maio 20, 2015

"São Gabriel e seus demônios", por Natalia Viana (PÚBLICA - AGÊNCIA DE REPORTAGEM E JORNALISMO INVESTIGATIVO)

PICICA: "Nossa repórter foi até o alto rio Negro, no noroeste do Amazonas, em busca de entender por que o município mais indígena do Brasil é também o que tem o maior índice de suicídios"

São Gabriel e seus demônios

Faz pouco mais de dois meses que ela se foi, um dia antes do seu aniversário. Maria – vamos chamá-la assim – completaria 20 anos em 2 de março. Ninguém diria que não era uma indiazinha como tantas que colorem as ruas de São Gabriel da Cachoeira, município no noroeste do Amazonas, às margens do rio Negro. Era baixinha, os cabelos negros sobre os ombros, as roupas justas, chinelo de dedos. Mas Maria estava ali só de passagem. No seu enterro os parentes contaram que tinham vindo rio abaixo para passar o período de férias escolares, quando centenas de indígenas de diversas etnias deixam suas aldeias e enchem a sede do município para resolver pendências burocráticas. Ali na cidade, ela arrumou namorado, um militar, e passava os dias com ele, quando não estava entre amigos. Mas nos últimos dias Maria andava triste: o casal havia rompido o namoro. Estava estranha, nervosa. Os parentes contaram que chegou a ter alucinações.

Os pais tinham achado bom o fim do namoro. Ninguém chegou a conhecer de perto o tal soldado. Nunca conseguiram ver o seu rosto porque, segundo contaram, quando ele vinha ao bairro do Dabaru, um dos mais pobres do município, onde a família morava numa espécie de vilazinha com casas coladas umas nas outras, ele sempre se escondia nas sombras formadas pela parca iluminação. Tinha o rosto coberto pelas trevas da noite. Era branco? Era preto? Era gente?


Na madrugada de sábado para domingo, dia 1o de março, depois de ter passado a tarde e o começo da noite com o irmão mais velho e amigos bebendo na praia do rio, Maria começou a se transformar de vez. Estava agressiva. Os olhos já não eram os dela, contou o irmão, reviravam e mudavam de cor enquanto ela gritava que os pais não gostavam dela, que era ele o filho predileto. O irmão ainda arrastou Maria de volta, mas, quando chegaram em casa, os pais não conseguiam enxergá-la. No lugar dela viam apenas algo escuro, uma sombra. Um ser da escuridão. O pai não pôde nem levantar da rede no pequeno quarto que dividia com os filhos. Ficou chorando, atônito. Maria entrou no quarto ao lado, bateu a porta. Não conseguiram abri-la, embora não estivesse trancada. Por uma fresta, viram quando ela amarrou uma corda e se enforcou. No momento seguinte, contam, a porta finalmente abriu. Ela já estava morta.

Maria é a vítima mais recente de uma tragédia assombrosa que se repete com enredo semelhante há pelo menos dez anos em São Gabriel da Cachoeira e que foi traduzida em números pelo Mapa da Violência 2014, da Secretaria-Geral da Presidência da República. De acordo com o relatório baseado em dados do Sistema de Informação da Mortalidade do Ministério da Saúde, São Gabriel é o recordista nas estatísticas de suicídio por habitante dos municípios brasileiros. Em 2012 foram 51,2 suicídios por 100 mil habitantes – dez vezes mais que a média nacional. Isso corresponde a 20 pessoas que se mataram, mais ainda do que no ano anterior, quando foram 16 suicídios.

São Gabriel é também o município mais indígena do Brasil. As 23 etnias que há pelo menos 3 mil anos ocupam as margens do rio Negro e de seus afluentes correspondem a cerca de 76% da população. Hoje os cerca de 42 mil habitantes se dividem entre a área urbana – ocupada a partir da margem do rio desde a fundação do forte São Gabriel pelos portugueses, em 1761 – e as centenas de comunidades espalhadas pelo interior da floresta, algumas a dois ou três dias de barco dentro do maior mosaico de terras indígenas do país, com 100 km2 de área. Um território maior do que Portugal, onde vivem os Baniwa, Kuripako, Dow, Hupda, Nadöb, Yuhupde, Baré, Warekena, Arapaso, Bará, Barasana, Desana, Karapanã, Kubeo, Makuna, Mirity-tapuya, Pira-tapuya, Siriano, Tariana, Tukano, Tuyuca, Wanana e Yanomami.

