lei
lesada, bem como da pessoa do soberano, supostamente traído pelo “crime”
de “A”. Eis a ficção dentro da ficção. O erro dentro doutro erro.
Depreende-se, todavia, dessa ficção
retórica instrumentalizada como discurso legitimante antigo, tão-somente
a institucionalização – e não raro maximização – de toda sorte de
danos e sofrimentos, denominando o Estado arbitrariamente sua decisão de
solução, palavras que só podem se confundir em estruturas de pensamento
absolutamente viciadas.
Claro, os discursos legitimantes
oficiais são múltiplos, e alguns talvez não tão rasteiros: um pouco mais
sofisticados, mas ainda facilmente desconstruídos por aqueles que
enxergam suas fissuras e incongruências, aqueles que pensaram
criticamente acerca da questão criminal.
Podem ser mais sutis, ao mesmo tempo que
mais profundos nos equívocos e premissas furadas; podem amoldar-se com
coerência sistêmica a determinadas ideologias predominantes e
influentes, algumas em ascensão, outras em crise, mas ainda pulsando,
prontas para serem energizadas por elementos que se vinculem e lhes
resgatem.
Esse background simbólico nos
remete a um verdadeiro caldeirão de massacres, que pode ser ativado a
qualquer instante se assumirmos as estratégias de ação, escolhas e
preferências políticas erradas, como fazemos diariamente ao fortalecer o
Direito Penal e a cultura punitiva.
Certas construções retóricas são
instrumentalizadas por “coisas” tão poderosas, que pouco adianta expor
suas contradições isoladamente (sem lancear equivocadas premissas de
base): a palavra do poder permanece engolindo e sobrepujando o poder das
palavras que supostamente nos protegem de arbitrariedades, se
sobrepondo, impondo e rasgando as limitadas contenções, com suas
operacionalidades nada neutras, tão subestimadas por nós, que seguimos
subestimando inclusive o enorme poder de destruição do sistema penal e
suas falsas respostas: colossal na amplificação de danos e sofrimento
estéril, (mais que) anêmico para solucionar conflitos; um prolongador de
conflitos, um eternizador de conflitos, impedindo os fluxos e influxos
do tempo, congelando seus trilhos, coroando um referencial estático e
muitas vezes melancólico.
Algo que insisti (na minha fala) durante
a I Semana Latino-Americana do Abolicionismo Penal (sobre conflitos e
sistema penal, reflexões críticas e imaginação não punitiva) em
Vitória-ES: seguimos subestimando o enorme poder de destruição do
sistema penal. (Que ao mesmo tempo fortalece e energiza um conteúdo,
assim também impede a destruição de mecânicas e racionalidades
arbitrárias, inclusive internalizadas e incorporadas, que deveriam
desaparecer).
Os tribunais carregam estátuas e
símbolos (re)produtores de uma atmosfera, de um noção pesada de Justiça,
imposta de cima, que não corresponde tão bem ao que pretende
resguardar, talvez porque essa pretensão declarada não seja real, ou, ao
menos, não seja compartilhada pela maior parte das pessoas que compõe
essa poderosa edificação humana, cujo poder transcende as boas intenções
de poucos, notadamente diluídas pelas arbitrariedades de muitos.
Desafortunadamente, constitui mero
devaneio acreditar que os ideais de Justiça serão contemplados
simplesmente pelo peso dos grandes e imponentes edifícios erigidos pelo
homem – essa atmosfera de poder, por si só, longe de solapar a barbárie e
a violência, as institucionaliza; (re)produz discursos que moldam uma
realidade física, que obedece tendências e operacionalidades sistêmicas,
atrelados às simbologias, linguagem e poder, inclusive o punitivo; e
inclusive o soberano (que não veio a óbito, como oficialmente pregam e
juram nossas instituições e significações predominantes).
Dito isso, frise-se que não foi o último escrito sobre símbolos, linguagem e poder mero capricho. (http://emporiododireito.com.br/simbolos-linguagem-e-poder-analise-da-coesao-forjada-a-partir-de-uma-perspectiva-anarquista-e-abolicionista-por-guilherme-moreira-pires/)
O território discursivo jurídico-penal
segue movido à luz de referenciais reducionistas e artificiais,
fabricados e energizados por – e a partir de – um feixe de ficções
retóricas, que busca replicar interações fictícias em função de um coro
unívoco de simplificações interpretadas enquanto respostas e/ou
soluções, sem, contudo, verdadeiramente responderem ou solucionarem
quaisquer conflitos.
