PICICA: "Nos dias 28 e
29 de abril, enquanto professores estaduais eram violenta e
covardemente atacados no Paraná, no ato que ficará conhecido como o
“massacre de Curitiba”, cerca de 50 garis eram igualmente massacrados,
também de forma violenta e covarde, no Rio de Janeiro, embora de forma
diversa, sendo que em ambos os casos foram atingidas a classe
trabalhadora como um todo e a ordem jurídica constitucional."
O massacre do Rio de Janeiro contra os garis
[Garis
grevistas demitidos por “justa causa” pela prefeitura do Rio: Adilson
Gomes, Moisés da Cunha, Bruno Coelho, Leandro dos Santos e Luis
Fernandes]
1. Introdução
Nos dias 28 e
29 de abril, enquanto professores estaduais eram violenta e
covardemente atacados no Paraná, no ato que ficará conhecido como o
“massacre de Curitiba”, cerca de 50 garis eram igualmente massacrados,
também de forma violenta e covarde, no Rio de Janeiro, embora de forma
diversa, sendo que em ambos os casos foram atingidas a classe
trabalhadora como um todo e a ordem jurídica constitucional.
A Comlurb e a
administração do Município da cidade do Rio de Janeiro de repente
perceberam que, por uma “coincidência do destino”, os trabalhadores que
lideraram a greve, que perdurou de 13 a 20 de março deste ano, tinham,
todos eles, acumulado motivos em sua ficha corrida para serem
dispensados por justa causa.
Mesmo sem
adentrar os detalhes de cada caso específico fica muito fácil perceber
que o ato foi uma represália pela greve e mais ainda pela derrota
experimentada pela Comlurb e pelo Município na greve do ano passado, da
qual resultou um reajuste salarial na ordem de 37%, com os salários
passando de R$ 802,57 para R$ 1.100,00.
Interessante
que em nota pública a Comlurb tentou justificar as dispensas com outras
dispensas, como se tal procedimento de conduzir pessoas ao desemprego
fosse o seu papel institucional e estivesse na mais perfeita
correspondência com a ordem jurídica. A sua defesa é baseada no
argumento de “desliga empregados com base na legislação trabalhista e
por critérios de avaliação próprios”, acrescentando que: “Em 2015,
tivemos até o dia 10 de abril 115 desligamentos, sendo 41 por justa
causa, destes 10 eram cargos de confiança, 33 a pedido e 19 por
falecimento. Estas novas demissões seguem esses critérios, sejam por
justa causa ou por baixo desempenho”.
No entanto,
do ponto de vista jurídico as coisas não são bem assim, na medida em que
as empresas, sobretudo públicas, devem cumprir uma função social e as
dispensas coletivas de trabalhadores, por ato unilateral do empregador,
estão vetadas em nosso ordenamento, conforme reiteradas decisões da
Justiça do Trabalho (TRT 2ª R., SE 2028120080000200-1, AC. SDC
00002/2009-0, j. 22.12.08, Relª Juíza Ivani Contini Bramante, LTr
73-03/354; TRT 15ª R., DC 309-2009-000-15-00-4, AC. 333/09, DO de
30.03.09, Rel. José Antonio Pancotti, LTr 73-04/476), valendo o destaque
para a seguinte Ementa do Tribunal Superior do Trabalho, estatuída no
Processo n. TST-RODC-309/2009-000-15-00.4, Relator Ministro Maurício
Godinho Delgado.
Oportuno
lembrar que a Convenção 98 da OIT, ratificada pelo Brasil, dispõe que
“os trabalhadores deverão gozar de proteção adequada contra quaisquer
atos atentatórios à liberdade sindical em matéria de emprego”, além da
condenação do Brasil junto ao Comitê de Liberdade Sindical, ocorrida em
2009, em função das dispensas arbitrárias feitas pelos governos do Rio
de Janeiro e de São Paulo por ocasião de greves dos trabalhadores
metroviários (Caso nº 2.646).
Neste
contexto, qualquer ato do empregador que tende a minar o direito de
greve deve ser severamente coibido pelo direito, pois este visa a
garantir o exercício do direito de greve, para que o princípio
democrático seja concretizado nas relações de trabalho, pois só a greve
permite um diálogo em paridade de condições entre os empregadores e seus
empregados.
