maio 25, 2015

"Alteridade." Por Franklin Leopoldo e Silva (Territórios de Filosofia)

PICICA: "Talvez não haja, na tradição filosófica ocidental, flanco mais aberto do que a questão da intersubjetividade. E sobretudo não é tarefa das mais difíceis apontar, nas filosofias modernas, portanto, aquelas que se constituíram precisamente a partir da subjetividade, ou uma ausência da reflexão sobre o Outro, ou algo como uma concepção estritamente analógica, que reduz o Outro a um outro Eu. A reiteração do solipsismo na modernidade tem sido amplamente notada, a ponto de ter sido considerada inevitável como uma característica congênita. Há que se levar em conta, no entanto, as dificuldades imensas deriva­ das da primazia do sujeito como ego cogito e da hegemonia da representação, ou seja, da dualidade fundamental sujeito/objeto que constitui o eixo da relação da consciência com o que não é ela mesma. Ninguém ignora, por exemplo, que é muito mais fácil afirmar, numa perspectiva cartesiana, que eu não sou uma substância extensa do que dizer que há outros sujeitos pensantes. Paradoxalmente, é muito mais fácil para Descartes transcender-se na direção da substância divina, infinita, do que passar da probabilidade à certeza de que existem outros homens. A constituição da transcendência horizontal que me proporcionaria a intelecção de outra criatura-sujeito é mais trabalhosa do que a trans­cendência vertical que me permite pensar o criador. E isso porque não posso, a partir de meu pensamento, apreender senão o pensado e não outro pensamento. Como poderia, num ato de pensar, transfigurar o conteúdo pensado num ato objetivado? Essa própria objetivação já retiraria dessa tentativa a possibilidade de apreender o ato como ato, pois estaria representando o sujeito como objeto. A impossibilidade de que o sujeito venha a pensar outro sujeito a não ser como objeto deriva de que a consciência subjetiva só poderia pensar fora dela o objeto. A universalização do sujeito como forma transcendental não resolve o problema porque dilui o ato concreto de subjetivação na possibilidade lógica de apreensão sintética do que não é sujeito. Tudo isso parece indicar que os limites da representação não permitem a experiência do outro a não ser traduzindo a sua subjetividade em objeto, porque a estrutura do conhecimento tem de corresponder à relação sujeito/objeto." 


Alteridade.

Franklin Leopoldo e Silva.
A reconfiguração da intersubjetividade.
Talvez não haja, na tradição filosófica ocidental, flanco mais aberto do que a questão da intersubjetividade. E sobretudo não é tarefa das mais difíceis apontar, nas filosofias modernas, portanto, aquelas que se constituíram precisamente a partir da subjetividade, ou uma ausência da reflexão sobre o Outro, ou algo como uma concepção estritamente analógica, que reduz o Outro a um outro Eu. A reiteração do solipsismo na modernidade tem sido amplamente notada, a ponto de ter sido considerada inevitável como uma característica congênita. Há que se levar em conta, no entanto, as dificuldades imensas deriva­ das da primazia do sujeito como ego cogito e da hegemonia da representação, ou seja, da dualidade fundamental sujeito/objeto que constitui o eixo da relação da consciência com o que não é ela mesma. Ninguém ignora, por exemplo, que é muito mais fácil afirmar, numa perspectiva cartesiana, que eu não sou uma substância extensa do que dizer que há outros sujeitos pensantes. Paradoxalmente, é muito mais fácil para Descartes transcender-se na direção da substância divina, infinita, do que passar da probabilidade à certeza de que existem outros homens. A constituição da transcendência horizontal que me proporcionaria a intelecção de outra criatura-sujeito é mais trabalhosa do que a trans­cendência vertical que me permite pensar o criador. E isso porque não posso, a partir de meu pensamento, apreender senão o pensado e não outro pensamento. Como poderia, num ato de pensar, transfigurar o conteúdo pensado num ato objetivado? Essa própria objetivação já retiraria dessa tentativa a possibilidade de apreender o ato como ato, pois estaria representando o sujeito como objeto. A impossibilidade de que o sujeito venha a pensar outro sujeito a não ser como objeto deriva de que a consciência subjetiva só poderia pensar fora dela o objeto. A universalização do sujeito como forma transcendental não resolve o problema porque dilui o ato concreto de subjetivação na possibilidade lógica de apreensão sintética do que não é sujeito. Tudo isso parece indicar que os limites da representação não permitem a experiência do outro a não ser traduzindo a sua subjetividade em objeto, porque a estrutura do conhecimento tem de corresponder à relação sujeito/objeto.