Todo cuidado é pouco com a retórica do
paternalismo estatal, protetor de incontáveis bens jurídicos e
esbanjador de autoridade legitimada pelo medo diariamente incutido nos
cidadãos, supostamente “contratantes” de algo.
“É preciso buscar
instrumentos mais eficazes e menos nocivos do que o fácil, simplista e
meramente simbólico apelo à intervenção do sistema penal, que, além de
não realizar suas funções explícitas de proteção de bens jurídicos e
evitação de condutas danosas, além de não solucionar conflitos,
ainda produz, paralelamente a injustiça decorrente da seletividade
inerente à sua operacionalidade, um grande volume de sofrimento e de
dor, estigmatizando, privando da liberdade e alimentando diversas formas
de violência”. (KARAM, Maria Lúcia, 2006).
Transcender as categorias de pensamento e
estruturas dadas é necessário para transcender o atual sistema de
decisão de conflitos através da (ir)racionalidade punitiva. Revela-se
insano permanecermos apostando em conflitos e respostas totalizantes
conjecturadas a partir da imagem de indivíduos fictícios e desejos
universais, forjados e traduzidos numa abstrata equação central
arbitrária.
Equação apresentada de sorte a
racionalizar a procedência do sistema penal contra os comportamentos
delituosos (cinicamente evocando o discurso de proteção da sociedade)
que, frise-se, não compartilham nenhuma natureza geral entre si, estando
o denominador comum na mesma resposta apresentada para uma série de
ocorrências absolutamente distintas em inúmeras perspectivas, o que é de
uma estupidez estratosférica.
Nesse sentido, destacam Lola Aniyar e Rodrigo Codino, em capítulo sobre Hulsman:
“En el concepto de ‘delito’
hay situaciones que tienen poco en común en su motivación, en sus
consecuencias, en su naturaleza, en sus posibilidades de control:
¿que tienen en común la violencia familiar, la violencia callejera, el
escalamiento, la receptación, los delitos de tránsito, la contaminación
ambiental, la corrupción? Él señala que ‘lo único que comparten los delitos es que el sistema de justicia penal está autorizado para proceder en su contra’.” (DE CASTRO, Lola Aniyar; CODINO, Rodrigo, 2013, p. 184).
Importante frisar que a palavra “delito”
nos remete não a um conceito substancial, derivado do vislumbre ou
descoberta de uma realidade natural, mas, sim, nos remete a uma
construção humana, no sentido de conferir uma determinada resposta
acerca dos modelos de comportamentos supostamente entendidos como
socialmente indesejáveis.
Inexistentes enquanto elementos
ontológicos, certas condutas eleitas passam, formalmente, a ser lidas
enquanto “delitos”, cuja artificialidade não impede implicações
realísticas sobremaneira influentes em nossas sociedades.
Implicações na realidade, diga-se de
passagem, demasiado distintas das conjecturadas por seus idealizadores,
muitos que inclusive acreditam cegamente nos saberes avocados pelo poder
exercido (mesmo ante a incompatibilidade com nossos dados empíricos);
seguem nos lindes semânticos dos discursos político-oficiais
legitimantes, aqueles que orbitam a construção-delito e são
(re)produzidos diariamente.
Para muito longe da neutralidade e da
“boa técnica”, tais eleições acerca dos comportamentos delituosos não
raro são tão obscuras quanto ilógicas para os que tentam encontrar
fundamentos lógico-objetivos num determinado contexto; os delitos são
sobremaneira distintos entre si, de modo que sua similaridade é a de
compartilharem um sistema que irá proceder em sua contrariedade.
Note-se que é incutida no imaginário
social uma realidade ontológica associada aos “crimes”, inexistente, mas
instaurada, e consequentemente instrumentalizada para justificar uma
pretensa realidade operacional declarada, depreendida da linguagem
“crime”, assim legitimando a atuação “em contrariedade” ao cardápio de
possibilidades sacadas dessa linguagem (im)posta; discursos oficiais de
funcionamento que divergem das operacionalidades reais visualizadas,
seletivas e amplificadoras de danos, dores e sofrimentos, sistemicamente
validados mediante elevado poder coroa-dor, inclusive dos (e nos)
discursos, tendente a engolir as palavras e os limites artificiais que
se retoricamente impôs; simulacros legitimadores, claro, de dores.
