maio 24, 2015

Sobre o Significante-Arma, ou: Contra a “Ditadura do Proletariado”, por Fernando Nogueira

PICICA: "A propósito das comemorações dos 70 anos da gigantesca vitória na Grande Guerra Patriótica (a.k.a. 2ª Guerra Mundial)

Eis o axioma que informa este textículo (!): toda e qualquer referência laudatória ou promotora de “ditaduras” deve ser feita pelas forças sociais conservadoras – nunca pelo campo progressista."

Sobre o Significante-Arma, ou: Contra a “Ditadura do Proletariado”


Por Fernando Nogueira

A propósito das comemorações dos 70 anos da gigantesca vitória na Grande Guerra Patriótica (a.k.a. 2ª Guerra Mundial)

Eis o axioma que informa este textículo (!): toda e qualquer referência laudatória ou promotora de “ditaduras” deve ser feita pelas forças sociais conservadoras – nunca pelo campo progressista.

Comecemos com rudimentos de Semiótica. Já dizia o velho Ferdinand de Saussure, retomado por tantos como Roland Barthes, Roman Jakobson, Jacques Lacan: o signo – principal operador da linguagem – é composto de dois elementos, não vinculados ontologicamente entre si: o significante (imagens-que-formam-palavras/ideogramas e sons-que-formam-fonemas emitidos pelo ser falante) e significado (o sentido lógico, filosófico, social, político etc que se busca expressar); a precária junção do significante e significado faz possível a comunicação lingüística – faz possível se expressar ou se indicar ou se descrever algo através de palavras ditas ou escritas – , mas também torna toda a dinâmica comunicacional humana mais aberta e instável.

Não à toa que Mikhail Bakhtin, teórico soviético hoje muito festejado no campo da lingüística, afirmou com muita contundência o seguinte:
“O ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata. O que é que determina esta refração do ser no signo ideológico? O confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma comunidade semiótica, ou seja: a luta de classes.”[1]
O signo – fenômeno central da linguagem – é um campo de tensões e disputas ininterrupto, onde choques e enfrentamentos se dão, e guerras de posição e de movimento são travadas a todo momento.
(…) classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Conseqüentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes.[2]
Daí que até mesmo no ato de fala ou de escrita há dimensões táticas e estratégicas a serem levadas em conta. Dizendo com J.L. Austin, pode-se fazer coisas com palavras. Ou seja: há uma dimensão material muito candente em todo e qualquer ato de linguagem.

A resultante desses embates, por vezes, é muito clara: pode-se saber quem “hegemoniza” um dado uso de um dado signo – ou mesmo de parte dele, num dado local, num momento da história em específico.

É o caso do signo “ditadura”, no contexto latino-americano, desde os idos dos anos 60.

O esforço homérico de vagas e vagas de militantes e ativistas, ao longo de décadas, em se utilizar desse significante “ditadura” como uma arma contra o arbítrio, a tortura, o estupro e o extermínio – ao soldar à referida palavra um significado profundamente pejorativo, ofensivo e também mobilizador – lança nova luz sobre a (im)pertinência do uso do termo “ditadura do proletariado” ainda hoje.

Como bem se sabe (salvo a claque liberal-conservadora, que não sabe ou finge não saber), o que se investiga sob o incômodo termo “ditadura do proletariado” são as possibilidades de uma “antiditadura“: são as formas com que as amplas maiorias – desde sempre alijadas do processo político e da riqueza socialmente produzida – podem forjar e gerir um governo de fato democrático – rumo a uma sociedade mais justa e solidária.

Todavia, evitar “tiros no pé” é necessário.

É preciso que campos mais avançados politicamente da sociedade abram mão de suas vaidades militantes e/ou intelectuais e reconheçam de uma vez por todas que 1) uma derrota acachapante se deu com o fim da Guerra Fria (e deve-se fazer uma contemporização com isso), e 2) que o discurso é também campo de batalha para a emancipação humana. O agarrar-se irracionalmente a esses termos – e teorias, e símbolos, e estilos de direção – arcaicos e “satanizados” desde há muito é, com efeito, totalmente vazio de dimensões táticas e estratégicas e não contribui para o repensamento e a recriação de caminhos para uma sociedade realmente democrática.

Em suma: é inadmissível a reivindicação de qualquer “ditadura” aqui na América Latina – ainda que, após uma longa e prolixa explicação, venha a se desfazer o mal-entendido ante um ou outro interlocutor. Em tempos onde ações coletivas são necessárias, até se explicar que “focinho de porco não é tomada” muitos dos grupos que porventura poderiam fazer coro à real democratização da sociedade brasileira e latinoamericana já terão caído no canto de sereia dos engodos liberais-conservadores que se postam como antiditatoriais, mas que na verdade são prenhes de um autoritarismo velado, mas sangrento e virulento.

O significante “ditadura do proletariado” deve ser abandonado peremptoriamente.
Já quanto ao significado de “ditadura do proletariado” – e sua compreensão/reformulação contemporânea, a história pode ser outra.



[1] BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. São Paulo: HUCITEC, 2006. P. 45

[2] BAKHTIN, Mikhail. Op. cit. P. 45

Fonte: Brasil em 5

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