Façamos, entretanto, avançar um pouco essas dificuldades e perguntemo-nos se a apreensão que o sujeito faz de si mesmo no cogito como afirmação de existência constitui verdadeiramente uma prova objetiva ou a explicitação de uma certeza já experimentada. Quando Descartes se dá conta de que, enquanto dúvida, não pode deixar de existir, o que lhe aparece é que todo o processo de dúvida já se encontrava desde sempre sob o signo da existência do eu que duvida. A vinculação reflexiva que aí se produz constata o eu pensante e o rei­tera como fundamento do processo, no qual estaria então implícita a compreensão pré-reflexiva do meu próprio eu. Essa é a razão pela qual o cogito não é provado a partir de uma hipótese, nem é descoberto de forma absoluta. Ele emerge da reflexão como aquilo que desde sempre a sustentou. É o que se chama de compreensão pré-ontológica à qual a reflexão vem dar uma forma objetiva, clarificando-a sem, no entanto, instituir a realidade que aí é encontrada. O conhecimento da natureza do eu que sou, que se segue daí, pressupõe esse eu que subsistia na etapa anterior e pré-cognitiva.

Ora, o exame das estruturas do para-si pautou-se pela considera­ção dessa dimensão pré-reflexiva, em que o cogito ocorre sem refletir a si mesmo. Não há outro ponto de partida. Temos, portanto, de tentar extrair desse cogito aquilo que nos permite afirmar a realidade do outro, encontrando no para-si a estrutura que o faz ser para outro. Isso, contu­do, não pode significar simplesmente encontrar na subjetividade aqui­lo que me permite representar o outro, pois, nesse caso, a existência do outro não ultrapassaria o nível da probabilidade decorrente de certas características da representação, como constância e congruên­cia. Temos de encontrar no para-si um traço estrutural pelo qual ele se constitui também pela realidade do outro, não enquanto representa­ção subjetiva, mas enquanto facticidade irredutível. Assim como foi o exame das estruturas do para-si que nos mostrou a sua relação com o em-si enquanto facticidade não constituída pela consciência, assim também devemos partir do para-si para que ele nos revele o outro não simplesmente como representação, mas como algo a que somos neces­sariamente enviados como presença concreta. Assim o ser-para-outro do para-si não nos será revelado como estrutura formal e a priori de relação, mas como índice de existência da qual não cabe duvidar, ainda que não me seja possível provar ou conhecer no plano da sua irredu­tibilidade. De alguma maneira, é necessário transformar as dificulda­des inerentes ao solipsismo em maneiras de apreender o outro, superando no plano pré-reflexivo os impedimentos provenientes da estrutura sujeito/objeto. Será, também aqui, no nível da conduta do para-si, que o modo de ser para-outro deverá aparecer.

”Assim, é ao para-si que precisamos pedir que nos entregue o para­ outro; é à imanência absoluta que precisamos pedir que nos arremesse à transcendência absoluta: no mais profundo de mim mesmo devo en­contrar, não razões para crer no outro, mas o próprio outro enquanto aquele que eu não sou”. [1]

Percebe-se por que o cogito tem de ser o ponto de partida: assim como foi a conduta de compreensão, que não é conhecimento objetivo, que me permitiu desvelar as estruturas do para-si, isto é, a sua existên­cia, será ainda essa conduta que me permitirá encontrar, a partir daquele que sou, aquele que não é aquele que sou.

