maio 09, 2015

"Ciclos e crises". Por José Luís Fiori (OUTRAS PALAVRAS)

PICICA: Estamos, uma vez mais, nos defrontando com uma conjuntura de crise e um horizonte de incertezas, cujo equacionamento passará por uma luta política na qual estão em jogo as próprias regras de valorização do capital vigentes ao longo de todo o período “desenvolvimentista”. Essas regras são basicamente políticas e, por isso, só encontrarão espaço para sua reorganização através de um luta intensa e prolongada, em que cada interesse deverá valer-se por si mesmo. Luta em que cada grupo de interesse contará também com a fatia de que dispõe no interior do Estado enquanto seu principal recurso de poder. Em síntese, estamos vivendo nesta crise brasileira um momento de reorganização das relações políticas e econômicas de dominação, o que só é, de fato, possível através de uma transformação do próprio Estado numa direção que pode ou não apontar no rumo do aprofundamento da democracia”

J.L.F. {1984}, “O Vôo da coruja e a crise do estado desenvolvimentista”, Eduerj, RJ, 1995, p: 117

Ciclos e crises


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Dilma Roussef e Eduardo Cunha. Segundo Fiori, “coalisão no governo transformou-se num caleidoscópio ideológico e de oportunismo, se força nem vontade para sustentar uma estratégia econômica, social e de inserção internacional de longo prazo”

Turbulências políticas revelam: esgotou-se um ciclo; enquanto ele durou, país buscou mais uma vez “fugir para frente”, sem enfrentar seus problemas estruturais

Por José Luís Fiori

Estamos, uma vez mais, nos defrontando com uma conjuntura de crise e um horizonte de incertezas, cujo equacionamento passará por uma luta política na qual estão em jogo as próprias regras de valorização do capital vigentes ao longo de todo o período “desenvolvimentista”. Essas regras são basicamente políticas e, por isso, só encontrarão espaço para sua reorganização através de um luta intensa e prolongada, em que cada interesse deverá valer-se por si mesmo. Luta em que cada grupo de interesse contará também com a fatia de que dispõe no interior do Estado enquanto seu principal recurso de poder. Em síntese, estamos vivendo nesta crise brasileira um momento de reorganização das relações políticas e econômicas de dominação, o que só é, de fato, possível através de uma transformação do próprio Estado numa direção que pode ou não apontar no rumo do aprofundamento da democracia”

J.L.F. {1984}, “O Vôo da coruja e a crise do estado desenvolvimentista”, Eduerj, RJ, 1995, p: 117

É difícil, mas muitas vezes é necessário recuar no tempo para analisar melhor e compreender uma conjuntura de crise. Elas não caem do céu, nem são obra do acaso, e sua trajetória não é inteiramente imprevisível. Por isto, parece-nos útil, neste momento, voltar a um debate que ficou interrompido nos anos 80, sobre a instabilidade e as crises periódicas do “desenvolvimentismo brasileiro”, porque tudo indica que ele não morreu e que o país está enfrentando, neste momento, as consequências politicas provocadas pelo esgotamento de um ciclo que se repetiu várias vezes, através do século XX, em particular depois de 1930. Para não dizer o mesmo, recorro a um diagnóstico escrito em plena crise dos anos 80, sobre a própria crise, seus antecedentes e o suas recorrências:

O desenvolvimentismo brasileiro enfrentou durante toda sua história um problema crônico de financiamento externo e interno, que se transformou num dos principais responsáveis pelas suas desacelerações e crises econômicas cíclicas, que foram acompanhadas pelo aumento da inflação e pela estrangulamento fiscal do estado. A superação destas crises passou sempre pelo acesso a novos recursos externos, e por um conjunto de reformas fiscais e monetárias de emergência que conseguiram dar conta do financiamento corrente do setor publico. Mas durante estas “crises de estabilização”, o arrocho salarial e os cortes de gastos penalizaram fortemente os assalariados e provocaram uma ruptura das lealdades das elites regionais e empresariais em que se se sustentou a coalisão desenvolvimentista, provocando uma grande crise política e um ataque generalizado contra o Estado. Foi nestas horas de crise econômica e política que os governos desenvolvimentistas – pressionados por todos os lados e tendo que arbitrar créditos e investimentos escassos, e uma moeda ameaçada – descobriram sua baixa capacidade de implementar politicas anticíclicas ou estratégias mais penosas de enfrentamento da crise, devido a heterogeneidade e fragilidade dos seus apoios sociais e políticos, e devido ao alto grau fragmentação e “privatização” dos seus centros de poder. Mais do que isto, os governos desenvolvimentistas descobriram que nestas horas de crise estes centros de poder eram transformados em instrumentos de um luta “sem quartel”, entre os próprios “aliados” e dentro do Estado, pelo controle de posições e de recursos escassos. Esta luta restringiu invariavelmente as margens de manobra e levou o Estado, muitas vezes, à uma situação de paralisia decisória. Frente a esta situação crítica, os governos desenvolvimentistas e conservadores buscaram quase sempre a mesma solução I) tentando reimpor a sua “credibilidade” através de uma centralização do poder autoritária, II) e, “fugindo para frente”, sem enfrentar nem resolver as contradições e os problemas passados, apenas utilizando-se de novos recursos externos que permitiram reunificar os interesses que haviam estado coligados e que voltaram a se unificar pragmaticamente, em torno da nova liderança de turno..”.1


Se olharmos para a conjuntura atual, desta perspectiva de longo prazo, tudo parece indicar que o país está vivendo uma crise provocada pelo esgotamento de mais um ciclo de “fuga para frente” do desenvolvimento brasileiro. Não há duvidas que houve mudanças cruciais através da história, e que cada novo ciclo se deu num outro patamar de crescimento e complexidade social e econômica. . E o mesmo aconteceu com o grande salto social e democrático das primeiras décadas do século XXI. Mas apesar disto, o Brasil manteve seu padrão estrutural de crescimento e o novo projeto que alguns chamaram de “social-desenvolvimentista”, manteve também o apoio de uma coalisão de interesses extremamente heterogênea e desigual, ainda que agora sob a liderança de forças progressistas. Além disto, durante a última década, esta coalisão se alargou tanto que acabou se transformando num verdadeiro caleidoscópio ideológico e oportunista, sem força nem vontade para sustentar uma estratégia econômica e social, e de inserção internacional, de mais longo prazo, com capacidade de navegar junto nos períodos de tempestade e na contramão dos mercados e das marés ideológicas e midiáticas dominantes. Não é de estranhar, portanto, que na hora da desaceleração cíclica e das políticas de “ajuste”, a maioria destes “aliados” esteja desembarcando da canoa, com a mesma rapidez com que desembarcaram do regime militar, nos anos 80, e da coalisão neoliberal, dos anos 90. Mas é também nestas horas de crise que podem ser tomadas decisões que mudem o rumo da história. Para isto, entretanto, é preciso ter coragem, persistência e visão estratégica.. 


1 Fiori, J.L., 1988, “Instabilidade e crise do estado na industrialização brasileira”, Tese de Professor Titular, do Instituto de Economia Industrial da UFRJ, Mimeo, pgs.207-210 e 213-215 (texto reeditado pelo autor para este artigo).

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