PICICA: "O
que foi que Walter Benjamin, um intelectual refinado, falou para as
crianças? Tudo. Ele acredita na inteligência delas. Apostou que é
possível conversar com o ouvinte mirim - a quem trata com muito respeito
- sobre todo e qualquer assunto: arte, técnica, política, cultura,
língua, história, memória, teatro, literatura, narrativa, arquitetura,
urbanismo, o mundo do trabalho e o universo infantil, livros e até mesmo
brinquedos, como esclarece na apresentação Rita Ribes, responsável pela
edição e coordenadora do Grupo de Pesquisa Infância e Cultura
Contemporânea da Faculdade de Educação da UERJ."
WALTER BENJAMIN E AS CRIANÇAS NA ERA DO RÁDIO
José Ribamar Bessa Freire
24/05/2015 - Diário do Amazonas
No
momento em que a rádio nascia, no final dos anos 1920, uma emissora
alemã convidou o filósofo marxista Walter Benjamin (1892-1940), de
origem judaica, para fazer um programa dirigido a crianças.
Durante quatro anos, ele produziu 86 emissões com periodicidade
variada, cujas gravações ficaram esquecidas até 1985, quando só então,
depois de transcritas, foram publicadas na Alemanha. Agora, saiu em
português "A hora das crianças. Narrativas radiofônicas de Walter Benjamin". Bebi o livro de uma só talagada e quero compartilhá-lo aqui com o leitor do Diário do Amazonas.
O
que foi que Walter Benjamin, um intelectual refinado, falou para as
crianças? Tudo. Ele acredita na inteligência delas. Apostou que é
possível conversar com o ouvinte mirim - a quem trata com muito respeito
- sobre todo e qualquer assunto: arte, técnica, política, cultura,
língua, história, memória, teatro, literatura, narrativa, arquitetura,
urbanismo, o mundo do trabalho e o universo infantil, livros e até mesmo
brinquedos, como esclarece na apresentação Rita Ribes, responsável pela
edição e coordenadora do Grupo de Pesquisa Infância e Cultura
Contemporânea da Faculdade de Educação da UERJ.
A
interlocução respeitosa com as crianças permitiu Benjamin dialogar com
elas, sem apelar para o excesso de didatismo e sem "infantilizá-las". No
entanto, como não está falando para a academia, tem sempre o cuidado
de explicar alguns termos que usa, como no texto "O dialeto
berlinense", onde depois de anunciar em tom coloquial - "Bom, hoje quero conversar com vocês sobre o jeito de falar dos berlinenses" - define dialeto como "a língua que se fala em determinadas cidades ou regiões".
O
autor busca nas ciências da linguagem a reflexão sobre dialetologia e a
distinção entre língua falada e língua escrita, mas se adianta à sua
época, quando mostra para as crianças a importância da diversidade como
marca da língua e quando reconhece o valor das falas populares,
atribuindo-lhes características próprias de comunidades discursivas, o
que é hoje um dos pontos cruciais da sociolinguística:
-
"O berlinês é uma língua que vem do universo do trabalho, não nasceu
com os escritores e os eruditos, mas sim no alojamento do quartel, na
mesa de carteado, no ônibus, na casa de penhores, no estádio esportivo e
na fábrica".
Os xingamentos
Benjamin,
que era um "rato de biblioteca", deixa a sala de leitura e sai em
campo. Flana pelos bairros, estádios, bares, feiras e mercados, escuta e
registra a fala poética e bem humorada da rua. Reproduz trechos
deliciosos de discursos dos vendedores ambulantes, do vassoureiro, do
aprendiz de sapateiro, do camelô que vende prendedor de gravata, dos
feirantes. Observa “as pechinchas e o toma-la-dá-cá das mercadorias e do dinheiro”
nos mercados e feiras, lugares privilegiados de situação comunicativa
pela natureza dos intercâmbios e pela concorrência dos diferentes
agentes sociais:
- "A feira é um dos melhores lugares para se apurar os ouvidos e perceber o modo de falar berlinense" - ele diz, mostrando que "provocar as feirantes para ouvir seus xingamentos havia se tornado uma autêntica prática esportiva".
Num
dos programas, ele rememora e documenta para as crianças algumas formas
de comércio de sua infância que desapareceram, como as carroças de
areia que passavam em 1900 pelas ruas de Berlim com o pregão do vendedor
que gritava: "Oooo-lháreia! Reia branca!" e que era usada pelas donas de casa para esfregar e limpar o assoalho e arear as panelas.