Note-se que o objeto é também aquilo que não sou. A dificuldade a ser aqui superada diz respeito ao fato de que o outro que é aquele que não sou não é objeto, isto é, não se situa no horizonte das minhas representações, mas é uma presença ôntica, o que quer dizer que está aí antes que eu estabeleça com ele uma relação ontológica pela qual me assegure da sua existência, coisa que, num certo sentido, jamais acontecerá. Antes de produzir-se no jogo das minhas representações, o outro está enraizado na minha facticidade no modo da contingência necessária. Daí a simetria entre o modo como me apareço a mim mesmo como sendo eu e o modo como o outro aparece a mim como não sendo eu. Trata-se de transcendência direta. Daí, também, a seme­lhança estrutural com a prova cartesiana da existência de Deus pela idéia de perfeição. É por procedimentos análogos de transcendência, a que já nos referimos, que Descartes apreende Deus como perfeito e, portanto, como não sendo eu, e que apreendo o outro como a contin­gência necessária que não é a contingência necessária que eu sou. A essa relação peculiar, diferente da relação que temos com os objetos, Sartre chama de negação interna. A diferença, portanto, deve ser esta­belecida entre o modo como eu não sou o objeto e o modo como eu não sou o outro; no primeiro caso, a negação é externa porque o objeto se constitui em meio às outras coisas que eu represento na consciência da exte­rioridade; no segundo caso, o outro aparece como exterior a mim na consciência que tenho de mim mesmo, o que significa que só o apreen­deria verdadeiramente na situação impossível em que a consciência de mim coincidisse com a consciência do outro. A negação é interna porque o outro se constitui como outro si-mesmo pela negação de mim-mesmo: o outro não “é” eu. Mas eu não sou o outro do mesmo modo que não sou a mesa. Pois o modo como não sou o outro vai incidir na maneira como me apreenderei enquanto sendo eu mesmo. Há uma conexão entre mim e o outro completamente distinta de minha relação com os objetos. Essa relação interna, a partir da qual se dá a diferença fundamental, aparece e produz seus efeitos quando acontece o olhar do outro sobre mim, isto é, quando minha presença diante do outro e a presença do outro diante de mim podem ocorrer na modalidade do ser-visto-pelo-outro. O olhar é mais do que uma metáfora para exprimir um modo singular de relação; ele é o que constitui a modalidade específica da relação eu/outro. Porque o ver, nesse caso, não significa apenas ver, mas sobretudo ver como. Quando um ser humano olha outro, carrega nesse olhar algo que define e qualifica o ou­tro, em vários níveis. Isso é parte da negação interna, base da relação de alteridade. Não apenas o outro aparece como aquele outro que me olha, mas também como aquele que, ao me olhar, me vê de uma certa forma. Essa qualificação eu a recebo do olhar de outro inevitavelmente porque seu olhar me submete e me fixa. Sou naquele momento aquilo que, ao me olhar, ele me atribui. Ser visto é receber uma qualificação. Por isso, o olhar do outro inelutavelmente me concerne e me incomoda, porque pelo seu olhar passo a ser para ele, mas não só para ele, aquilo que ele apreende de mim.

“Porque perceber é olhar, e captar um olhar não é apreender um objeto-olhar no mundo (a menos que esse olhar não esteja dirigido a nós), mas tomar consciência de ser visto. O olhar que os olhos manifestam, não importa a sua natureza, é pura remissão a mim mesmo … Assim, o olhar é, antes de tudo, um intermediário que remete de mim a mim mesmo”. [2]

Só que essa remissão de mim a mim passa pela objetivação do olhar do outro. Essa objetivação é a passagem do para-si ao para-outro, go que me lança na exterioridade. Pelo simples fato de que o outro me vê como exterior a si, o que eu sou como para-si se degrada e cai na objetividade. Pois ele me olha e me fixa no mundo, confere-me uma posição num contexto em que ele é o centro; ele me designa um lugar e o faz à minha revelia. Isso me torna exterior a mim mesmo. O outro me rouba de mim e me expulsa para fora do si do meu para-si. Dessa perspectiva, existo porque ele me vê. Seria pouco dizer que se trata apenas de uma mediação. O que resulta do olhar do outro torna-se uma maneira- e a única- pela qual me apreendo objetivamente, pois não posso ser um objeto para mim mesmo. Algo do que passo a saber de mim somente se cristaliza pelo outro. Porque o modo como sou não é em geral objeto de consciência tética para mim mesmo. É pre­ciso que o outro me veja para que eu venha a saber que sou de determi­nadas maneiras, que ele me atribui. Alguém se sentiria corajoso ou covarde, generoso ou mesquinho, se existisse só no mundo? Não é o juízo dos outros, a maneira como eles me vêem, que reflui sobre mim e interfere na minha maneira de ser e de apreender o que sou?

