maio 21, 2015

"Pragmatismo e Humanismo: Bergson, leitor de William James" - Franklin Leopoldo e Silva

PICICA: "Abordemos de início a questão geral da relação entre pensamento e realidade.

“Compreenderíamos mal o pragmatismo de James se não iniciássemos por modificar a idéia que habitualmente fazemos da realidade em geral. Falamos do ‘mundo’ ou do ‘cosmos'; e essas palavras, de acordo com sua origem, designam algo de simples, ou pelo menos algo bem composto. Dizemos ‘universo’ e a palavra faz pensar a uma unificação possível de coisas. Podemos ser espiritualistas, materialistas, panteístas, as­sim como podemos ser indiferentes à filosofia e satisfeitos com o senso comum: sem­pre nos representamos vários princípios simples, pelos quais explicaríamos o conjunto de coisas materiais e morais. (…) A realidade, tal como James a vê, é redundante e superabundante. (…) Está bem distante desse universo seco, que os filósofos com­ põem com elementos bem recortados, bem arranjados, e em que cada parte não somente está ligada a outra, como nos diz a experiência, mas também, como desejaria nossa razão, coordenada ao Todo”. [1]

O que se pode notar nesse texto é que, na visão de Bergson, a filosofia de W. James se caracterizaria por recusar algo como um sistema da realidade. A simplici­dade, a ordem simples, a coordenação perfeita e acabada, a unidade que ressalta da totalidade, elementos que compõem a noção tradicional de cosmos, seriam muito mais exigências do nosso intelecto do que atributos da realidade. Além das liga­ções que a experiência fornece, projetamos na realidade aquilo que nossa razão desejaria que ela fosse, e isso nos satisfaz racionalmente porque preenche com conteúdo real as categorias intelectuais que dão funcionalidade ao pensamento, seja filosófico, seja do simples senso comum. Nossa representação esquematiza a realidade, formando um quadro no qual a simplicidade e a necessidade sobressaem de maneira a encorajar as imagens unitárias e fundamentalmente homogêneas que a tradição construiu nas tentativas de compreender o mundo. Poderíamos lembrar aqui a idéia leibniziana de simplicidade dos meios e complexidade dos fins, espécie de lei seguida pela racionalidade divina na formação de um universo absolutamente coordenado. Com isso contrasta, segundo Bergson, a concepção da realidade como “redundante e superabundante” de James, da qual a nossa representação intelectual seria uma versão demasiadamente enxuta, para não dizer empobrecida. O que explica a diferença entre James e a tradição é o valor que cada um confere a dois aspectos presentes na descrição de Bergson: as partes ligadas entre si na experiência e os elementos coordenados ao Todo. O primeiro é aquele presente no nosso contato imediato com as coisas; o segundo é aquele que deriva de uma exigência ou de um desejo de nossa razão. O universo aparece para James como uma pluralidade indefinida de partes ligadas entre si e que constituem a nossa experiência. Nada, nessa experiência, nos informa acerca da unidade que presidiria a essa pluralidade ou da totalidade em vista da qual todas as partes estariam coor­denadas , formando sistema coeso, finito ou infinito. Ora, nessa superabundância redundante que a práxis nos apresenta, não temos meios de afirmar a necessidade de cada elemento, ou a determinação estrita de cada relação. Quando o fazemos, é porque pressupomos uma totalidade e uma unidade que governariam a experiên­cia, estruturando-a a priori." 

PRAGMATISMO E HUMANISMO: BERGSON, LEITOR  DE WILLIAM JAMES.

Franklin Leopoldo e Silva.*

Abordemos de início a questão geral da relação entre pensamento e realidade.

“Compreenderíamos mal o pragmatismo de James se não iniciássemos por modificar a idéia que habitualmente fazemos da realidade em geral. Falamos do ‘mundo’ ou do ‘cosmos'; e essas palavras, de acordo com sua origem, designam algo de simples, ou pelo menos algo bem composto. Dizemos ‘universo’ e a palavra faz pensar a uma unificação possível de coisas. Podemos ser espiritualistas, materialistas, panteístas, as­sim como podemos ser indiferentes à filosofia e satisfeitos com o senso comum: sem­pre nos representamos vários princípios simples, pelos quais explicaríamos o conjunto de coisas materiais e morais. (…) A realidade, tal como James a vê, é redundante e superabundante. (…) Está bem distante desse universo seco, que os filósofos com­ põem com elementos bem recortados, bem arranjados, e em que cada parte não somente está ligada a outra, como nos diz a experiência, mas também, como desejaria nossa razão, coordenada ao Todo”. [1]