Seletivamente atuando nas páginas do
cardápio, formas e contextos que convém atuar, ou cuja tendência é o
atuar, conveniente dentro de certas operacionalidades e mecânicas de
funcionamento, tem-se o casamento mórbido do tempo melancólico e
estático sequestrado (e incorporado enquanto referencial forjado) com o
tempo do futuro que virá, marcado pelo desprezo à vítima, mero dado
político-sacrificial potencializador e ativa-dor de um altar marcado
pela destruição simbólica do agressor, então desovado no Cárcere.
O Cárcere, mesmo à luz de perspectivas
“bem intencionadas”, nos remete à canalização de toda a nossa ignorância
e dificuldade de se buscar respostas verdadeiras para cada conflito, ou
maneiras de apaziguá-los, minimizar os danos, dores e sofrimentos,
formas libertárias de evitá-los ao máximo.
Ademais:
Se
supone – falsamente – que el sistema penal está bajo el control de la
sociedad que lo creó. Se cree que el delito es un hecho excepcional que
justifica la naturaleza excepcional de una reacción en su contra. Pero
ni es un hecho excepcional, ni siempre justifica la naturaleza de una
reacción penal en su contra. […] El sistema penal no permite las respuestas de las partes. De esta manera, el sistema penal “le roba” el conflicto de las partes. Les impide una respuesta que pudiera ser más satisfactoria para ambas. Les impide una interacción que pudiera esclarecer las razones del conflicto y entender mejor su realidad. (DE CASTRO, Lola Aniyar; CODINO, Rodrigo, 2013, p. 184-185).
O sistema penal invoca o nome da vítima
para se justificar, avoca um passado congelado para sequestrar o
conflito e o tempo (consequentemente o ser), afasta a vítima real e a
escraviza em sua dinâmica totalitária, cujo referencial não é a vítima,
mas simbologias, metáforas e narrativas justificadoras da centralidade
da denominada Justiça Criminal; inequivocamente elementos justificadoras
de um controle.
O referencial temporal do delito é
precisamente a artificialidade de um tempo estático, congelado, que não
move; um fragmento temporal (melancólico) empregado como justificativa
para se retirar tempo de alguém; no entanto, confiscar tempo opera
igualmente como confisco do próprio ser; é muito mais do que o mero
sequestro do valor econômico do indivíduo através de um elemento para
muitos purificador, o ser humano também é tempo: ser é tempo e tempo é
ser; nossas existências são limitadas temporalmente, de modo que esse
elemento é central, inclusive na compreensão da dimensão social do
poder, merecendo menção em múltiplas perspectivas.
Falando em tempo, é passado o tempo de
se perceber que a linguagem-crime se mostra um obstáculo para pensarmos
além: ela não nos ajuda, ao contrário, limita arbitrariamente nossas
visões, acorrentando nossas possibilidades com correntes constitutivas
do nosso ser.
Às vezes o conflito já foi inclusive
solucionado (obviamente através de outras vias), mas o sistema penal
permanece trabalhando em torno da artificialidade temporal do delito,
cujo corte semântico pressupõe um tempo estático, de um momento
recortado, que pode perfeitamente não fazer mais nenhum sentido no
presente em questão; seria, talvez, a pena uma ponte para o futuro
ligada ao passado estático, um futuro que vive do passado ao invés de
buscar minimizar danos, dores e sofrimentos no presente.
Assim, quanto mais estudamos essa
ficção, mais compreendemos a apropriação de fantasias de malignidade, a
instrumentalização do realismo moral atrelado à ontologia do delito, e
mesmo as inúmeras formas de exclusão extraídas de estruturas de
pensamento, tendentes a repelir valores e comportamentos que não se
encaixam muito bem em uma determinada simetria de valores estruturais e
estruturantes, o que é amplificado em Estados e sistemas cujas mecânicas
de funcionamento já se mostram arbitrárias, seletivas, desiguais.
Mais e mais ilógico se torna bradar pelo
combate à criminalidade através do incremento de figuras delituosas,
quando se percebe que o sistema penal opera como maquinário construtor
de “criminosos” por excelência; que, para entendermos a ficção “delito” e
a própria criminalidade – para além da leitura enquanto realidade
ontológica – devemos, primeiramente, entender o básico: os processos de
criminalização, assim desmistificando premissas infundadas que são
fatalmente incorporadas em nossos sistemas e subsistemas, e que, claro,
compõe nosso imaginário.
A lei, os juristas, os intérpretes
decidem sobre o que é delituoso, assim instituindo automaticamente uma
produção de criminosos cujo corte e referencial não passa de uma ficção
(de)formadora de imaginários, orbitada por respostas que não respondem;
que selecionam, mas não solucionam.
Ampliar o sistema penal é, também,
ampliar um maquinário construtor de criminosos, por excelência, uma
edificação cuja mesma excelência estrutural não integra um modelo
propriamente de solução, mas de tomada de decisão e sofrimento estéril.
O que foi construído nos rodeia e por
sua vez também nos constrói, (de)limitando de modo profundo nossas
significações e estruturas de pensamento. Há quem diga que não podemos
escapar facilmente do posto, e que o posto não foi imposto, mas
coletivamente realizado para o bem de todos.
Há quem acredite em tudo, de meritocracia ao contrato social, sem julgarem-se utópicos.
Sim; utópicos são os outros; igualmente,
criminosos são os outros, aqueles profundamente diferentes de nós, os
cidadãos “de bem”.
Assim, reféns das crenças e respostas
prontas e confortáveis, respiramos mais tranquilos; vivemos e dormimos
melhor, e às vezes não desejamos mesmo acordar.
Mais fácil reproduzir qualquer coisa (e
legitimar qualquer coisa), afinal, nada disso pode se voltar contra nós,
os cidadãos “de bem”.
Ao aliviarem-se em suas constituições
inventivas, eximem-se defensivamente de perceberem suas brutais
contradições; novamente, uma defesa relacionada ao ataque.
“O sistema penal atua como um
maquinário construtor de delinquentes por excelência; é o próprio
sistema que, com seus mecanismos, etiqueta aquilo que não reflete seus
próprios valores (ditos justos e morais), de sorte a conjurar os
outsiders sob o prisma de deviants. Passa, então, a travar guerras
titânicas contra aqueles que não contemplem os valores geométricos e
simétricos que impôs, como no caso do tráfico de drogas, cuja bisonha
criminalização apenas expõe a lógica de um Estado que opta por
criminalizar tudo aquilo que não logra êxito em controlar.
Destarte, sem a materialização da
‘anormalidade patológica’ do desviante, não há a reafirmação da
‘normalidade moral’, do ‘bom’ e da ‘verdade’. […] precisamente diante da
materialização do ‘mal’ é que se percebe a ficção geométrica do ‘homem
bom'; a punição do ‘homem mau’ reafirma o caráter de verdade
(normalizadora-marginalizante), bem como o próprio poder do soberano.
Inclusive, sem (fabricar) o deviant, o sistema ruiria.
[…]
Exemplificativamente, no orbe penal,
ao se ansiar aniquilar inimigos parasíticos, criam-se construções para
tornar sua destruição gloriosa, eis que os homens ditos de bem não
desejam os rótulo negativos que distribuem aos montes, em seus
costumeiros olhares estigmatizantes.
Ante a carência de razões válidas e
morais para o extermínio, mostra-se bastante arquitetar suntuosas
construções, honrosas e a serem instituídas, travestidas de validade
para legitimar os apetecidos anseios e desejos. O Poder e o desejo de
violência pré-existentes, apenas evocam saberes legitimadores para
legalmente se imporem, que seriam justamente essas construções suntuosas
aludidas.
[…]
Assim, as pessoas cometem atos
imorais sem perderem a fictícia moralidade, símbolo do bom; enquanto que
os monstruosos e aberrantes inimigos daninhos seriam a exteriorização
da degradação, seres apodrentados, merecedores do pior. Eis a construção
execrável: ‘nós’, os ‘bons’, perpetramos erros, falhas perdoáveis;
‘eles’, os ‘outros’, degenerados que são, cometem crimes.
