PICICA: "O centenário de nascimento de Mario Monicelli, diretor que mesclou drama e comédia para combater a hipocrisia social"
Cinema
Para rir do poder
por Rosane Pavam
—
publicado
18/05/2015
O centenário de nascimento de Mario Monicelli, diretor que mesclou drama e comédia para combater a hipocrisia social
Reprodução do livro / Film Di
A recusa ao trabalho servil, por 13 horas diárias, em Os Companheiros
Mario Monicelli
acordou cedo para o cinema. Na Roma em que nasceu, em 15 de maio de
1915, o menino perseguia não os sucessos de bilheteria, mas as breves
farsas cômicas que antecediam as grandes projeções. Para ele, Buster
Keaton era um rei renascido a cada queda, capaz de entender a
inconstância das coisas. Monicelli procurou pelo comediante até mesmo
naquela sua toscana Viareggio de adoção, para onde a família se mudaria
nos difíceis anos de ascensão do fascismo. Filho do jornalista, crítico
teatral e dramaturgo Tommaso, o menino aprenderia a rir para sobreviver.
Mais que isso, seria um cômico por toda a longa vida dentro do cinema,
interrompida quando, detectado seu câncer na próstata, jogou-se da
janela do Hospital San Giovanni, em 2010, aos 95 anos. Havia em
Monicelli a sabedoria de Keaton, a seriedade no absurdo, a risada na
dor.
Ele até mesmo iniciaria um gênero cômico.
De denominação inicialmente pejorativa, criada por americanos que viam
no país uma fonte de comicidade, a commedia all’italiana
resultaria em movimento sólido por quase três décadas. Enquanto
contemporâneos como Federico Fellini, precedidos pela invenção
neorrealista de Vittorio de Sica, elevavam a linguagem cinematográfica a
um novo patamar, Monicelli, na companhia de diretores como Dino Risi ou
Pietro Germi, demoliria em filmes populares a hipocrisia social
contida, por exemplo, no boom econômico que se seguiria à Segunda Guerra Mundial.
Um apaixonado pelo modo quase invisível com que Roberto Rosselini conduzia os filmes, Monicelli fez nascer a commedia em 1958, ao parodiar um filme francês de assalto. Os Eternos Desconhecidos
seria sua novidade estrepitosa nascida de coisas antigas, uma refinada
mescla das farsas físicas à moda de Keaton com os mandamentos da commedia dell’arte.
No filme quase todo encenado na rua, à moda neorrealista, Monicelli se
revelava impiedoso em relação à miséria humana. Pela primeira vez em uma
comédia cinematográfica, surgia um morto (e em todos os filmes de
Monicelli, a partir deste, haveria, como regra, pelo menos um deles).
Vittorio Gassman, que protagonizaria seu clássico O Incrível Exército de Brancaleone,
ali nascia para a comédia como um boxeur fracassado. Claudia Cardinale,
aos 17 anos, estreava no cinema do país como a irmã oprimida de um
siciliano. Marcello Mastroianni trocava as fraldas de um bebê cuja mãe
permanecia encarcerada. O maior entre os pequenos patifes era Totò, que
ensinava àqueles ingênuos miseráveis, por meio de uma geladeira, como
arrombar cofres, em uma metáfora para a transmissão de seu poder cômico a
uma nova geração de atores.
“Ao nos servirmos da commedia,
não renunciávamos à situação dramática”, dizia Monicelli. “Apenas
decidíamos encená-la de um ponto de vista divertido, zombeteiro, tantas
vezes farsesco, portanto, repleto de implicações amargas.” Tal caminho o
distanciava da crítica do período, mas o aproximava do público. “Meus
protagonistas eram os pobres, os velhos, os pequenos especialistas na
arte de arranjar-se, portanto, os objetos desde sempre do ridículo, dos
espancamentos, do abuso de poder. Na commedia dell’arte, a morte,
o bicho-papão e a doença estão sempre presentes. Eu não inventei nada.
Quando comecei no cinema como roteirista, nos anos 1930, os espetáculos
inspirados nessa tradição antiga e impiedosa ainda circulavam.”