O que se pode notar nesse texto é que, na visão de Bergson, a filosofia de W. James se caracterizaria por recusar algo como um sistema da realidade. A simplici­dade, a ordem simples, a coordenação perfeita e acabada, a unidade que ressalta da totalidade, elementos que compõem a noção tradicional de cosmos, seriam muito mais exigências do nosso intelecto do que atributos da realidade. Além das liga­ções que a experiência fornece, projetamos na realidade aquilo que nossa razão desejaria que ela fosse, e isso nos satisfaz racionalmente porque preenche com conteúdo real as categorias intelectuais que dão funcionalidade ao pensamento, seja filosófico, seja do simples senso comum. Nossa representação esquematiza a realidade, formando um quadro no qual a simplicidade e a necessidade sobressaem de maneira a encorajar as imagens unitárias e fundamentalmente homogêneas que a tradição construiu nas tentativas de compreender o mundo. Poderíamos lembrar aqui a idéia leibniziana de simplicidade dos meios e complexidade dos fins, espécie de lei seguida pela racionalidade divina na formação de um universo absolutamente coordenado. Com isso contrasta, segundo Bergson, a concepção da realidade como “redundante e superabundante” de James, da qual a nossa representação intelectual seria uma versão demasiadamente enxuta, para não dizer empobrecida. O que explica a diferença entre James e a tradição é o valor que cada um confere a dois aspectos presentes na descrição de Bergson: as partes ligadas entre si na experiência e os elementos coordenados ao Todo. O primeiro é aquele presente no nosso contato imediato com as coisas; o segundo é aquele que deriva de uma exigência ou de um desejo de nossa razão. O universo aparece para James como uma pluralidade indefinida de partes ligadas entre si e que constituem a nossa experiência. Nada, nessa experiência, nos informa acerca da unidade que presidiria a essa pluralidade ou da totalidade em vista da qual todas as partes estariam coor­denadas , formando sistema coeso, finito ou infinito. Ora, nessa superabundância redundante que a práxis nos apresenta, não temos meios de afirmar a necessidade de cada elemento, ou a determinação estrita de cada relação. Quando o fazemos, é porque pressupomos uma totalidade e uma unidade que governariam a experiên­cia, estruturando-a a priori.

A tradição racionalista entende que a realidade estruturada por princípios a priori é superior e mais rica do que uma pluralidade indefinida. Mas para James, essa posição teórica na verdade empobrece a experiência, pois retira dela a novidade, a imprevisibilidade, a criação de formas, enfim o seu caráter aberto. A idéia de sistema aprisiona a realidade nos quadros intelectuais que utilizamos para concebê­-la. O que está na raiz da posição pragmatista de James é uma atitude decididamente antidogmática, que se expressa no acompanhamento de todos os contornos da experiência, sem pressuposição categoria! que viesse a limitar o fluxo da realidade. Essa atitude é descrita por ele como um empirismo radical.

