maio 27, 2015

‘Jornalismo não é concurso de Miss Simpatia’. Por Sylvia Debossan Moretzsohn (OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA)

PICICA: "A orientação editorial do jornal carioca Extra na cobertura do assassinato do médico Jaime Gold, na Lagoa Rodrigo de Freitas, provocou muita polêmica na internet. Ao abrir espaço para relatar a história de pobreza e carência do adolescente suspeito do crime, o jornal foi acusado de defender um bandido e de tentar justificar aquele ato de brutalidade extrema. Outros exaltaram a escolha e mesmo se admiraram de ver um veículo do Grupo Globo agir daquela forma. Outros, ainda, a consideraram uma estratégia de marketing pensada para um público segmentado, o que aparentemente não faria qualquer sentido, já que a maioria dos leitores manifestou pesadas críticas ao jornal nesse episódio.

Nesta entrevista, o diretor de Redação Octavio Guedes, que exerce o cargo há seis anos e está no Extra desde a sua fundação, em abril de 1998, fala sobre a decisão de enfrentar o senso comum em nome da linha considerada mais justa e sobre o propósito de fazer um jornalismo popular “sem apelação, sem idiotizar a audiência”."


IMPRENSA EM QUESTãO > ENTREVISTA / OCTAVIO GUEDES

‘Jornalismo não é concurso de Miss Simpatia’

Por Sylvia Debossan Moretzsohn em 26/05/2015 na edição 852

A orientação editorial do jornal carioca Extra na cobertura do assassinato do médico Jaime Gold, na Lagoa Rodrigo de Freitas, provocou muita polêmica na internet. Ao abrir espaço para relatar a história de pobreza e carência do adolescente suspeito do crime, o jornal foi acusado de defender um bandido e de tentar justificar aquele ato de brutalidade extrema. Outros exaltaram a escolha e mesmo se admiraram de ver um veículo do Grupo Globo agir daquela forma. Outros, ainda, a consideraram uma estratégia de marketing pensada para um público segmentado, o que aparentemente não faria qualquer sentido, já que a maioria dos leitores manifestou pesadas críticas ao jornal nesse episódio.

Nesta entrevista, o diretor de Redação Octavio Guedes, que exerce o cargo há seis anos e está no Extra desde a sua fundação, em abril de 1998, fala sobre a decisão de enfrentar o senso comum em nome da linha considerada mais justa e sobre o propósito de fazer um jornalismo popular “sem apelação, sem idiotizar a audiência”.

No caso do assassinato do médico na Lagoa, a cobertura do Extra foi absolutamente distinta da do Globo. Como é possível investir nesse enfoque, se os dois jornais são da mesma empresa?

Octavio Guedes – Nossos “Princípios Editoriais” deixam claro: “As redações do Grupo Globo são absolutamente independentes entre si”. Cabe a mim, portanto, garantir essa liberdade à redação. Ao apurar, escrever ou editar uma reportagem para o Extra nossos jornalistas não se preocupam com o enfoque que o Globo dará ao assunto. Isso evita a pasteurização do noticiário e garante a diversidade de visões. O Extra se preocupa com o Extra. Apostamos num jornalismo popular sem apelação, sem idiotizar a audiência e com enfoque em dois temas: educação pública de qualidade e garantia dos direitos humanos. Não há liberdade de imprensa sem liberdade na empresa, sem liberdade para repórteres e editores.

Como é a relação com os leitores, em casos assim? Li os comentários no Facebook sobre a primeira página da edição que trata da trajetória do suspeito do assassinato do médico. As críticas foram pesadíssimas, como era previsível, e repetem os chavões de sempre sobre a criminalidade. Costuma-se dizer que os jornais tendem a atender/agradar o seu público, e no caso vocês contrariaram. Imagino que em outras vezes tenha ocorrido o mesmo. Como é possível realizar esse enfrentamento? 

O.G. – Jornalismo não é concurso de Miss Simpatia. O dever de informar é mais importante do que o de agradar a audiência. Vou citar um caso histórico que nem de perto tem paralelo com as circunstâncias que estamos discutindo. É um exagero que serve apenas para ilustrar. Há um livro muito interessante sobre o Münchener Post [A cozinha venenosa: um jornal contra Hitler, de Silvia Bittencourt, Editora. Três Estrelas], o primeiro jornal do mundo a noticiar a existência de Hitler. Na década de 1920, o diário já alertava sobre as ideias antissemitas pregadas nas cervejarias de Munique por um “rapaz de bigode curto e fala inflamada”. Fiquei imaginando como seria o Facebook do Münchener Post durante a ascensão do nazismo na Alemanha. O diretor de redação ia ser linchado diariamente nos comentários. E qual a posição correta do ponto de vista jornalístico? Recuar e mudar a linha editorial para ganhar “curtidas” e aumentar as vendas ou insistir nas denúncias contra o nazismo?