Enquanto
ainda hoje certos dinossauros da Academia Brasileira de Letras e até
mesmo de alguns cursos universitários discriminam o português falado
pelas camadas populares como "errado" e tratam a norma padrão como a
única "forma correta", Benjamin não só faz a apologia da diversidade
linguística, mas a assume como um patrimônio cultural a ser preservado. Com fina ironia, ele indica às crianças o que devem observar:
- "O comércio de rua de Berlim é a escola superior do dialeto berlinense, a verdadeira Academia de Retórica de Berlim".
Nascido
e criado em Berlim, o autor lembra em outro programa o teatro de
marionetes que curtiu em sua infância. Destaca a capacidade crítica dos
bonecos e discute o trabalho relevante dos grandes bonequeiros, em
diálogo permanente com outras expressões culturais como o teatro, a
música, a literatura. Os bonequeiros - ele diz - vivem exclusivamente e
apaixonadamente para seus bonecos, todo o resto lhes é indiferente, por
isso "chegam até uma idade avançada".
As diabruras
Adultos conservadores condenam Benjamin por acharem que ele incentiva a transgressão das crianças, como na emissão "A Berlim demoníaca",
na qual o autor confessa que, de noite, quando era menino, lia
escondido livros proibidos por seus pais, escritos por Hoffmann, autor
de uma produção literária ousada, que articula o fantástico ao cotidiano
e onde o próprio capiroto é um dos personagens centrais das narrativas
encantadas. "Nem o próprio diabo seria capaz de escrever coisas tão demoníacas" -
diz Benjamin - e tão atraentes, eu acrescento. Mas ele contemporiza,
aliviado, chamando a atenção para a tolerância que veio com a era do
rádio:
- "Hoje em dia isso mudou, há cada vez mais pais que não proíbem seus filhos de ler Hoffmann".
As brincadeiras são apresentadas como um patrimônio digno de memória nas crônicas "Um menino nas ruas de Berlim" e "Passeios pelos brinquedos de Berlim".
Lá Benjamin registra as diabruras dos moleques que testemunhou em sua
infância. Eles penduravam um osso com um pouco de carne na campainha das
casas, de forma que cada cachorro que passava pulava e tocava a
campainha. Ou amarravam um fio de uma ponta à outra da calçada,
derrubando os frequentadores que à noite saíam cambaleantes dos bares.
Não é perigoso divulgar isso em programas destinados às crianças? Benjamin receia receber uma chuva de cartas perguntando: "O senhor enlouqueceu ou o quê?". Aproveita para antecipar sua resposta:
- "As
crianças querem evidentemente conhecer tudo. E se os adultos só mostram
a elas o lado bem comportado e correto da vida, elas logo vão querer
conhecer o outro lado por si mesmas. Além disso, ninguém nunca ouviu
falar de crianças que tenham se tornado malcriadas por causa de Max e
Moritz e tenham, por exemplo, colocado pólvora no cachimbo do
professor".
Max e Mortiz
formavam uma dupla de capetinhas das histórias em quadrinhos que foram
traduzidas no Brasil por Olavo Bilac, como informa uma nota de rodapé
feita pelos editores do livro. Aqui eles foram batizados como Juca e Chico.
Tais personagens evidenciam a vigência dessa memória e nos fazem
refletir até que ponto essas travessuras são universais e povoam a
infância de todos nós.
No
texto "O Narrador" (1936), Benjamin lamenta o fato de que é cada vez
mais raro encontrar pessoas que saibam narrar, que sejam capazes de
contar histórias e, com elas, trocar experiências. Decreta assim a morte
da narrativa. Mas quem "ouve" as histórias escritas por Benjamin
relativiza sua conclusão, porque ele próprio, um puta narrador, é um
exemplo de que a narrativa está viva e se infiltra nas novas tecnologias
da época, como a rádio usada, como queria Roquete Pinto, com finalidade
educativa no sentido mais profundo do termo.
P.S. "A hora das crianças. Narrativas radiofônicas de Walter Benjamin" (Rio, Nau Editora, 2015, 289 pgs). Tradução de Aldo Medeiros. A FAPERJ, que acreditou no projeto editorial, está de parabéns.
Fonte: TAQUIPRATI
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