“O pragmatismo representa uma atitude perfeitamente familiar em filosofia , a atitude empírica, mas a representa, parece-me, tanto em uma forma mais radical quanto em uma forma menos contraditória, em relação a que já tenha assumido alguma vez. O pragmatista volta as costas resolutamente e de uma vez por todas a uma série de hábitos inveterados, caros aos filósofos profissionais. Afasta-se da abstração e da insuficiência, das soluções verbais, das más razões a priori, dos princípios firmados, dos sistemas fechados, com pretensões ao absoluto e 1s origens. Volta-se para o con­creto e o adequado, para os fatos, para a ação e o poder. (…) O que significa ar livre e possibilidades da natureza, em contraposição ao dogma, à artificialidade e à preten­são de finalização na verdade”. [2]
O pragmatismo não é uma novidade. Ele está no fundamento da atitude empírica, que no entanto o teria realizado imperfeitamente. Trata-se então, para desfazer as contradições inerentes ao empirismo tradicional, de radicalizar a posi­ção empirista, afastando da filosofia a abstração, a tendência a ligar imediatamente o uso de palavras ao conhecimento das coisas, a pretensão totalizante e outros “hábitos inveterados ” que resultam em dogmatismo e em artifício. Ora, é interessante notar que o “empirismo radical” também está presente em Bergson como antídoto para as soluções abstratas de problemas filosóficos. Basta lembrar que um livro como “Os dados Imediatos da Consciência” pretende um conhecimento da consciência despojado das pressuposições metafísicas e metodológicas consolidadas ao longo da tradição, e que se interpõem entre o filósofo e a realidade, impedindo-o de atingir o imediatamente dado, no caso, a consciência no seu fluxo espontâneo, contínuo e heterogêneo de vivências essencialmente temporais , que a psicologia, seguindo os paradigmas tradicionais do conhecimento , insere num quadro formal de elementos descontínuos de índole espacial e como que prontos para serem apreendidos pelo procedimento analítico e conceitual. A oposição de Bergson ao modelo tradicional de conhecimento tem como centro a crítica da abstração conceitual, que gira em torno do objeto por via de múltiplos pontos de vista exteriores, sem nunca penetrar no seu núcleo, algo que somente seria possível através de uma experiência que abandonasse os pressupostos de análise conceitual, por definição inadequada para apreender a continuidade movente que constitui o estofo da realidade. “[o conceito) substitui, pois, à organização real e interior da coisa uma reconstituição exterior e esquemática.” [3]

A crítica bergsoniana inclui, no entanto, a compreensão da causa pela qual tais procedimentos de conhecimento prevaleceram de modo quase exclusivo no decorrer da história do pensamento. Trata-se de tema relacionado à gênese da inteligência no contexto da teoria da evolução. Ao longo do desenvolvimento dos seres, um impulso primitivamente único bifurcou-se em duas grandes direções, criando dois instrumentos distintos de sobrevivência das espécies: o instinto no animal e a inteligência no homem. Esta é, portanto, pela sua própria origem, de ordem pragmática, entendendo-se este termo como a satisfação das necessidades da vida. A estrutura da inteligência está, pois, moldada segundo critérios utilitários, já que assegurar os meios de sobrevivência é a sua primeira função. Daí o paralelismo com o instinto, que não possui, no entanto, a flexibilidade que caracteriza a inteligência, a qual não se pauta por habilidades definitivamente fixadas pela natureza, mas por uma ampla latitude de possibilidades , todas, no entanto, de caráter originariamente instrumental. Enquanto o instinto já é, ele próprio, instrumento de sobre­ vivência, a inteligência seria, diz Bergson, um instrumento de fabricar instrumen­tos, e é esse caráter de fabricação o responsável pela variedade e mutabilidade daquilo de que o homem se serve para dominar a natureza em seu proveito .

Isso significa duas coisas: primeiramente, as categorias da inteligência estão vinculadas a um caráter pragmático. Em segundo lugar, a interpretação da realidade que tais categorias proporcionam, estando por conseqüência também ligada à práxis, resulta num recorte do real que se guia por critérios de domínio e utilização das coisas. Donde se segue que o conhecimento intelectual, derivado do recorte opera­ do por essas categorias, é uma representação que a consciência faz ao visar pragmaticamente o mundo. O conhecimento, dessa forma, está estreitamente ligado à ação: está a serviço das práticas de sobrevivência, que incluem tanto a relação primitiva com o mundo, ligada a uma instrumentalidade ainda tosca, quanto as teorias cien­tíficas mais sofisticadas e aparentemente afastadas do domínio prático. Para Bergson trata-se aí de uma diferença de grau, devida à possibilidade de a inteligência evoluir progressivamente para relações cada vez mais complexas com o real. Há portanto um condicionamento prático das categorias intelectuais. É a esse condicionamento que Bergson atribui a preponderância de certas noções, tais como simplicidade, estabilidade, unidade, necessidade, entre outras, já que em todas se pode notar o trabalho da inteligência no sentido de tornar a realidade compreensível, principal­ mente no sentido de acessível. É significativo que Bergson se refira a esse caráter da inteligência para explicar, no texto sobre W. James, a relação intelectual entre pensamento e realidade.