De um total de 73 mortes ocorridas entre 2008 e 2012, apenas cinco não foram de indígenas, segundo o Mapa da Violência 2014. Entre os indígenas, 75% eram jovens, como Maria. E muitos dos familiares e amigos contam que se suicidaram depois de terem sido assombrados por seres da escuridão, por parentes mortos, ou mesmo pelo próprio diabo, os quais, chamando-os durante meses a fio, afinal os arrastaram para a forca.






índia.


Mas quem chega a São Gabriel e pergunta nas ruas, nos bares, nas igrejas vai ouvir que os suicídios são um problema do passado. Uma crise, um surto, pronto, passou, não se fala mais nisso. Faz tempo que o assunto não atrai jornalistas forasteiros rio acima, com seus gravadores e suas perguntas. Foi uma crise, um surto, pronto, acabou, não se fala mais nisso. É no passar vagaroso dos dias que os relatos começam a aparecer. E são muitos, em todo canto.

Como o de seu Zeferino, que pode ser encontrado sentado no tronco de uma árvore no quintal de terra ocupado por duas casas – a dele e a dos filhos – no distante bairro de Tiago Montalvo. De olhos pequenos marcados pela catarata, as costas encurvadas, Zeferino Teles Lima não gosta de falar, mas a lembrança do filho Tiago não o deixa em paz. Misturando a língua Tukano com o pouco português que sabe, o índio Tariano conta baixinho que “pensa sempre… ele trabalhando na roça dele, trabalhando na casa dele, onde tem deitado…  tenho pensado muito… tô pensando ainda, né? Bravo não fica muito não… fica muito triste”. A imagem do filho o persegue dia e noite, chamando. Para se livrar de tanto pensamento, Zeferino procurou as curas tradicionais do seu povo. “Fizeram benzimento por minha vontade. Se assim não tinha benzido, já tinha morto já. Atrás dele né?”, diz. Depois, buscou um padre. “Porque não dá pra mim tristeza e tá dando assim. Aí que padre tirou benzendo pra mim da cabeça. Aí passou um pouquinho agora, tá aos poucos melhorando.”

Segundo a família, Tiago Lima morreu no dia 10 de abril de 2014 na comunidade Nova Esperança, no alto rio Uaupés, interior do município. Estava bêbado. A comunidade se preparava para a festa de Domingo de Ramos e Tiago não teve dificuldade em encontrar um comerciante disposto a vender-lhe cachaça – a venda de bebida alcoólica é proibida em terras indígenas. Comprou três “carotezinhos”, garrafinhas de plástico, de 200 ml. Ninguém viu quando Tiago amarrou a corda dentro da casa, depois de um desentendimento com o irmão, com quem estava morando. O pai resume: “Ele se laçou”. Na sua língua não existe a palavra “suicídio”.


Almerinda Ramos Lima, índia Tariana

Não foi o primeiro da família a adoecer. Dois primos de Tiago tentaram a morte repetidas vezes nos últimos anos. Do outro lado da rua de terra, a sobrinha de Zeferino, Almerinda Ramos de Lima, conta essa história sem alterar a voz, enquanto organiza o almoço de família na casa do pai, cercada pela filha, o neto, alguns irmãos, as sobrinhas, a tirar suco de açaí. Almerinda foi a primeira mulher a assumir a presidência da Foirn, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, que reúne diversos povos da região. “Minha mãe diz assim, um dia vão acabar se enforcando”, suspira. O irmão Melquior, de 38 anos, tentou se enforcar duas vezes. A primeira foi em 2010, por causa de uma briga com a esposa. A corda arrebentou. Um ano depois, ele voltou a tentar o suicídio, depois de o pai ter lhe chamado a atenção por estar bêbado. “Papai começou a ralhar ele, e ele falou: ‘Ah, já que eu que tô errado, já que eu que tô fazendo essas coisas erradas, então eu prefiro me matar, prefiro morrer’. Então isso que ele fez. Sorte dele que o galho quebrou.” .O outro irmão, Ivo, de 35 anos, também foi atrás da corda, depois de uma briga conjugal. “Acho que o diabo não quis levar eles ainda, por isso que não morreram”, diz Almerinda.