Isso não significa ignorar as críticas do público. É preciso ouvir sempre. Em algumas mancadas editoriais pelas quais fui responsável à frente do Extra o alarme tocou inicialmente nas redes sociais. Então, não se trata de demonizá-las. Muito menos de canonizá-las. Para reconhecer erros e acertos é preciso discutir com a redação, envolvendo o maior número possível de jornalistas, principalmente os repórteres, que estão mais perto do fato do que a chefia.

Quando entendemos que estamos no caminho correto – caso desta cobertura – bastam coragem e sangue frio para contrariar o senso comum e questionar soluções simples para problemas complexos. Só assim o bom jornalismo vai sobreviver. E ele sobreviverá!

Você deu esse exemplo do Münchener Post. Eles denunciaram o que estava por vir. Tinham razão, mas fracassaram. Guardadas as proporções, é o mesmo horizonte para quem faz o que vocês estão fazendo, contrariando as expectativas diante da cobertura de um crime como esse na Lagoa? Ou você acredita que, aos poucos, é possível levar as pessoas a refletir?

O.G. – Sou otimista. Nossa geração é caloura em democracia, mas há avanços. A vontade de refletir é a principal razão para alguém comprar um jornal. E a única fórmula que conheço para ajudar a reflexão é o velho e bom jornalismo. Não conheço outra.

O público que comenta as notícias na página do Extra no Facebook é diferente do que lê o jornal em papel? Se é, há diferença de comportamento entre um público e outro? 

O.G. – O Extra papel é regional, circula basicamente no estado do Rio de Janeiro. No site e nas redes sociais falamos com leitores de todo o país e com brasileiros residentes no exterior. Nosso site, segundo o Google Analytics, tem média de 17 milhões de visitantes únicos, sendo que 68% dos 100 milhões de page views vêm de fora do Rio. Nosso Facebook conta com 642 mil fãs, dos quais 192 mil moram na cidade do Rio. São públicos diferentes. Muitos internautas, ao deixar comentários, fazem questão de se identificar como leitor de banca, mas seria leviano falar em diferenças de comportamento baseado apenas em impressões. É um tema interessante para uma apuração mais aprofundada.

Você fala na disposição de enfrentar o senso comum quando entende estar no caminho correto. Mas isso pode significar, e em geral significa, a perda de leitores. Como enfrentar isso, ainda mais no cenário que a imprensa vive hoje?

O.G. – Para os jornais vendidos principalmente em banca, caso do Extra, o desafio é ainda maior. É como se ligássemos todos os dias para as cerca de 200 mil pessoas que vão às ruas comprar o jornal: “Bom dia. O senhor gostaria de renovar por mais 24 horas sua assinatura? Obrigado, amanhã voltaremos a ligar”.

Este leitor que busca informação no papel, e paga por isso, tem que ser muito valorizado. E não é seguindo bovinamente o senso comum que as redações vão conseguir isso. Ninguém compra jornal por preguiça mental. Ao contrário, o leitor quer enriquecer seu repertório. Este é o pacto entre jornal e leitor. Então, mesmo quando discorda de um enfoque numa determinada cobertura, o leitor vê honestidade de propósitos do jornal, pois o pacto não foi quebrado. Ele está estimulando a reflexão, mesmo que ele discorde. Por isso não temo perda de leitores com esta linha de cobertura. O caso da Lagoa não foi um espasmo editorial. Agimos desta forma em outras ocasiões. A cumplicidade com o leitor foi estabelecida.

O Extra costuma fazer denúncias contra o governo do Estado e, especialmente, contra a atuação da Polícia. Vocês já sofreram represálias ou ameaças? 

O.G. – Felizmente não é a regra, mas há alguns casos. Recentemente um fotógrafo nosso recebeu ameaças por fazer o registro de um policial usando touca ninja numa operação no Complexo do Alemão. A foto foi para a primeira página [edição de 7/4/2015]. A PM não se pronunciou porque havia ordens de não falar com o Extra. Naquele dia a informação chegou incompleta aos leitores, que não tiveram acesso à versão da polícia. Mais tarde, a PM alegou que o policial morava em favela e tinha permissão do comandante para usar a touca.

Esse caso mostra que sempre que há represálias contra um jornal ou um jornalista, quem perde é o leitor, a sociedade. Para registro: protestei com o governador do estado, o secretário de Segurança e o comandante da PM. A Secretaria de Segurança, ao tomar ciência do fato, deu apoio imediato ao jornalista e iniciou a investigação. Seguimos o protocolo de segurança do Grupo Globo e nada mais grave aconteceu.

***

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)

Fonte: OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA

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