“Nossa inteligência é amante da simplicidade. Ela economiza o esforço, e deseja que a natureza esteja organizada de maneira a exigir, de nossa parte, a menor soma possível de trabalho. Ela usa então apenas o estritamente necessário, entre os elementos ou os princípios, para recompor, com eles, a série indefinida de objetos e de acontecimentos”. [4]

Ou seja, o caráter sistemático da realidade, incluindo todos os requisitos ne­cessários à sua compreensão intelectual, provém da inteligência ou dessa racionalidade tecnoprática que ela projeta no mundo. Nesse plano, conhecer e agir estão indissoluvelmente ligados, dir-se-ia mesmo que o conhecer se subordina às prerrogativas da ação. Nesse sentido, o verdadeiro é o que está mais adequado à realização das ações necessárias à sobrevivência, no sentido amplo que já mencio­namos. Isso significa que na sua maior parte a nossa experiência da realidade, em vez de fornecer subsídios para a imagem conceitual do mundo, está subordinada à estrutura da inteligência, que é de índole analítico-conceitual. Nossa experiência da realidade já ocorre condicionada por mecanismos de articulação que ajustam o real à discursividade da inteligência. Daí deriva a espécie de harmonia que nos habitu­amos a constatar, desde Aristóteles, pelo menos, entre a realidade e uma estrutura inteligível que nos parece tão adequada, tão “imanente ” às próprias coisas. A repre­sentação da realidade se apóia nessa adequação, com as variantes próprias aos diversos sistemas teóricos de conhecimento, desde o objetivismo aristotélico à sub­jetividade transcendental de Kant. É nessa vocação pragmática da inteligência que repousa, de maneira mais profunda do que entenderam os próprios relativistas, a relatividade do conhecimento humano. Ora, o sentido pragmatista da relatividade do conhecimento, tal como enunciado por James, não estaria longe dessa concepção bergsoniana.

À medida que as ciências se desenvolveram, ganhou corpo a noção de que muitas, talvez todas, de nossas leis são somente aproximações. As próprias leis, mais ainda, tornaram-se tão numerosas, que não há como contá-las; e tantas formulações rivais foram propostas em todos os ramos da ciência, que os investigadores acostuma­ram-se à noção de que nenhuma teoria é absolutamente uma transcrição da realidade, mas que qualquer delas pode, de ce1to ponto de vista, ser útil. Seu grande uso é sumariar os velhos fatos e apontar novos. São apenas uma linguagem humana, uma taquigrafia conceitual, como se costuma chamá-las, nas quais escrevemos os nossos informes sobre a natureza; e as línguas , como é bem conhecido, toleram muita escolha de expressão e muitos dialetos. [5]

Sendo a ciência uma língua bem feita, devemos entendê-la como uma transcri­ção simbólica da realidade. A relatividade estaria presente tanto no léxico dos elemen­tos simbólicos utilizados quanto na gramática da articulação desses elementos entre si. Não podemos aquilatar a correspondência efetiva entre o símbolo e o simbolizado, porque de certa forma impomos à realidade o modo como preferimos transcrevê-la. Esse fundo de arbitrariedade é compensado pela utilidade das teoria s quanto à possi­bilidade de articular os fatos e permitir que se agreguem ao conjunto novos fatos. De posse de uma estrutura em que a experiência se mostra conectada, isto é, em que os fatos ligam-se entre si, temos então um código adequado para nos referirmos à realida­de. Assim podemos dizer que temos um conjunto de “idéias” sobre a realidade. Mas todas elas nascem da experiência e se conjugam na experiência, “ligando as coisas satisfatoriamente, trabalhando seguramente, simplificando, economizando”; e é isso que as torna verdadeiras. Uma idéia verdadeira, acentua James, é sempre instrumentalmente verdadeira.

