PICICA: "O
carcerário nasce quando abandonamos a prática de punir pela prática de
vigiar. Não precisamos mais do carrasco encapuzado pronto para torturar
sua vítima em um evento espetacular, o carcerário está agora presente
para impedir que isso aconteça. Tiramos o capuz e encontramos o pai de
família, o capitão do exército, o chefe da oficina, o psicólogo, o
diretor da escola, o bedel, o bispo da igreja, o policial, o juiz da
corte. Por todos os lados é possível encontrar, encarnado, a
personificação do carcerário. A carapuça serve e muito bem em todas
estas figuras."
Foucault – O Carcerário
O
carcerário nasce quando abandonamos a prática de punir pela prática de
vigiar. Não precisamos mais do carrasco encapuzado pronto para torturar
sua vítima em um evento espetacular, o carcerário está agora presente
para impedir que isso aconteça. Tiramos o capuz e encontramos o pai de
família, o capitão do exército, o chefe da oficina, o psicólogo, o
diretor da escola, o bedel, o bispo da igreja, o policial, o juiz da
corte. Por todos os lados é possível encontrar, encarnado, a
personificação do carcerário. A carapuça serve e muito bem em todas
estas figuras.
O carcerário é como que o responsável
pela esteira rolante de uma fábrica. A roda não pode parar de girar, há
pressa, promessas, demandas, pedidos, pendências. Todo cuidado é pouco. A
inserção do cárcere na sociedade explica e justifica sua presença para o
bom funcionamento e bom andamento do cotidiano. Enquanto se produz, se
ensina a produzir mais e melhor; enquanto se vigia, aprende-se a vigiar
com mais eficiência. Tudo no lugar para maximizar lucros e condutas. Um
parafuso apertado para não quebrar a esteira de produção e um olhar
cerrado em cima do operário para evitar conversar paralelas e a
preguiça. O nascimento das ciências humanas está próximo da cabine dos
vigias de fábrica, dos bedéis de colégio, do divã dos psicanalistas.
O carcerário é o representante de toda
uma nova forma de pensar, produzir e agir. Mentes e corpos são tomados
pelo poder, constantemente afinados, regulados e medidos. O carcerário
de hoje é o vigiado de amanhã, basta cruzar a rua, virar a esquina,
tirar o uniforme. O jogo de polícia e ladrão nunca foi tão confuso.
Não há mais lado de fora, todos estão neste jogo, o indivíduo sempre
está enquadrado, de um jeito o de outro, na lei e na disciplina, seja
batendo o ponto ao chegar no trabalho ou pegando o metrô no fim do dia.
Desta forma, nos acostumamos. Nossa subjetividade moderna, e em crise, é a do Securitizado (veja aqui).
Eles coletam todas as nossas atividades no facebook e no celular? Tudo
bem… Não conseguimos andar mais de 4 quarteirões sem sermos filmados por
câmeras de segurança? Fazer o quê…. Nosso cpf e cartão do banco podem
ser rastreados aonde quer que estejamos? É a vida…
Afundamos cada vez mais em instituições
de vigilância sem perceber. Assinamos o termos de consentimento sem ter
tempo disponível para lê-lo. O indivíduo acostuma-se com a punição, a
observação, a sanção, a reprovação. A prisão apenas continua um processo
de disciplinarização que começou muito antes. Somos jogados em uma
panela quente em que a temperatura é gradualmente aumentada, cozinhamos
sem entender o que se passa. Somos acostumados à punição (noticiários,
desenhos, relações).
O indivíduo penalizável, punível, não é
mais aquele que foge ao poder, mas aquele que é cada vez mais tragado
para dentro da máquina carcerária que se ergueu em torno da produção e
regulação da vida. A criminalidade não vem de fora, ela não invade o
sistema coeso e ordenado, ela é fruto da “inserção cada vez mais rigorosa, debaixo de vigilância cada vez mais insistentes, por uma acumulação de coerções disciplinares”
(Foucault, Vigiar e Punir, p. 285). Passa-se do berçário à prisão
gradualmente, quase que imperceptivelmente o próprio berçário já
reproduz sua lógica…
Entre a última das instituições de ‘adestramento’ onde a pessoa é recolhida para evitar a prisão, e a prisão onde ela é enviada depois de uma infração caracterizada, a diferença é mal e mal perceptível (e deve ser)” – Foucault, Vigiar e Punir, p. 286
Resultado: observação perpétua, o olho de deus, a torre vigia, o Panóptico
estão sempre atentos. julgamento perpétuo: tabela de produtividade,
lista de atividades, inventários, relatórios, prontuários, notas. O
carcerário exerce o papel de sujeição; desta forma, nasce o próprio
sujeito sujeitado. Mergulhados no arquipélago carcerário somos
constantemente medidos, cutucados, questionados, investigados. Esta
relação entre o poder e a individualidade é a constituição de um
saber-poder que constrange reiteradamente os corpos.
Como escapar? Como fugir? Cabe a nós,
utilizando uma outra razão (com certeza inadequada para os parâmetros
dos carcerários) quebrar com estes muros e discursos. A figura em crise
do securitizado nos dá boas alternativas. A crise é nossa chance de
encontrar alternativas. Se é impossível enfrentar o poder que nós mesmos
criamos então precisamos, criativamente, passar por baixo, desviar,
inventar desencontros, encontrar fissuras. O macro-muro
carcerário possui fissuras que só singularidades ativas podem perfurar, o
olhar do poder possui pontos cegos onde nós podemos realizar encontros.
Criar agenciamentos e ir até o limite.
Implantar o lado de fora dentro da instituição. Comportar-se como um
Cavalo de Troia. Toda uma nova subjetividade nasce através de encontros
que desfazem os corpos dóceis! Pode ser um livro, um amigo, uma situação
de injustiça. As ocupações se ocupam disso constantemente. A margem é
sempre o lugar onde o novo nasce, neste sentido, podemos nos reunir na
praça central, embaixo do MASP, e mesmo assim seremos a margem invadindo
e transformado um modo de vida passivo e engessado.
Fonte: Razão Inadequada
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