maio 19, 2015

"As mil e uma noites da crise portuguesa" (El País - Brasil)

PICICA: "O diretor Miguel Gomes estreia na Quinzena dos Realizadores três filmes que misturam os míticos contos árabes com a realidade de seu país" 

As mil e uma noites da crise portuguesa

O diretor Miguel Gomes estreia na Quinzena dos Realizadores três filmes que misturam os míticos contos árabes com a realidade de seu país


Fotograma do filme português 'Arabian nights', de Miguel Gomes, apresentado em Cannes na Quinzena de Realizadores.
    Ainda restam formas criativas de contar a crise sem cair no óbvio cinema social, de dar uma guinada criativa à realidade e usar a fábula para que o espectador desfrute do conto sem receber uma mensagem atrás da outra. Nanni Moretti utiliza o artifício de uma diretora que roda um filme sobre uma fábrica em greve em Mia Madre (Minha Mãe), que compete em Cannes, e o português Miguel Gomes vai ainda mais longe ao usar os contos de As mil e uma noites, com Sherazade desfiando história após história para entreter o rei, a fim de mostrar o Portugal em Arabian Nights.
    Gomes (Lisboa, 1972) nunca escolheu o caminho fácil. Seu terceiro filme, Tabu (de 2012, que estreou no Brasil), prêmios Alfred Bauer e FIPRESCI no Festival de Berlim, jogava com o passado das colônias portuguesas na África, o presente e um maravilhoso preto e branco para falar do amor e da solidão. De quebra, confirmava sua figura como um dos cineastas europeus emergentes mais interessantes. Agora apresenta um trabalho de 381 minutos que dividiu em três partes – e que assim é projetado em Cannes, com um dia de distância entre as projeções. “A primeira é mais barroca, com uma mudança contínua de narrador. A segunda é mais austera... Embora não gostemos dessa palavra na Espanha e em Portugal, certo? Bom, não é a austeridade de Angela Merkel. E certamente é mais escura e trágica, mas com humor. O protagonista não é uma pessoa, e sim um coletivo, os portugueses, e essa comunidade está desesperada. No final, o filme termina num tempo mais... descontrolado.”

    O diretor – que fala um castelhano impecável – não é muito otimista nem pessoalmente nem no filme: a sociedade que mostra se degrada “até se aproximar de um mundo Mad Max”, embora a parte final de sua trilogia seja “mais ligeira e leve – daí ser chamada de El Encantado”. Enfurnado numa produção de 14 meses, ainda que tenham sido apenas 16 semanas de gravação, Gomes filmava e montava, e assim descobriu o formato: “Percebi que, como o livro, precisava dividi-la em três partes. Não era preciso contar histórias, mas manter sua diversidade. E, como o tom também muda, ficou claro que havia três filmes diferentes. Eles não podiam ser vistos um depois do outro – o público precisaria de um intervalo para curti-los. Afinal, é o mesmo que ocorre com Sherazade, não? Cada noite ela conta uma história, não fica falando sem parar. É preciso criar o desejo de querer ver mais. Mais ou menos como acontece em Guerra nas Estrelas.” Cannes atendeu ao seu desejo e projeta cada episódio com 48 horas de diferença. Sentado na tenda da Quinzena, montada sobre a arena de La Croisette, o português fuma e sorve um pouco de vinho branco, enquanto ritmicamente hipnotiza com seu discurso, do mesmo jeito que faz com seu cinema.

    Gomes sempre sonhou em adaptar As mil e uma noites. “Se alguém fizesse uma adaptação integral do livro, seria um blockbuster. Mas não sou rico. Então mantive sua estrutura complexa, sua riqueza, e fui escolhendo histórias reais da crise portuguesa que tinham tanto dramatismo como surrealismo. Aconteceram coisas tão absurdas em meu país que o público só acreditaria nelas se fossem contadas por Sherazade”, afirma. Por isso, Gomes viajou e rodou por todo o seu país. “Pode ser que as histórias dos habitantes não tenham nada de grandioso nem de novelesco, mas elas ocorrem. E pode ser que, para que as vejamos, precisemos recorrer ao lado fabulador do cinema. Não bastam as reportagens nem o jornalismo. Em tempos de crise, nasce um imaginário coletivo ao qual devemos estar atentos para captá-lo e refleti-lo, um espírito na sociedade que vale a pena mostrar. Na metade da terceira parte, Sherazade entra em crise. Está farta de histórias dramáticas, não quer continuar contando nada, não acredita que ninguém sobreviva a tanta dor. E só continua o seu trabalho quando entende que a narração é feita para que as histórias se prolonguem no tempo e se propaguem, para que passem de pessoa a pessoa. Esse é o espírito: não filmo para mim, mas para que meus filmes sejam vistos pelo maior número possível de pessoas. Quanto mais gente, melhor.”
    Fonte: El País (Brasil)

    Nenhum comentário: