PICICA: “Estamos,
uma vez mais, nos defrontando com uma conjuntura de crise e um
horizonte de incertezas, cujo equacionamento passará por uma luta
política na qual estão em jogo as próprias regras de valorização do
capital vigentes ao longo de todo o período “desenvolvimentista”. Essas
regras são basicamente políticas e, por isso, só encontrarão espaço para
sua reorganização através de um luta intensa e prolongada, em que cada
interesse deverá valer-se por si mesmo. Luta em que cada grupo de
interesse contará também com a fatia de que dispõe no interior do Estado
enquanto seu principal recurso de poder. Em síntese, estamos vivendo
nesta crise brasileira um momento de reorganização das relações
políticas e econômicas de dominação, o que só é, de fato, possível
através de uma transformação do próprio Estado numa direção que pode ou
não apontar no rumo do aprofundamento da democracia”
J.L.F. {1984}, “O Vôo da coruja e a crise do estado desenvolvimentista”, Eduerj, RJ, 1995, p: 117
Ciclos e crises
Turbulências políticas revelam: esgotou-se um ciclo; enquanto ele durou, país buscou mais uma vez “fugir para frente”, sem enfrentar seus problemas estruturais
Por José Luís Fiori
“Estamos,
uma vez mais, nos defrontando com uma conjuntura de crise e um
horizonte de incertezas, cujo equacionamento passará por uma luta
política na qual estão em jogo as próprias regras de valorização do
capital vigentes ao longo de todo o período “desenvolvimentista”. Essas
regras são basicamente políticas e, por isso, só encontrarão espaço para
sua reorganização através de um luta intensa e prolongada, em que cada
interesse deverá valer-se por si mesmo. Luta em que cada grupo de
interesse contará também com a fatia de que dispõe no interior do Estado
enquanto seu principal recurso de poder. Em síntese, estamos vivendo
nesta crise brasileira um momento de reorganização das relações
políticas e econômicas de dominação, o que só é, de fato, possível
através de uma transformação do próprio Estado numa direção que pode ou
não apontar no rumo do aprofundamento da democracia”
J.L.F. {1984}, “O Vôo da coruja e a crise do estado desenvolvimentista”, Eduerj, RJ, 1995, p: 117
É
difícil, mas muitas vezes é necessário recuar no tempo para analisar
melhor e compreender uma conjuntura de crise. Elas não caem do céu, nem
são obra do acaso, e sua trajetória não é inteiramente imprevisível. Por
isto, parece-nos útil, neste momento, voltar a um debate que ficou
interrompido nos anos 80, sobre a instabilidade e as crises periódicas
do “desenvolvimentismo brasileiro”, porque tudo indica que ele não
morreu e que o país está enfrentando, neste momento, as consequências
politicas provocadas pelo esgotamento de um ciclo que se repetiu várias
vezes, através do século XX, em particular depois de 1930. Para não
dizer o mesmo, recorro a um diagnóstico escrito em plena crise dos anos
80, sobre a própria crise, seus antecedentes e o suas recorrências:
“O
desenvolvimentismo brasileiro enfrentou durante toda sua história um
problema crônico de financiamento externo e interno, que se transformou
num dos principais responsáveis pelas suas desacelerações e crises
econômicas cíclicas, que foram acompanhadas pelo aumento da inflação e
pela estrangulamento fiscal do estado. A superação destas crises passou
sempre pelo acesso a novos recursos externos, e por um conjunto de
reformas fiscais e monetárias de emergência que conseguiram dar conta do
financiamento corrente do setor publico. Mas durante estas “crises de
estabilização”, o arrocho salarial e os cortes de gastos penalizaram
fortemente os assalariados e provocaram uma ruptura das lealdades das
elites regionais e empresariais em que se se sustentou a coalisão
desenvolvimentista, provocando uma grande crise política e um ataque
generalizado contra o Estado. Foi nestas horas de crise econômica e
política que os governos desenvolvimentistas – pressionados por todos os
lados e tendo que arbitrar créditos e investimentos escassos, e uma
moeda ameaçada – descobriram sua baixa capacidade de implementar
politicas anticíclicas ou estratégias mais penosas de enfrentamento da
crise, devido a heterogeneidade e fragilidade dos seus apoios sociais e
políticos, e devido ao alto grau fragmentação e “privatização” dos seus
centros de poder. Mais do que isto, os governos desenvolvimentistas
descobriram que nestas horas de crise estes centros de poder eram
transformados em instrumentos de um luta “sem quartel”, entre os
próprios “aliados” e dentro do Estado, pelo controle de posições e de
recursos escassos. Esta luta restringiu invariavelmente as margens de
manobra e levou o Estado, muitas vezes, à uma situação de paralisia
decisória. Frente a esta situação crítica, os governos
desenvolvimentistas e conservadores buscaram quase sempre a mesma
solução I) tentando reimpor a sua “credibilidade” através de uma
centralização do poder autoritária, II) e, “fugindo para frente”, sem
enfrentar nem resolver as contradições e os problemas passados, apenas
utilizando-se de novos recursos externos que permitiram reunificar os
interesses que haviam estado coligados e que voltaram a se unificar
pragmaticamente, em torno da nova liderança de turno..”.1
Se
olharmos para a conjuntura atual, desta perspectiva de longo prazo,
tudo parece indicar que o país está vivendo uma crise provocada pelo
esgotamento de mais um ciclo de “fuga para frente” do desenvolvimento
brasileiro. Não há duvidas que houve mudanças cruciais através da
história, e que cada novo ciclo se deu num outro patamar de crescimento e
complexidade social e econômica. . E o mesmo aconteceu com o grande
salto social e democrático das primeiras décadas do século XXI. Mas
apesar disto, o Brasil manteve seu padrão estrutural de crescimento e o
novo projeto que alguns chamaram de “social-desenvolvimentista”, manteve
também o apoio de uma coalisão de interesses extremamente heterogênea e
desigual, ainda que agora sob a liderança de forças progressistas. Além
disto, durante a última década, esta coalisão se alargou tanto que
acabou se transformando num verdadeiro caleidoscópio ideológico e
oportunista, sem força nem vontade para sustentar uma estratégia
econômica e social, e de inserção internacional, de mais longo prazo,
com capacidade de navegar junto nos períodos de tempestade e na
contramão dos mercados e das marés ideológicas e midiáticas dominantes.
Não é de estranhar, portanto, que na hora da desaceleração cíclica e das
políticas de “ajuste”, a maioria destes “aliados” esteja desembarcando
da canoa, com a mesma rapidez com que desembarcaram do regime militar,
nos anos 80, e da coalisão neoliberal, dos anos 90. Mas é também nestas
horas de crise que podem ser tomadas decisões que mudem o rumo da
história. Para isto, entretanto, é preciso ter coragem, persistência e
visão estratégica..
—
1
Fiori, J.L., 1988, “Instabilidade e crise do estado na industrialização
brasileira”, Tese de Professor Titular, do Instituto de Economia
Industrial da UFRJ, Mimeo, pgs.207-210 e 213-215 (texto reeditado pelo
autor para este artigo).
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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