É claro que essa tese suscitou grande oposição, pois parecia levar o relativismo às suas últimas conseqüências. Bradley, por ex., chegou a afirmar que, segundo essa concepção, para que uma idéia fosse verdadeira bastaria que qualquer um decidisse que ela era. Bergson, no entanto, valoriza a tese da relatividade pelo que ela comporta de construção humana da verdade. Se bem considerada, ela é mais coerente do que a teoria da concordância entre a representação e a realidade, sobretudo se entendemos tal concordância como uma cópia. É possível admitir que o nosso instrumental cognitivo copia a realidade? Se aplicarmos essa concepção aos fatos singulares, teremos que resolver o problema da cópia da mudança, pois não há realidade singular que não esteja subordinada a uma constante mutação. Se entendermos que as proposições gerais são cópias, teremos que apontar o que elas copiam e, já que não poderia ser qualquer fato particular, teríamos que concluir que leis gerais não são cópias de coisa alguma. Na verdade, a concordância é uma aspiração racional – quase uma idéia reguladora no sentido kantiano. Mas para Bergson (que acredita encontrar-se com James nesse ponto) ela não se situa nem mesmo no horizonte do possível. Trata-se de um desejo racionalizado, fruto de uma aspiração da razão a um grau de segurança no conhecimento que só poderia ser realizado numa espécie de coincidência entre sujeito e realidade, concebida na estabilidade lógica de um “objeto”. A filosofia deu corpo a essa aspiração.

“Para os filósofos antigos havia, acima do tempo e do espaço, um mundo onde estavam, desde toda a eternidade, todas as verdades possíveis: as afirmações humanas seriam tanto mais verdadeiras quanto mais fielmente copiassem essas verdades eter­nas . Os modernos fizeram a verdade descer do céu para a terra; mas ainda vêem nela alguma coisa que preexistiria às nossas afirmações. A verdade estaria depositada nas coisas e nos fatos: nossa ciência iria buscá-la e a retiraria desse esconderijo, trazendo­ a à luz”. [6]

No entanto, a verdade não está à nossa espera, “como a América estava à espera de Cristóvão Colombo”; são nossas afirmações sobre a realidade que criam as verdades sobre a realidade. Isso confere ao conhecimento maior dignidade, porque a verdade deixa de ser uma descoberta e passa a ser uma invenção. Uma invenção não significa uma arbitrariedade. Como já dissemos, a utilidade impede a arbitrariedade, introduzindo na busca do verdadeiro uma finalidade, que seria o acréscimo de nosso domínio das coisas. Essa idéia de que a verdade é criada no ato de conhecimento deve ser entendida nos termos do empirismo radical. É seguindo os meandros da experiência, na pluralidade indefinida que a caracteriza, que vamos dominando os fatos e as conexões entre eles, o que significa que o conhecimento se define como um processo em que a dimensão mais forte é o futuro, já que se trata de um movimento de invenção. A verdade não é anterior ao ato humano de conhecê-la: é o próprio conhecimento que engendra a verdade, razão pela qual não podemos contar com nenhuma verdade eterna, com nenhum sistema ele inteligibilidade preexistente ao nosso contato com o mundo. Como a verdade é prática, nós a inventamos na medida em que aprendemos como utilizar melhor a realidade. E como a verdade coincide sempre com o ato de apreendê-la, a constru­ção ela verdade é também a construção dos meios pelos quais a apreendemos. Nesse sentido Bergson entende que o pragmatismo ele James continua e supera a filosofia crítica ele Kant. Não apenas existe uma estrutura geral elo espírito ela qual depende a verdade teórica, como essa mesma estrutura se vai construindo no pro­ cesso ele invenção ela verdade. O ser humano não apenas é responsável pela utili­zação ele sua estrutura racional, ele seu espírito, como ele o constrói na liberdade elo conhecimento.

Talvez essa liberdade possa ajudar a compreender outra característica elo pragmatismo segundo James: a possibilidade ele, ele alguma maneira, escolher as questões cuja solução será buscada. Assim como não existe qualquer verdade pré­ via, à espera ele que alguém a “descubra “, também não existiriam problemas à espera ele soluções. E é também a vinculação entre verdade e utilidade que explica essa inexistência de um acervo obrigatório de questões elas quais o filósofo teria que tratar compulsoriamente: assim como toda verdade é invenção humana, assim também só se elevem buscar soluções para as questões que repercutem na práxis, entendida de forma ampla como as relações elos seres humanos entre si e com as coisas. Por esse lado se pode observar mais uma faceta ela desenvoltura com a qual James se libera ela tradição, sobretudo no que diz respeito às questões metafísicas recorrentes na história da filosofia.

