maio 08, 2015

A filosofia é o conhecimento da dor. Artigo de Umberto Eco (IHU)

PICICA: "Em geral, os filósofos antigos não se esforçam para justificar ou eliminar a dor física, exceto quando, por exemplo, elogiam aqueles que sabem resistir à tortura e, ao contrário, deixam a sua administração aos médicos da tradição hipocrática. Mas há um momento na história da humanidade em que a dor, não só a moral, mas em particular a física, muda de sinal: isso acontece com o cristianismo, em que o modelo de vida torna-se o Cristo sofredor, cuja dor assume uma função salvífica.

A análise é do escritor, semiólogo e linguista italiano Umberto Eco, em artigo para o jornal La Repubblica, 05-05-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto." 
 

A filosofia é o conhecimento da dor. Artigo de Umberto Eco

Em geral, os filósofos antigos não se esforçam para justificar ou eliminar a dor física, exceto quando, por exemplo, elogiam aqueles que sabem resistir à tortura e, ao contrário, deixam a sua administração aos médicos da tradição hipocrática. Mas há um momento na história da humanidade em que a dor, não só a moral, mas em particular a física, muda de sinal: isso acontece com o cristianismo, em que o modelo de vida torna-se o Cristo sofredor, cuja dor assume uma função salvífica.

A análise é do escritor, semiólogo e linguista italiano Umberto Eco, em artigo para o jornal La Repubblica, 05-05-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A dor certamente é um fenômeno universal, que pode ser remetido ao outro grande tema que dominou, ao longo dos séculos, a teologia e a filosofia, ou seja, a presença do mal no mundo. Na Teogonia de Hesíodo, Eris, deusa da escuridão, fomentadora de ódio e discórdia, gera Ponos (a Fadiga), Lete (o Esquecimento), Limos (a Fome) e, depois, Batalhas, Assassinatos, Massacres, Conflitos, Mentiras, Controvérsias, Anarquia e Desgraça e, enfim, Algea (as Dores que fazem chorar).

Desde o início, portanto, cada cultura refletiu sobre essa experiência inevitável da natureza humana e também animal, que é a dor. E não falo só da filosofia grega ou da cristã: basta pensar no budismo, doutrina baseada na consciência da dor e do sofrimento como realidades universais, mas que podem ser vencidas através do seu anulamento na insensibilidade, no Nirvana, justamente, o fim dos sofrimentos, das dores e das paixões.

Quando as diversas religiões e filosofias falam da dor, elas aludem principalmente – para usar uma terminologia cartesiana que distingue a res extensa da res cogitans – a uma paixão da alma ou a uma das paixões do corpo? Eu acredito que é muito difícil responder, como se as paixões corporais não pudessem ter influência sobre os nossos estados psicológicos. Os próprios cuidados paliativos são um exemplo disso: certamente, visam a diminuir a dor física, insuportável no caso de algumas doenças terminais, mas também tendem a produzir uma tranquilidade e uma disposição psicológica que podem tornar mais serena a passagem.

Do mesmo modo, há paixões da alma que influem sobre o corpo. Por enquanto, deixemos de lado os sofrimentos morais que pode levar à doença e à morte, e, apenas para aliviar um pouco o humor, consideremos as teorias muçulmanas medievais sobre uma típica paixão da alma, a dor pelo abandono da pessoa amada. Os primeiros sintomas são – ao menos para quem observa o doente de amor de fora – de tipo corporal.

Para Avicena, a dor amorosa é um pensamento assíduo de natureza melancólica, que se torna tormento obsessivo quando a memória repropõe insistentemente o objeto amado à mente de quem ama. Os sintomas são olhos cavos e secos, falta de lágrimas, movimento contínuo das pálpebras, respiração irregular. O doente ora ri, ora chora, as pálpebras são pesadas por causa das noites insones, o pulso irregular. Nesses casos, é necessário tocar, justamente, o pulso do doente e dizer o nome de muitas pessoas do sexo oposto e, quando o ritmo mudar, isso significa que foi pronunciado o da pessoa amada.

Os métodos "paliativos" para essa afecção da alma são, principalmente, de natureza física: ordenar banhos em água doce, comprar escravas e forçar o doente a se unir sexualmente com elas, prescrever sangrias que causem uma diminuição do humor vital.

Para Ibn Eddjezzar, deve-se, depois, dar vinho ao doente, fazer com que ouça música, levá-lo a ver jardins repletos de luz, de perfumes e de frutas, fazê-lo passear com mulheres e homens de aspecto agradável.