Isso se torna mais claro nas situações em que minha conduta me fragiliza perante o olhar do outro. Sartre dá o exemplo de alguém que observa outras pessoas sem ser visto, por exemplo pelo orifício da fechadura. Enquanto estou observando, não sou um voyeur; simples­ mente existo (em) minha conduta sem tematizá-la. Mas surge alguém e me vê vendo, isto é, me fixa como voyeur. O domínio que eu antes possuía da situação se inverte; agora me submeto ao juízo do olhar do outro; sou o que ele acha que sou. Envergonho -me e mostro minha vergonha. O outro a vê no meu rubor e no meu constrangimento, na minha justificativa ou no meu disfarce. E porque ele a vê eu também a vejo, por meio dele. Agora sou um voyeur para mim mesmo; sou alguém envergonhado e só me apreendo assim por via do outro. Mas não coincido com sua apreensão de mim; apenas a pressinto e a infiro, pois não posso me olhar como o outro mesmo que me olhe por via do seu olhar. Ele me descobriu, mas nisso que ele descobriu algo sem­pre permanecerá indecifrável para mim. E ao fato de ter sido descoberto pelo olhar do outro se acrescenta o fato, igualmente constrangedor, do segredo que ficará com ele, algo de mim que nunca saberei. Assim, se tomo consciência do que sou pelo olhar que me é lançado, tomo consciência ao mesmo tempo de que isso que descobri sobre mim na descoberta do outro a meu respeito não é tudo que ele sabe de mim, e é como se uma parte do que sou ficasse guardada com ele e inacessível a mim. Mas sei que ele sabe. “Formou uma imagem”, como se costuma dizer, isto é, me objetivou e compactou meu ser, dando-me uma definição. Não me vê apenas como projeto, mas também como objeto, porque me paralisou no meu processo de ser, cristalizou minha conduta numa essência. Para ele, sou covarde, porque seu olhar apreendeu uma conduta que indicava essa qualidade e ele a hipostasiou no meu ser. Sou um objeto que permanecerá em si mesmo sempre covar­de, mas na apreensão do outro, de modo que nem disso me posso apropriar. Se vou ao encontro do olhar do outro para ser aquilo que lá está posto e cristalizado, totalizado, não me aposso desse ser pelo simples fato de que ele pertence ao olhar do outro e foi instituído por ele. De nada adianta, portanto, conformar-se com essa reificação do olhar alheio e tentar ser do modo como me vêem, pois o modo como me vêem não me pertence, embora eu seja para os outros isso que não sou inteiramente para mim mesmo. Nem na alienação consigo totalizar o meu ser. Não posso me valer do olhar do outro para ser em-si-para-si. Isso que sou para o outro está longe de mim, na consciência do outro, inacessível. Se quero me utilizar disso para dar de qualquer forma um fundamento a mim mesmo, fundando-me em outro, nem isso me é possível, porque é irremediavelmente no outro e somente para ele que meu ser está fundado.

Pois o outro é livre para me constituir objetivamente e diante dele estou indefeso, como se, ao apreender minha conduta, ele tivesse apreendido minha liberdade. Isso confirma que somente a liberdade limita a liberdade. É pela negação interna que aparece o outro como a outra liberdade que entra em confronto com a minha. Pela objetivação o outro se apodera de mim. Essa posse consiste no juízo que ele faz a meu respeito. Pois, se esse juízo fixa algo como uma essência, aquele pela qual essa essência se institui torna-se o senhor da existência cuja essência fixou. A solidão na qual se insistia tanto quando se dizia que o homem está condenado a ser livre fica agora irremediável­ mente comprometida com a presença do outro, da qual não posso es­ capar. Pois o mundo em que surjo é um mundo em que o outro já habita. E o conflito é constitutivo, pois mesmo minha intenção derespeitar a liberdade do outro já constitui um projeto acerca da sua liberdade e que por isso a violenta. Quando duas pessoas se medem pelo olhar, é inevitável que uma tente paralisar a outra, isto é, apossar-se da liberdade da outra. O ser-para-outro é estruturalmente conflituoso. Os antagonismos concretos, de qualquer alcance, derivam desse traço ontológico, que torna infernal as relações humanas. Temos que limitar a liberdade do outro: por isso nos comportamos como o jogador de xadrez, cuja habilidade consiste em raciocinar sempre alguns lances à frente, com a finalidade de prever o que o outro fará e utilizar suas próprias ações para neutralizá-lo. Pois apossar-se da liberdade do outro consiste em fazer de seu projeto um objeto para nós e que sirva aos nossos fins.