Atentemos, aliás, para o que está previsto expressamente em lei.
Preceitua o
artigo 9º da Lei n. 7.783/89 que “Durante a greve, o sindicato ou a
comissão de negociação, mediante acordo com a entidade patronal ou
diretamente com o empregador, manterá em atividade equipes de empregados
com o propósito de assegurar os serviços cuja paralisação resultem em prejuízo irreparável,
pela deterioração irreversível de bens, máquinas e equipamentos, bem
como a manutenção daqueles essenciais à retomada das atividades da
empresa quando da cessação do movimento.” – grifou-se
Resta claro,
portanto, que deflagrada a greve, que é um direito dos trabalhadores,
cumpre a estes e ao empregador, de comum acordo, definirem como serão
realizadas as atividades inadiáveis. As responsabilidades pelo efeito da
greve não podem ser atribuídas unicamente aos trabalhadores, até porque
esses estão no exercício de um direito. Aos empregadores também são
atribuídas responsabilidades e a primeira delas é a de abrir negociação
com os trabalhadores, inclusive para definir como será dada continuidade
às atividades produtivas.
Assim, não
pertence ao empregador o direito de definir sozinho como dará
prosseguimento aos serviços, gerando a conclusão inevitável de que a
manutenção das atividades do empregador, com incentivos pessoais a um
pequeno número de empregados, que, individualmente, resolvem trabalhar
em vez de respeitar a deliberação coletiva dos trabalhadores, constitui
uma ilegalidade, vez que visa frustrar fraudulentamente o exercício
legítimo do direito de greve.
Ou seja,
para a lei, a tentativa do empregador de manter-se funcionando
normalmente, sem negociar com os trabalhadores em greve, valendo-se das
posições individualizadas dos ditos “fura-greves”, representa ato
ilícito, que afronta o direito de greve.
Qualquer
tipo de ameaça ao grevista ou promessa de prêmio ou promoção aos não
grevistas constitui ato antissindical, tal como definido na Convenção 98
da OIT, que justifica, até, a apresentação de queixa junto ao Comitê de
Liberdade Sindical da referida Organização.
No que se
refere às consideradas atividades essenciais, a lógica é exatamente a
mesma. O artigo 11 da lei 7.783/89 dispõe que “Nos serviços ou
atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores
ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis
ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade” (grifou-se),
acrescentando o parágrafo único do mesmo artigo que “São necessidades
inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo
iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”.
As
responsabilidades quanto aos efeitos da greve atingem, portanto,
igualmente, trabalhadores e empregadores. Isso implica que cumpre ao
empregador iniciar negociação com os trabalhadores, coletivamente
considerados, para manutenção das atividades, estando impedido de
fazê-lo por conta própria, utilizando-se de trabalhadores que, por ato
individual, se predisponham a continuar trabalhando, seja por vontade
própria, seja por pressão do empregador, em virtude de ocuparem cargos
de confiança (supervisores, por exemplo) ou por se encontrarem em
situação de precariedade jurídica.
Pelos
parâmetros legais não é possível obrigar os trabalhadores retornarem ao
trabalho, mesmo no caso de atividades essenciais, pois como preconizado
pelo art. 12 da lei em comento, não se chegando ao comum acordo, cumpre
ao Poder Público assegurar a prestação dos serviços indispensáveis e
não conduzir os trabalhadores, manu militaris, aos postos de trabalho.
Interessante
perceber que os argumentos em defesa dos interesses da população quanto
aos serviços públicos, utilizados em detrimento do exercício do direito
de greve pelos servidores públicos, não são os mesmos quando se discute
a privatização, pois aí os serviços públicos deixam de ser essenciais.
Aliás, cabe indagar: como se julgarão as greves dos serviços públicos
privatizados mediante a transferência para Organizações Sociais que
contratarão, segundo decisão recente do STF (ADI 1923), trabalhadores na
ordem jurídica privada?
Na linha das
ilegalidades cometidas contra o direito de greve, é importante destacar
o papel que, infelizmente, vem sendo atribuído à força policial, como
elemento de repressão aos piquetes. Ora, como dita o art. 6º. da Lei n.
7.783/89, “são assegurados aos grevistas, dentre outros direitos: I – o
emprego de meios pacíficos tendentes a persuadir ou aliciar os
trabalhadores a aderirem à greve”.