Em um desses teatros, ele conheceria um Totò surreal, de excelência cômica nos gestos, que renovaria o gênero também no cinema,
embora, nos filmes por ele dirigidos ao lado de Steno, a palhaçada
fosse outra, de cunho realista. Sem o sentimentalismo de Fellini,
Monicelli buscaria a objetividade, talvez porque entendesse o cinema
como uma arte aplicada, feita em grupo, menor que a grande literatura
por ele amada, fosse a de um Ariosto ou a de um William Faulkner. Em
Monicelli mesclavam-se o histórico e o cotidiano, a alegria de viver e a
pulsão pela morte, o riso e a melancolia, o erudito e o popular.
“As grandes revoluções de Monicelli foram seu anticonformismo e a ironia exercida ao limite do grotesco”, diz a CartaCapital o crítico italiano Lorenzo Pellizzari, autor, entre outros, de Cineromance – O Cinema Italiano entre 1945 e 1953.
“Como homem, Mario era bastante único e como diretor, variado a ponto
de não constituir um modelo. As duas coisas se fundem a ponto de
torná-lo indisponível à cópia. Nem mesmo se pode dizer que tenha sido um
cineasta estritamente cômico. Foi bem mais um diretor de costumes entre
os mais singulares.”
Em filmes como A Grande Guerra, de 1959, vencedor do Festival de Veneza junto a De Crápula a Herói,
de Rosselini, Monicelli ousara criticar comicamente o desamparo do
Exército italiano durante a Primeira Guerra. E não seria a única vez em
que lhe pareceria urgente reescrever a história. Em Os Companheiros, de 1963, a seu ver injustamente esquecido no mesmo festival que consagraria Oito e Meio,
ele veria com brilho as primeiras greves do Piemonte, sem se esquecer,
contudo, do desastre proporcionado por uma irresponsável liderança de
trabalhadores representada, no filme, por Mastroianni (e o ator em
repetidas ocasiões lamentaria a marginalidade dessa obra em relação às
grandes do cinema). Antes que, nos anos 1970 e 1980, Monicelli chegasse à
farsa sobre a morte em Meus Caros Amigos, a partir de um argumento de Germi, ou encenasse a vilania da classe média em Um Burguês Muito Pequeno, protagonizado por Alberto Sordi, ele também condenaria a marginalidade feminina em A Mortadela, Romance Popular ou A Garota com a Pistola.
“Monicelli arrancou a máscara de muitas
figuras que imaginavam poder manter seu enganoso papel social para
sempre”, afirma o crítico italiano Gian Piero Brunetta, autor de História do Cinema Italiano – De 1945 aos anos noventa.
“O diretor também soube fortemente, por meio da comédia, enfrentar a
grande história, revisitando sua mitologia e sua monumentalidade, mas
não com o objetivo de escarnecê-la, antes disposto a colher dela a
verdade profunda, depois de haver retirado sua pátina de retórica e
hipocrisia.” Uma arte sem continuadores? O crítico Enrico Giacovelli,
autor de Commedia All’Italiana e Breve História do Cinema Cômico Italiano,
diz que sim, exceto por obras aproximadas ao estilo do diretor, como as
de Paolo Virzì. Para Giacovelli, isso ocorreria em razão da paralisia
diante de um estado de coisas, algo de certa forma antecipado por
Monicelli. “Um filme como Os Companheiros é eternamente atual.
Hoje, na Itália, os operários não trabalham 13 horas diárias, têm dois
carros e quatro televisores, e muitos votaram em Berlusconi e Renzi. Mas
há outros novos pobres que vivem como os operários do filme,
desempenhando serviços da manhã à noite por trocados, sem direitos, sem
automóveis, sem casa, a exemplo dos imigrantes, sobretudo africanos e
árabes.”
Eis por que, acredita Giacovelli, não se
tenha em vista uma sólida homenagem ao grande artista em seu centenário.
“Ele sempre foi crítico em relação ao poder, especialmente nos últimos
anos de vida, e não parece constituir exemplo a ser emulado por novos
patrões”, avalia. “Quanto à universidade, talvez ela prefira ensinar e
celebrar o cinema norte-americano. De qualquer modo, nem mesmo Monicelli
apreciava as celebrações.” Em março, um Prêmio Monicelli foi criado com
o objetivo de reverenciar tal legado, mas Chiara Rapaccini, viúva do
cineasta, discordou de sua concessão ao renomado comediante Carlo
Verdone. Embora reconheça o talento do artista, sustenta que ele não
representa o pensamento, que dirá o cinema de Monicelli, “sempre no
limite da comédia humana, política e social”. Um quiproquó e tanto, de
que o grande iconoclasta talvez se risse também.
Fonte: Carta Capital
Nenhum comentário:
Postar um comentário