As pessoas comumente preferem ser
enganadas que perscrutar respostas […] optam por respostas prontas e
confortáveis, inequivocamente mais repousáveis aos olhos dos temerosos
negadores da complexidade, que, ao aliviarem-se em suas constituições
inventivas, eximem-se de perceberem suas próprias contradições, que são
várias […] assim evitam as críticas ameaças, contratempos colossais
tendentes a abrir fendas nas frouxas tessituras instituídas nas
sociedades, tamanhos os questionamentos referentes às instituições
vigentes e às significações escamoteadas e nelas gravadas, impressas
ocultando a complexidade, denegada pelo medo. […] medo (inclusive) de
sentir as feridas abertas daqueles que ele (homem) tem machucado
reiteradamente; medo do futuro incerto que o aguarda, um futuro
imprevisível e colonizador do presente; medo da morte. […] Jaz oculta em
nossas mentes a chave para a própria ‘salvação'; o animal homem não
nasce munido de criticidade, devidamente equipado e provido, mas forja
diariamente esse poderoso elemento; o homem comporta internamente essa
possibilidade.” (PIRES, Guilherme Moreira, 2013, p. 100-103).
Assim, não devemos desistir dela: da possibilidade, cada vez mais necessária, de se pensar além do castelo.
“Castelo tão influente, tão alto,
que nutrimos – todos nós – enormes dificuldades de pensar além. Eis o
desafio que deveríamos abraçar, ao invés de fracassada e frustradamente
insistirmos em adotar discursos legitimantes que já foram brutalmente
golpeados e desconstruídos.
O mosteiro está em ruínas, o rei
está nu, todos os discursos legitimantes foram obliterados e já caíram;
mas sempre há quem reconstrua o mosteiro, jure que o rei está coberto
(se necessário até produzem-lhe roupas), e busque salvar os discursos
legitimantes: reformados, reconstruídos, revestidos com as novas roupas
do rei.” (http://emporiododireito.com.br/pensar-alem-do-castelo-uma-reflexao-sobre-furtos-roubos-e-o-sistema-penal-por-guilherme-moreira-pires/)
Transcender o ideário e imaginário punitivo, pensar em sua oposição e além.
Se formos sustentar e nutrir a
edificação de algo, que seja de imaginação não punitiva, não de sistemas
e técnicas de destruição e controle social, tendentes à própria
expansão e perpetuação, engolindo limites, palavras, pessoas, vidas.
Notas e Referências:
[1] BARATTA, Alesandro. Criminología Crítica y Crítica del Derecho Penal – introducción a la sociología jurídico-penal. Traducción de Álvaro Búnster. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2011.
[2] CARVALHO, Thiago Fabres de. A Bravura Indômita da Justiça Penal: o imaginário punitivo à luz da ética da vingança. In: Revista de Direitos e Garantias Fundamentais. Vitória/Florianópolis: FDV/Boiteux, 2010, p. 311-338.
[3] CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Tradução de Guy Reynaud. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
[4] DE CASTRO, Lola Aniyar; CODINO, Rodrigo. Manual de Criminología Sociopolítica. Prólogo de Eugenio Raúl Zaffaroni. Buenos Aires: Ediar, 2013.
[5] FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2002.
[6] KARAM, Maria Lúcia. Violência de gênero: o paradoxal entusiasmo pelo rigor penal. Boletim IBCCRIM, n. 198, nov. 2006.
[7] PIRES, Guilherme Moreira, Desconstrutivismo Penal: uma análise crítica da expansão punitiva e dos mutantes rumos do Direito Penal. Vitória-ES, Aquarius, 2013.
[8] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Palabra de los Muertos. Conferencias de Criminologia Cautelar. Prólogo de Juan Gelman. Buenos Aires: Ediar, 2012.
[9] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El enemigo en el Derecho Penal. Buenos Aires: Ediar, 2009.
Guilherme Moreira Pires é
Advogado, doutorando em Direito Penal. Abolicionista e anarquista.
Autor dos livros: “Desconstrutivismo Penal: uma análise crítica da
expansão punitiva e dos mutantes rumos do direito penal” (2013); “O
Estado e seus inimigos: Multiplicidade e alteridade em chamas” (2014) e
“Os amigos do Poder: ensaios sobre o Estado e o Delito a partir da
Filosofia da Linguagem”(2014). Grupo Abolicionismo Penal – América
Latina – https://www.facebook.com/groups/ 673508846078451/?fref=ts
Imagem ilustrativa do post: Illustration pour Amnesty International (1997) // Autor: Enki Bilal // Com alterações
Disponível em: https://br.pinterest.com/thisnorthernboy/enki-bilal/
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
Fonte: Empório do Direito
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