Publicado originalmente no Informe ENSP

De 4 a 8 de maio, a Escola Nacional de Saúde Pública, por meio do curso de Residência Multiprofissional em Saúde da Família, promoveu a décima edição do Ciclo de Debates – Conversando sobre a Estratégia de Saúde da Família. Ao longo de uma semana o evento contou com diversos palestrantes que discutiram a abertura do capital estrangeiro para a saúde, o papel das residências na formação para o SUS, o lugar da educação nas periferias e favelas, o papel dos movimentos sociais na formação para cidadania; além dos avanços e desafios da Política de Atenção Básica. No primeiro dia de atividades, o diretor da ENSP, Hermano Castro, e a vice-diretora de Pós-graduação, Tatiana Wargas, participaram da cerimônia de abertura e destacaram a importância do papel formador da Residência. Segundo eles, são muitos os desafios do SUS e novas discussões no campo são necessárias para que os desafios sejam efetivamente enfrentados. Na ocasião, o diretor ressaltou ainda que o debate político é fundamental para discutir os rumos da saúde no Brasil.

O debate do primeiro dia do Ciclo (4/5) teve como tema A conjuntura atual do SUS e da Política Nacional de Saúde: abertura de capital estrangeiro para a saúde e contou a participação da professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Maria Inês Bravo e do membro do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) Nelson Rodrigues. A mesa foi coordenada pelo pesquisador da Universidade Federal da Bahia Paulo Henrique Almeida. Maria Inês Bravo abordou a Saúde na conjuntura atual. Para ela, o país passa por uma difícil conjuntura atualmente, e por isso, devemos defender o SUS em sua forma mais plena. Sobre a Política de Saúde no Brasil, a professora citou os projetos em disputa no país. Segundo ela, nos anos de 1980 foi criado o projeto da Reforma Sanitária, logo após, em 1990, veio o projeto privatista e em seguida, nos anos 2000, a Reforma Sanitária Flexibilizada, para justificar medidas privatistas e subfinanciadas.

Em termos de impasses do SUS desde sua aprovação no final dos anos 80, a professora citou algumas questões sobre o processo de implantação e implementação do sistema, como a lógica macroeconômica de valorização do capital financeiro e subordinação da política social à mesma, encolhendo os direitos sociais e ampliando o espaço do mercado; a falta de viabilização da concepção de seguridade social; o subfinanciamento e as distorções nos gastos públicos influenciado pela lógica do mercado; a ausência dos princípios ético-políticos do projeto de Reforma Sanitária; a não valorização do controle social e da participação social; a terceirização e precarização dos trabalhadores da saúde; o modelo de atenção à saúde centrado na doença; o modelo de gestão vertical, com ênfase na privatização; os problema na formação dos profissionais de saúde; a não valorização da centralidade da categoria trabalho como determinante fundamental; o não reconhecimento da saúde como resultado da determinação social do processo saúde-doença; os subsídios aos planos privados de saúde; e a mercantilização da saúde.

“Já nos anos 2000 chega a privatização da saúde com a consolidação do grande capital na área de serviços de saúde e sua vinculação a empresas de seguros. Em 2008 a concentração das empresas de planos de saúde no Brasil já é absurda, 38 empresas detêm 50% do mercado em número de beneficiários, estimuladas pela redução de impostos e subsídios públicos. O capital estrangeiro entra na saúde definitivamente e o número de usuários de planos de saúde cresce significativamente no país: de 34,5 milhões de usuário em 2000, para 47,8 milhões em 2011. O Estado dá apoio a ampliação do livre mercado na saúde, com isenção de impostos a grandes hospitais e grupos farmacêuticos, fortalecendo o setor filantrópico da saúde (PROSUS), além da destinação dos recursos entre a rede contratada e a rede pública, sendo em 2012, por exemplo, 57% para rede contratada e 43% para a pública. O Brasil se torna o segundo mercado mundial de seguros privados perdendo apenas para os Estados Unido”, descreveu.
A saúde e novos modelos de gestão

Os novos modelos de gestão na saúde – como OSs, OSCIPs, Fundações, EBSERH – também foram citados pela professora. Eles consistem na transferência da gestão das atividades das políticas públicas mediante repasse de recursos, de instalações públicas e de pessoal, denominada como privatização do público, ou seja, apropriação por um grupo privado (não estatal) do que é público. Para a Maria Inês essa prática traz grandes prejuízos à população, aos trabalhadores e ao erário (finanças do Estado) por parte das Organizações Sociais. “O sucateamento dos serviços públicos é acelerado nos estados e municípios que implantaram as OSs, onde já se constata problemas com relação ao acesso e a qualidade dos serviços de saúde. Além disso, a eliminação do concurso público para a contratação de pessoal tem permitido o clientelismo para a contratação, bem como a precarização do trabalho frente à flexibilização dos vínculos”, alertou Inês.