Verdade que
esse mesmo dispositivo diz que “As manifestações e atos de persuasão
utilizados pelos grevistas não poderão impedir o acesso ao trabalho nem
causar ameaça ou dano à propriedade ou pessoa” (§ 3º.), mas o que se
pode extrair daí é a existência de um conflito de direitos, que se
resolve em contenda judicial, e não pela via do “exercício arbitrário
das próprias razões”, que, inclusive, constitui crime, conforme definido
no art. 345, do Código Penal, sendo certo, ainda, que no conflito de
direitos há que se dar prevalência ao exercício do direito de greve,
pois no Direito do Trabalho a normatividade coletiva supera a
individual, a não ser quando esta seja mais favorável. Recorde-se que é a
partir dessas premissas que se tem entendido imprópria a interposição
de interdito proibitório contra piquetes, como visto acima.
Desse modo,
não é função da Polícia Militar intervir em conflito trabalhista e
definir arbitrariamente qual direito deve prevalecer, reprimindo um
interesse juridicamente garantido e tratando trabalhadores como
criminosos.
Interessante
que no “massacre de Curitiba”, o pretenso direito fundamental de ir e
vir foi exatamente o direito inibido pela ação da Polícia Militar. A
decisão judicial, que respaldou a ação policial, procurou garantir a
realização do trabalho em detrimento do direito de ir e vir dos
professores, um direito, ademais, que não se efetivaria em abstrato,
como tantas vezes sugerem algumas decisões judiciais, mas para
concretização da democracia no sentido da participação política junto
aos parlamentares que votavam lei do interesse dos professores.
Aliás, é
impressionante como o Estado consegue organizar todo um aparato policial
para cumprir ordem judicial que interessa ao governante ou ao grande
capital e não age de forma nem mesmo parecida quando se trata de
conferir efetividade a direitos, também judicialmente declarados, dos
trabalhadores e dos movimentos sociais em geral. Quantos direitos dos
manifestantes massacrados em Curitiba, já judicialmente assegurados,
ainda não foram cumpridos pelo mesmo Estado?
O fato é que
essa forma do governador determinar ação policial para garantir a
votação de uma lei do interesse de seu governo é gravíssima, ainda mais
quando levada às últimas conseqüências do enfrentamento dos professores
como se não fossem seres humanos ou como inimigos que devessem ser
abatidos em campo de batalha. Essa gravíssima atitude, que atenta contra
a ordem pública, submete os autores às penalidades administrativas,
inclusive com perda da função pública, sem prejuízo de sanções civis e
criminais.
Ora, onde
foram parar: o direito de ir e vir dos professores estaduais? O direito à
livre manifestação? O Direito à integridade física e moral?
Com a
supressão concreta desses direitos, que representou, também, a negação
da democracia, vez que os professores não tiveram garantido o seu
direito de ir à “casa do povo” para gritar, apitar, panfletar,
identificar e vaiar os deputados, o resultado é o da plena ilegalidade
da lei aprovada, pois votada fora dos princípios democráticos e ainda
apoiada em um massacre e, por via reflexa, à toda população brasileira.
Nenhuma lei
pode ter vigência se sua votação não atendeu os preceitos democráticos,
ainda mais carregando consigo um histórico de sangue.
Vale uma observação de natureza metodológica, que deve guiar a racionalidade social e jurídica sobre a greve.
Durante a
greve, com extensão para todas as situações presentes e futuras que a
ela se relacionam, os direitos e as obrigações que foram estabelecidos
para a estabilização das relações individuais de trabalho não têm
aplicação, com a mesma potencialidade, durante a greve, pois o direito
não existe em tese e não incide no vácuo.
Ora, as
atitudes dos trabalhadores, no exercício da greve ou na construção da
consciência coletiva para se implementar uma luta coletiva por melhores
condições de trabalho, não podem ser avaliadas como se estivessem em
momento de conflito contido. Não é racional pressupor que dirigentes
sindicais ou líderes do movimento se dirijam aos demais trabalhadores
neste momento de tensão sem exprimir palavras de ordem, sem proferir
discursos inflados e sem a demonstração de que seus atos correspondem às
suas falas. Se nem mesmo nas discussões no Congresso, no Supremo, nas
Assembleias Legislativas o tom é, digamos assim, nobre e cordial, ainda
que as manifestações sejam antecedidas por um “vossa excelência”, por
que o deveriam ser as que se proferem em caminhões de som por ocasião de
uma greve?