Encontro apenas uma sugestão, em Avicena, que é de natureza não física, mas psicológica: a intervenção de mulheres velhas que denigrem constantemente a amada. Não sei se esses artifícios permitiam que os jovens muçulmanos apaixonados se esquecessem da sua desventura, e isso logo nos faz pensar que, enquanto as dores especificamente físicas – digamos a dor de dentes ou a dor de estômago – já permitiam que os médicos hipocráticos sugerissem vários artifícios para aliviá-los, o problema da dor moral, que sempre se apresentou de vez em quando como nostalgia, melancolia, arrependimento, remorso, angústia, levou a elaborar, desde a antiguidade, uma complexa filosofia sobre o assunto.

Os filósofos não se ocuparam em grande parte da dor física "boa", aquela pela qual o corpo nos adverte que estamos correndo um perigo e também pela qual a criança, depois de experimentar a queimadura, aprende a não aproximar mais o dedo da chama da vela. Ou ainda a dorzinha súbita que nos aconselha a ir ao médico para verificar o que acontece de desagradável no nosso corpo.
Poderíamos chamar esse tipo de dor "boa" de densa, porque, apesar de intensa, é de breve duração e, na breve duração, cumpre a sua função de campainha de alarme. A dor se torna má quando, depois de ter nos advertido de que algo não vai bem, permanece e, ao contrário, se intensifica, embora tenhamos tomado o cuidado que deveria eliminar a sua causa. Insuportável é a dor má quando é física, e igualmente insuportável quando é moral.

Parece-me que é sobre a dor moral que se entretiveram os primeiros filósofos do Ocidente, como por exemplo Demócrito, que afirma que ela pode ser eliminada com a busca da euthymìa, ou seja, da tranquilidade, da serenidade de espírito. Verdadeiro sábio, portanto, é aquele que marca a sua vida com regras de moderação, de justa medida e de equilíbrio, evitando os bens inferiores.

Mais tarde, Aristóteles, na Ética a Nicômaco, diria que "o sábio busca alcançar a ausência de dor, não o prazer". Já aqui se desenha o tema da busca da imperturbabilidade, que, depois, será típico de estoicos e epicuristas, que nos falarão da ataraxia e da apatia. A primeira se refere à imperturbabilidade do sábio diante das paixões e dos desejos, a ponto de gerar nele um estado de serenidade e tranquilidade. Na ataraxia, o homem está satisfeito com a sua condição e renuncia toda ação voltada a modificá-la. Ao contrário, a apatia pressupõe a liberação das paixões para empreender um novo caminho, livre dos sentimentos e conduzido sob o signo da racionalidade.

Mas se trata de distinções que, embora tenham grande relevo filosófico, podemos ignorar em relação ao projeto que nelas se exprime, isto é, o de alcançar tranquilidade e sabedoria eliminando a dor.

Em geral, os filósofos antigos não se esforçam para justificar ou eliminar a dor física, exceto quando, por exemplo, elogiam aqueles que sabem resistir à tortura e, ao contrário, deixam a sua administração aos médicos da tradição hipocrática. Mas há um momento na história da humanidade em que a dor, não só a moral, mas em particular a física, muda de sinal: isso acontece com o cristianismo, em que o modelo de vida torna-se o Cristo sofredor, cuja dor assume uma função salvífica.

A salvação consiste, precisamente, na imitatio Christi. O problema, então, não é se livrar da dor, mas aceitá-la e fazê-la frutificar como instrumento de redenção. Nos Sermones, Agostinho compara o conjunto dos eventos dolorosos e das paixões destrutivas que podem visitar um homem ("fome, guerra, carestia, morte, roubo e cobiça") com o triturador que tritura as azeitonas: "Quem suportar com resignação e até mesmo com alegria a vontade de Deus sairá dessa terrível espremagem semelhante ao óleo reluzente, enquanto quem se rebelar não será nada mais do que lodo preto".

Lembra Hegel na Estética que, na expressão artística, "não se pode representar o Cristo flagelado, coroado de espinhos, crucificado, agonizante nas formas da beleza grega". Essa aceitação da "feiúra" de Cristo, porém, não foi imediata. A arte paleocristã tinha se limitado à imagem idealizada do Bom Pastor. A crucificação não era considerada um assunto iconográfico aceitável e era evocada, no máximo, através do símbolo abstrato da cruz, como aconteceria com Constantino.

Só nos séculos da Idade Média mais madura se reconhece no Cristo na cruz um homem verdadeiro, batido, ensanguentado, desfigurado pelos sofrimentos, e a representação tanto da crucificação quanto das várias fases da paixão se torna dramaticamente realista.

Fonte: IHU

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