“É o mundo uno ou múltiplo? – predestinado ou livre? – material ou espiritual?­ – eis aqui noções quaisquer das quais podem ou não ser verdadeiras para o mundo; e as disputas em relação a tais noções são intermináveis. O método pragmático nesses casos é tentar interpretar cada noção traçando as suas conseqüências práticas respec­tivas. Que diferença haveria, praticamente, se essa noção, de preferência a aquela outra, fosse a verdadeira? Se não pode ser traçada qualquer diferença prática, então as alternativas significam praticamente a mesma coisa, e toda disputa é vã”. [7]

O pragmatismo se dá o direito de formular as questões a que acha que deve responder. Esse é um aspecto pelo qual se manifesta a crítica em relação aos méto­dos filosóficos tradicionais. Muitas questões filosóficas nascem da reificação de termos, como já assinalava Berkeley, ou da análise insuficiente, do ponto de vista lógico e semântico, das palavras de que se servem os filósofos. Mas no caso de James parece haver um motivo relevante de ordem doutrinai, ligado à própria tese nuclear do pragmatismo. Ele o enuncia como sendo o princípio de Peirce: “Para desenvolver o significado de um pensamento devemos apenas determinar que con­duta está apto a produzir; isso é para nós o seu único significado.” [8] Todo objeto, toda relação, todo estado de realidade, tem um efeito prático. Definir algo com clareza significa discernir tais efeitos, estabelecendo diferenças entre eles. Quando não é possível estabelecer tais diferenças é porque, do ponto de vista do significa­ do, isto é, quanto ao efeito prático, os dois elementos em questão são idênticos. Na verdade não nos interessa saber se eles são idênticos absolutamente ou em si mes­mos; como eles são aquilo que produzem como efeito prático, se pudermos ser indiferentes aos efeitos devemos ser indiferentes aos objetos. É dessa maneira que questões metafísicas podem ser descartadas: se não pudermos, por ex., aquilatar a diferença no plano dos efeitos práticos entre a unidade e a multiplicidade do mundo, é porque não haveria mudança de efeitos práticos, fosse o mundo uno ou múltiplo – e a questão pode ser considerada supérflua.

Para Bergson, bom número de questões filosóficas que a tradição formulou e que permanecem pendentes tem na sua raiz o fato de que a lógica da inteligência teria sido aplicada a problemas que não podem ser resolvidos nesse âmbito. For­mam-se assim antinomias, paralogismos e outros impasses derivados da impossibi­lidade de o conhecimento intelectual equacionar questões que não dizem respeito ao recorte prático de inteligibilidade. Isso não significa que sejam em si mesmas desprovidas de sentido; é a formulação conceitual do problema e a expectativa de resposta analítica que não fazem sentido nesses casos. A relação entre o espírito humano e as questões metafísicas, aí incluído o próprio espírito, prestam-se no entanto a uma aproximação intuitiva, alternativa que por certo não seria aceita por James, pelo menos nos termos bergsonianos.

O que não impede que haja pontos comuns na crítica que ambos dirigem à metafísica tradicional. Bergson vê nos procedimentos intelectuais aplicados à metafísica o que ele chama de falsos problemas.

“Como é possível que algo exista – matéria, espírito, Deus? É necessária uma causa, uma causa da causa, e assim indefinidamente. (…) Por que uma realidade ordenada, na qual nosso pensamento se reencontra como num espelho? Por que o mundo não é incoerente? Digo que esses problemas se relacionam muito mais ao que não é do que ao que é. Nunca nos espantaríamos com a existência de alguma coisa – maté­ria, espírito, Deus – se não admitíssemos implicitamente que nada poderia existir”. [9]

A inteligibilidade metafísica opera com duas falsas pressuposições: o nada precede o ser e a desordem precede a ordem. Dessa maneira, a ausência e o vazio são como que de direito estabelecidos; e aquilo que os “preenche”, realidade e ordenação, sobrevêm como que por acréscimo Daí a obsessão de regredir sempre, de remontar de causa em causa, porque o real deve ser explicado, ele não se justifica por si mesmo- dir-se-ia que não é o vazio que nos espanta ou nos apavora, como pensava Pascal, mas sim o pleno. Nietzsche já denunciara essa ascese metafísica que chega a fazer do Nada um ideal. É como se o objetivo último da metafísica fosse expressar o Nada. Trata-se de um efeito extremado da abstração e de um paroxismo do esforço de generalização. Pois falar do Nada é praticar no limite a abstração enquanto separação das coisas de si mesmas; e o extremo da generalização é a possibilidade de falar de todas as coisas sem referir-se a nenhuma em particular. Somos levados a essa espécie de contradição quando a Linguagem perde as referências reais e experienciais que dão sentido às palavras. Berkeley já havia denunciado essa armadilha inscrita no uso da linguagem: se não mantemos a circunscrição semântica dos termos, e os aplicamos de forma indefinida, a referência da palavra acaba sendo apenas ela mesma, e não atinamos mais com a distinção entre palavras e coisas. É a possibilidade perversa presente no mecanismo de generalização. E é o que faz com que James constate que as discussões metafísicas ocorrem freqüentemente como puros exercícios verbais de disputa argumentativa despojada de qualquer referencial objetivo. Uma reminiscência, talvez, do poder mágico primitivamente atribuído às palavras.