O modo como
tem sido entendida juridicamente a greve confere, ademais, uma posição
extremamente cômoda ao empregador, sendo que a greve seria, exatamente,
para retirá-lo dessa zona de conforto. Sem uma visão em torno da
efetividade do direito de greve, basta ao empregador se recusar a
atender as reivindicações dos trabalhadores e a negociar para que todo o
peso do momento recaia sobre os trabalhadores em greve, sendo que ainda
conta, primeiro, com os “fura-greves”, a quem, conforme se costuma
dizer, há o direito de ir e vir para adentrar no ambiente de trabalho e
continuar trabalhando normalmente e, segundo, com a força policial, que
se coloca em favor de garantir esse pretenso direito e também o suposto
direito do empregador de continuar em franca atividade. Não se esqueça
que aos empregadores ainda tem sido conferida a possibilidade de minar
os efeitos da greve mediante a utilização, cada vez mais ampla, da
terceirização, sendo oportuno destacar que é exatamente com esse
propósito que se apresenta a reivindicação patronal pela aprovação do PL 4. 330/04.
Nesse
contexto totalmente desviado daquilo que seria o ideal, qual seja, de um
direito sendo utilizado para garantir a greve, os trabalhadores em
greve acabam experimentando, pelo exercício da greve, um momento de
enormes sacrifícios pessoais e de extrema insegurança jurídica.
Com efeito,
diante de tantas adversidades, ao tentarem levar adiante o movimento de
greve, com discursos inflamados e ações de piquetes, necessárias para
impedir o cometimento da ilegalidade dos fura-greves, os trabalhadores
em greve se veem obrigados a um enfrentamento com outros colegas de
trabalho e não raro com a Polícia Militar e é exatamente neste instante
que se completa a inversão de valores, pois quando os trabalhadores de
fato estão sendo coibidos de exercer o direito de greve e buscam se
defender passam a ser tomados por agressores, como se fossem eles os
agressores da ordem jurídica.
Então, por
atos praticados na dinâmica de uma luta, que vai ao ponto do
enfrentamento em razão das estratégias silenciosas do empregador de
repressão ao movimento, os trabalhadores em greve são punidos por meio
de uma compreensão invertida da ordem jurídica e pela aplicação de
normas que se direcionam a realidades estáticas e não ao momento de
efervescência do conflito, o que representa, em concreto, negar a
própria essência do direito de greve, que deve ser entendido como o
direito de expressão do conflito entre o capital e o trabalho para
viabilizar uma forma democrática de reconstrução do conjunto normativo
que estabelece obrigações ao capital pelo permissivo da exploração do
trabalho.
Esse
pressuposto de análise, que é necessário para melhor compreender os atos
praticados pelos trabalhadores na dinâmica de uma greve, não pode ser
afastado nem mesmo diante de uma decisão judicial determinando o fim da
greve, até porque na essência as decisões judiciais que buscam cessar a
greve sem eliminar o conflito ferem a lógica do comportamento humano e
própria essência do direito de greve, ainda mais quando tais decisões
são dadas liminarmente sem considerar as peculiaridades próprias do
serviço e da origem do conflito.
Sem a
redução do elemento momentaneamente potencializador do conflito, sem
avaliação da responsabilidade do empregador em não negociar, em
desrespeitar os direitos dos trabalhadores, em tentar manter-se em
funcionamento durante a greve com utilização de terceirizados e
incentivos aos fura-greves, qualquer decisão judicial que apenas culpa
os trabalhadores pelo conflito e pelos eventuais prejuízos à população
acaba constituindo uma nova agressão ao direito de greve e tende a ser
inserida na própria dinâmica do conflito, que é a de uma luta social
para avanço da ordem jurídica, repita-se, e se verá, por isso mesmo, sob
o risco de sofrer abalo em sua autoridade.