Outro ponto abordado por Maria Inês Bravo foram as propostas apresentadas para a saúde face as manifestações de 2013, que, segundo ela, não enfrentam a determinação social do processo saúde-doença, rebaixam a pauta da saúde à lógica incrementalista e assistencial, e reiteram o modelo médico-centrado e a privatização. Sobre a entrada de capital estrangeiro na saúde (lei nº 13.019/2015) que possibilita empresas e capitais estrangeiros se instalar, operar ou explorar hospitais e clínicas, também podendo entrar em ações e pesquisas de planejamento familiar e serviços de saúde exclusivos para atendimento de funcionários de empresas, Inês explicou que atualmente, a presença do capital externo já existe em outras áreas da saúde, a exemplo dos planos e seguros de saúde e de farmácias. A emenda altera a Lei Orgânica da Saúde (8.080/90), que originalmente proíbe os investimentos estrangeiros no setor, e fere também a Constituição Federal de 1988, em seu artigo nº. 199.

“A entrada de capital estrangeiro na saúde aumenta a forte tendência de mercantilização da saúde que temos vivenciado, e retrocede de maneira significativa a luta histórica da Reforma Sanitária pela saúde como direito. Além disso, é falso o argumento favorável à mudança constitucional de que o recurso externo pode auxiliar na saúde brasileira, fortalecendo o privado e aumentando a livre concorrência, aperfeiçoando assim a qualidade do serviço privado e desafogando o setor público, melhorando o atendimento ao consumidor. Desde a década de 1990, assistimos ao processo de universalização excludente em que o mercado privado da saúde tem se expandido”, analisou. Por fim, a professora citou alguns movimentos contra hegemônicos. Segundo ela, atualmente foram criados mecanismos de participação para fortalecer a luta por saúde, considerada como melhores condições de vida e de trabalho. Entre eles estão os Fóruns de Saúde e a Frente Nacional contra à Privatização da Saúde, criada em 2010, na qual Maria Inês Bravo é militante. A professora terminou sua fala apresentando uma agenda para à saúde em defesa do SUS e convidando a todos para participar dessa luta.
Os golpes no SUS: a entrada do capital estrangeiro como lucratividade

No sentido de debater as ideias apresentadas pela professora Mario Inês Bravo, o membro do Centro Brasileiro de Estudo de Saúde e do Instituto Brasileiro de Direito Sanitário Aplicado, Nelson Rodrigues fez uma breve análise sobre os golpes que vem sendo dados ao SUS e destacou que a consciência coletiva e a mobilização da sociedade são as únicas atitudes que podem conquistar e pôr em prática os direitos dos cidadãos. “O grande desafio hoje é que o SUS está sendo implementado pelo contrário, ele está fora do rumo”, lamentou.

Nelson citou também a medida provisória que abre a entrada de capital estrangeiro no Brasil, oferecendo para o capital internacional um mercado de 25% da população brasileira que consome planos de saúde privados. “Eles não ficam apenas com esses 25% da população, pois eles entram também como setor privado complementar do Sistema Único. O SUS hoje possui pouco mais de 200 bilhões de reais ao ano e com a entrada do capital, mais de 60% desse valor seria para o capital estrangeiro, que vem abocanhar a complementariedade dos serviços públicos dentro do SUS, além do mercado dos planos privados de saúde”, advertiu Nelson.

Para o professor, cada golpe que o SUS toma é aparentemente mortal, mas nada consegue matá-lo. Esses golpes todos que foram dados no SUS me deixam com uma visão muito clara de que não dá pra saber qual golpe foi pior, foi um esquartejamento de 25 anos. Se pegarmos os últimos, temos a impressão de que os golpes estão cada vez piores. A Reforma Sanitária brasileira se inspirou em um espectro de correntes ideológicas. O SUS por sua vez, totalmente esquartejado, não morre. Para mim, isso se deve a questão dos valores humanos”, concluiu Nelson.

Ao final do primeiro dia do X Ciclo de Debates os convidados foram presenteados com a apresentação da orquestra Brasil de Tuhu, que realiza ações que promovem a educação musical no país. Para homenagear um dos maiores entusiastas dessa questão, o maestro Villa Lobos, foi escolhido seu apelido de infância – Tuhu, uma referência ao barulho das locomotivas que ele tanto amava, para dar nome ao programa.