“A metafísica tem, comumente, seguido uma trilha muito primitiva de interrogação. Sabe-se quanto os homens têm suspirado por poderes mágicos ilícitos, e se sabe também a grande função que as palavras desempenharam na magia. Se temos um nome ou a fórmula de encantamento pode-se controlar o espírito, gênio, entidade ou qualquer que seja o poder. (…) Assim, o universo tem sempre aparecido ao espírito natural como uma espécie de enigma, do qual a chave deve ser procurada na configu­ração de algum nome ou palavra mágica ou iluminada. Essa palavra designa o princí­pio do universo, e possuí-la é, de certa forma, possuir o próprio universo”. [10]

É para recusar esse encantamento que o pragmatismo se preocupa com o valor prático da palavra, que James chama “valor de compra”: uma moeda cujo lastro é a experiência. Dentro desse universo semântico amplo mas muito bem configurado, a palavra nasce, desdobra seu sentido, entra em relação com outras, esclarece as coisas na mesma medida em que as coisas a esclarecem. A palavra não é um lugar de repouso, é um instrumento de trabalho. Por isso nenhuma palavra pode nos proporcionar uma resposta definitiva para qualquer problema. A linguagem é uma atividade, sempre será dinâmica e por isso nunca será um meio para se chegar à contemplação. É este sentido ativo da linguagem e do método que faz com que Bergson se oponha às críticas que consideram o pragmatismo uma atitude indolente, uma espécie de laissez-faire que no fundo seria o desinteresse pelo esforço de conhecimento ou mesmo uma renovação empobrecida do ceticismo. Bergson entende, pelo contrário, que o pragmatismo é sobretudo uma teoria da verdade que repõe o conhecimento no universo humano, cujas fronteiras não têm o desenho rígido dos limites lógicos, mas propõem o alcance de metas sempre renovadas pelo progresso científico e pelo desenvolvimento histórico, que confluem para o aprimoramento ético da humanidade. Nesse sentido o pragmatismo é uma filosofia humanista, porque considera que o pluralismo da experiência e o valor humano das crenças fazem de nossa inelutável finitude uma condição aberta que proporciona ao homem os meios de criação de seu próprio devir.

Notas.

1. BERGSON, H. Sur le Pragmatisme de W. James. In La Pensée et le Mouvant. PUF, Paris, 1969, p. 239-241.
2. JAMES, W. O que significa In Pragmatismo e outros Ensaios. Trad. bras. Editora Lidador, S. Paulo, 1967, p. 46-47.
3. BERGSON, H. Introduction à la Métaphysique. In La Pensée et te Mouvant, ob., pg. 191.
4. BERGSON, Sur le Pragmatisme de W. James. Ob. cit., p. 240.
5. JAMES, W. O que significa o Pragmatismo. Ob. cit., p. 49.
6. BERGSON, H. Sur le Pragmatisme de W. James Ob. cit., p. 245.
7. JAMES, W. O que significa o Pragmatismo. Ob. cit., p. 44.
8. JAMES, W. que significa o Pragmatismo. Ob. cit., p. 45.
9. BERGSON, H. Introduction (De la Position des Problemes). La Pensée et le Mouvant, cit, p. 68.
10. JAMES, W. O que é o Pragmatismo. Ob. cit., p. 47.

*Esta escritura foi originalmente publicada em: SILVA, Franklin Leopoldo. PRAGMATISMO E HUMANISMO: BERGSON, LEITOR  DE WILLIAM JAMES. In: Cognitio: Revista de Filosofia, Nº2, 2011.


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Fonte: Territórios de Filosofia

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