Claro que
tudo isso tem muito mais valor no plano teórico das normas jurídicas
compreendidas e aplicadas com a racionalidade do Direito Social, porque,
em concreto, o direito de greve é sistematicamente desrespeitado pelos
empregadores e estes têm sido auxiliados nesta atitude pelas
instituições cuja função seria a de garantir o direito de greve, sempre
sob o argumento falseado de que estão privilegiando outros valores, como
o direito de ir e vir, o direito individual de trabalhar, o direito de
manter a atividade produtiva e o direito à prestação de serviços
públicos. Mas foi exatamente para a se contrapor a esses direitos que se
conferiu o direito de greve aos trabalhadores, entendidos enquanto
classe e não como individualidades!
Aliás, esses
direitos têm sido privilegiados até o ponto extremo não apenas de
impedir que a greve exista enquanto expressão do conflito, com todas as
dinâmicas de uma luta, mas também de punir todos os trabalhadores que,
compreendendo a ilicitude da repressão, resolvem defender, com dignidade
e necessária coragem, os seus direitos.
A
jurisprudência trabalhista admite, é verdade, a dispensa por justa causa
no caso de participação em greve declarada abusiva ou ilegal, mas esse
efeito, conforme prevê essa mesma jurisprudência, depende da
individualização da conduta, exigindo-se uma participação ativa e a
prática de atos que possam, em si, quebrar, de forma indelével, o
vínculo de boa-fé, extrapolando, pois, a própria greve, uma vez que a
ordem jurídica internacional é bastante rígida quanto à rejeição de
qualquer prática do empregador que possa se aproximar de uma
discriminação sindical.
Essa noção
está muito clara no entendimento do TST, no sentido de que: “A simples
adesão ao movimento paredista não constitui falta grave, porquanto
somente atos de violência desencadeados por força desta paralisação
conduzem ao reconhecimento da justa causa” (RR 546287/ 99, Relator
desig. Ronaldo José Lopes Leal) e de forma ainda menos restritiva no
STF: “A simples adesão à greve não constitui falta grave” (Súmula 316).
Pela simples
ausência ao trabalho, no caso da greve declarada ilegal e, assim mesmo,
somente depois de transitada em julgado a decisão, o empregador,
portanto, poderia, no máximo, efetuar o desconto dos salários, sendo que
uma justa causa somente adviria pelo abandono do emprego, que exige um
completo desinteresse pela continuidade no trabalho (art. 482, da CLT),
do que não se trata, evidentemente.
No ano
passado, o governo do Rio de Janeiro decidiu pela dispensa coletiva e
por justa causa de trabalhadores durante o curso da greve, alegando,
meramente, o descumprimento da ordem judicial que havia decidido pela
ilegalidade da greve. Viu-se, no entanto, em enorme dificuldade jurídica
diante da aplicação dos preceitos acima.
Neste ano,
agiu com maiores cuidados para tentar escamotear sua verdadeira intenção
de punir os trabalhadores em greve, notadamente os líderes do
movimento. Esperou a greve acabar, computou os dias de faltas ao
trabalho após a deliberação da ilegalidade e somou a isso outros
argumentos ligados à atuação do trabalhador na greve, além de integrar o
histórico dos trabalhadores, pinçando faltas individuais que estes
tiveram ao longo de sua vida profissional na instituição.
Como noticia a reportagem de Cláudia Freitas do Jornal do Brasil,
“no comunicado de demissão recebido por Bruno, assim como por outros
representantes do movimento grevista, a Comlurb citou que o funcionário
se ausentou sem justificativa em ao menos sete oportunidades no mês de
março e que os grevistas desrespeitaram decisão judicial do TRT
(Tribunal Regional do Trabalho), que declarou liminarmente a abusividade
e a ilegalidade da greve. Disse ainda que o empregado “comandou,
incentivou e participou de piquetes e ações para coagir e forçar os
demais empregados a aderir à greve ilegal”.
Percebe-se,
pois, claramente, a adoção de “cuidados” jurídicos para enquadrar melhor
a justa causa dos grevistas, para tentar obscurecer a real motivação
política do ato, traduzida na punição daqueles que incentivaram e
impulsionaram o movimento grevista, o que representa a transmissão de
recados tácitos do governo aos garis: “não negociaremos com grevistas”,
“não toleraremos greves”, “vamos excluir os trabalhadores quem lutam por
melhores direitos”.
Ora, não há
como deixar de apontar a ilegalidade flagrante das dispensas, que foram,
isto sim, violências explícitas aos trabalhadores, pois as cartas
sequer individualizam as condutas e essas não foram minimante apuradas.