Sem registro oficial

A aflição da família de Almerinda não está registrada em lugar nenhum. O único levantamento que existe sobre tentativas de suicídio na região é feito pelo Distrito Sanitário Especial Indígena do Rio Negro (DSEI/RN), órgão do governo federal responsável por cuidar da saúde dos índios aldeados, subordinado ao Ministério da Saúde. O distrito não acompanha nem registra casos que aconteceram na área urbana. E entre os índios aldeados os números levantados são irrisórios. Segundo os dados enviados pelo DSEI à Pública, houve apenas uma tentativa de suicídio relatada em 2014. No ano anterior, foram registradas sete tentativas. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), para cada suicídio efetivado há pelo menos dez tentativas.

“As pessoas estão alarmadas, não sabem o que fazer, e isso não se vê nos relatórios. Tem muitas tentativas de suicídio, mas isso não aparece nos números oficiais”, diz Aloízio Cabalzar, antropólogo do Instituto Socioambiental (ISA) que há 25 anos trabalha nas comunidades Tukano, Tuiuka e Dessana do rio Tiquié, um afluente do rio Negro no extremo noroeste do Amazonas. Nesses anos, pelo menos dez conhecidos dele se suicidaram, calcula: “Vivi muito isso. O suicídio sempre aconteceu, mas como algo atípico. Agora a coisa ficou muito mais presente, muito mais frequente. As pessoas estão com medo, as famílias têm medo de que os seus filhos se matem. Porque foram muitos jovens, nessa faixa dos 20 anos.”

A única certeza entre as famílias do alto Tiquié é que os enforcamentos começaram na cidade de São Gabriel, e não nas aldeias. “Tem um pouco essa ideia de que a doença, no geral, pela própria história de contato com os brancos, vem sempre subindo pelo rio no sentido da foz, no Amazonas. O suicídio, também, é uma doença contagiosa que está chegando nas comunidades vinda de São Gabriel”, diz o antropólogo.

Os suicídios rio-negrinos se inserem em um alarmante contexto nacional: em 2010, os indígenas representavam 0,4% da população brasileira, mas respondiam por 1% dos suicídios. O caso mais notório é o dos Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Segundo o Centro Missionário Indigenista (CIMI), entre 2000 e 2013 houve 684 mortes por suicídio entre eles – 73 casos apenas em 2013. O Mapa da Violência registra no Mato Grosso do Sul 19,9% dos suicídios indígenas – sete vezes mais do que era de esperar em uma população correspondente a 2,9% da total. Uma “verdadeira situação pandêmica de suicídio entre os jovens indígenas”, destaca o relatório.

Diferentemente dos Guarani-Kaiowa no Mato Grosso do Sul, porém, não há grandes conflitos de terra no noroeste amazônico, embora muitas áreas ainda estejam em processo de demarcação. A cultura indígena prevalece no município de São Gabriel, graças à organização da Foirn. Essa é a única cidade brasileira que tem quatro línguas oficiais: além do português, o Tukano, Baniwa e o Nhengatu, ou a língua-geral imposta pelos jesuítas no século 17 e até hoje predominante entre certas etnias. Caso único no país, entre 2008 e 2012 chegou a ter prefeito e vice-prefeito indígenas – o titular Tariana e o vice Baniwa. Grande parte das famílias das comunidades passa temporadas na casa de parentes na cidade, uma “extensão” das famílias aldeadas, mantendo quase sempre uma “roça” em algum terreno mais afastado, onde as mulheres seguem plantando mandioca, pimenta, milho e abacaxi.

Ao longo dos séculos, o suicídio sempre causou mal-estar; por ser inexplicável, inaceitável, uma morte malvista. E não é diferente com os indígenas. Raramente se fala sobre os mortos ou se contam com detalhes as circunstâncias de um suicídio. É por isso que Valéria Magalhães, psicóloga do DSEI/RN, se impressionou tanto com o relato da família de Maria, transcrito no começo desta reportagem. “É muito difícil eles falarem como aconteceu, e nesse dia, não sei se é porque era muito recente, no dia do enterro, a família descreveu que eles viram que ela tinha um ser da escuridão próximo dela. Aí esse ser incorporou e fez ela se matar. Não foi ela que se matou, foi esse ser da escuridão, que já vinha acompanhando ela há um tempo. Eles contando na hora pra mim, era com tanta certeza que não deixa dúvida pra eles. Aquela morte ia acontecer. Eles não tinham como evitar”, conta a psicóloga, que agora faz voluntariamente o acompanhamento da família. “Não adianta eu falar pra eles: ‘Isso é uma autossugestão, você não está vendo isso’. É a verdade deles que importa, não a minha. E o que eles estão vivendo é isso.”


Etnia Desana.
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