Nem se diga que não seria preciso descer a essas especificações, como
normalmente se dá nas demais “dispensas” de trabalhadores, porque não se
está referindo a um caso “normal” ou de uma dispensa por justa causa
isolada. Há um contexto histórico por detrás e que está ligado, nada
mais, nada menos, à mais importante greve ocorrida no Brasil desde a
greve dos petroleiros, em 1995.
E mesmo sem
adentrar esse potencial histórico da greve dos garis do Rio de Janeiro, o
fato é que o direito de greve, protegido contra discriminação, gera
presunções a favor dos grevistas, exigindo-se do empregador prova
contundente para afastar a presunção, conforme Ementa abaixo:
“DISPENSA
DISCRIMINATÓRIA. REINTEGRAÇÃO. 4.1 – O entendimento desta Corte
superior é no sentido de que ônus da prova da dispensa não
discriminatória cumpre ao empregador. Isso porque o direito de rescisão
unilateral do contrato de trabalho, mediante iniciativa do empregador,
como expressão de seu direito potestativo, não é ilimitado, encontrando
fronteira em nosso ordenamento jurídico, notadamente na Constituição
Federal, que, além de ter erigido como fundamento de nossa Nação a
dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (art. 1.º,
III e IV), repele todo tipo de discriminação (art. 3, IV) e reconhece
como direito do trabalhador a proteção da relação de emprego contra
despedida arbitrária (art. 7.º, I). 4.2 – Esta Corte, inclusive,
sinaliza que, quando caracterizada a dispensa discriminatória, ainda que
presumida, o trabalhador tem direito à reintegração, mesmo não havendo
legislação que garanta a estabilidade no emprego, consoante a diretriz
da Súmula 443 do TST e de precedente jurisprudencial. 4.3 – No presente
caso, emerge dos autos a presunção de que a dispensa do reclamante,
portador de glaucoma congênito e em vias de realizar cirurgia, por
iniciativa do empregador, foi discriminatória e arbitrária, até porque
não houve nenhuma prova de que ela ocorreu por motivo diverso,
constituindo, portanto, afronta aos princípios gerais do direito,
especialmente os previstos nos arts. 1.º, III, 3.º, IV, 7.º, I, e 170 da
Constituição Federal. Recurso de revista conhecido e provido. PROCESSO
Nº TST-RR-1996700-79.2006.5.09.0011, 7ª. Turma, Ministra Relatora,
Delaíde Miranda Arantes).”
É por demais
importante que se compreenda de uma vez por todas que a greve, mesmo
estando inserida na órbita do direito, é a explicitação de um conflito,
sendo que se foi conduzida à ordem jurídica o foi exatamente para
conferir aos trabalhadores as garantias necessárias para que possam,
concretamente, defender os seus interesses. Aliás, nem foi só isso, pois
que, sobretudo, partiu-se do reconhecimento estratégico de que ao não
se permitir aos trabalhadores essa possibilidade de confronto dentro da
ordem capitalista só lhes restaria a luta pela superação do próprio
modelo de sociedade. Assim, talvez essa forma reiterada e assumida das
instituições públicas e privadas de negarem aos trabalhadores o direito
de greve constitua um elemento revelador da verdadeira função do direito
e do Estado dominados pela racionalidade burguesa, pondo-se a um exame
mais detido e crítico da classe trabalhadora.
Desse modo, a
atitude da Comlurb de levantar “faltas” cometidas pelos líderes da
greve ao longo do percurso da sua vida profissional, de modo a conferir
uma pretensa organicidade a atos isolados e episódicos, e atribuir
gravidade, tomando-se como parâmetro o comportamento individual
praticado em épocas de relações estabilizadas e de conflitos contidos, a
atos praticados pelos trabalhadores na dinâmica de um conflito de
greve, é juridicamente insustentável. Mais do que isso, constitui, em
si, um ato ilícito, juridicamente punível, nas esferas administrativa,
civil, trabalhista e penal, podendo implicar, inclusive, em perda da
função pública, vez que baseada na criação de um disfarce para tentar
obstar a compreensão de sua intenção punitiva, ao mesmo tempo em que é
uma ofensa à inteligência média de todos aqueles que ainda se percebam
como seres humanos.
São Paulo, 04 de maio de 2015.
***
Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e colabora com os livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013) e Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.
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