Nesse sentido, pode-se dizer que, coincidentemente ou não, a ambigüidade do termo sujeito é bastante reveladora. Significa o que subjaz como fundamento a todas as suas ações, e nesse caso indica autonomia; mas significa também aquele que é assujeitado, submetido, que existe em função de outro que o domina. A conduta de posse, pela qual tentamos nos tornar senhores da liberdade do outro, consiste em submetê-lo como sujeito, isto é, submeter a sua liberdade. Queremos possuí-lo como consciência livre, não como coisa inerte. O ideal seria fazer do outro uma coisa consciente. Quero que ele se integre tão profundamente a mim que a sua liberdade se confunda com a minha. O recurso extremo para conseguir essa identificação de liberda­des ou essa fusão de subjetividades é o masoquismo: fazer-me objeto, anular-me como sujeito, alienar-me inteiramente à liberdade do outro para invadi-la, tomá-la fazendo que ele se apodere de mim. Sartre acompanha aqui a concepção de que o masoquismo, enquanto forma extrema de submissão, torna-se por isso mesmo uma forma de dominação. Se me anulo no outro, torno-me o outro e isso é uma maneira de fazê-lo tornar-se eu. A remissão à dialética hegeliana do senhor e do escravo é clara: o escravo, dominado pelo senhor, existe em função dele; mas o senhor, para afirmar-se na sua condição de dominador, necessita do escravo e por isso também existe em função dele. Mas a liberdade é estruturalmente inalienável: desejar anulá-la é ainda um projeto livre; por isso nenhuma consciência pode fazer-se inteiramente objeto pois esse desejo será sempre o desejo de um sujeito. Assim a estratégia de possuir o outro fazendo-se possuir por ele necessária­ mente fracassa diante da dualidade insuperável de duas liberdades ou de duas consciências que não podem deixar de ser livres. O conflito permanece.

A estratégia oposta é a da supressão da subjetividade do outro. Já que não posso possuí-lo em sua subjetividade, decido anular essa subjetividade, reduzindo o outro a mero objeto. Desejaria escapar do seu olhar e, portanto, do juízo que possa fazer sobre mim, destruindo nele a consciência que é a origem desse olhar e desse julgamento. Quero esvaziar o outro de sua condição de sujeito consciente e reduzi-lo a coisa. Quero neutralizar a sua liberdade de modo que ela venha a ser apenas reação ao meu desejo. A forma típica dessa submissão está na significação dada ao ato sexual, e na tentativa de totalizar o outro como corpo, fazendo que ele também se totalize como corpo. Se o outro reage como corpo e apenas como corpo, a sua liberdade se ins­creve no seu corpo e eu o domino ao tocá-lo. Já não depende dele reagir ou não ao meu toque, se sua liberdade está inteiramente encarnada, se todo o seu ser é a sua carne. O efeito do toque intensifica a liberdade encarnada e a reação do outro passa a ser o desejo de ser possuído. A liberdade confunde-se então com a passividade e o sujeito torna-se objeto. Aparentemente triunfo no meu projeto de posse ao possuir essa consciência encarnada que o outro se tornou. Mas o ponto culminante do ato sexual desmente essa posse, pois o desenlace do ato sexual, o gozo propriamente, é inevitavelmente solitário e pertence a perde-se a consciência do outro e permanece apenas a consciência de si. Conseqüentemente, afasto-me nesse momento da liberdade que julgava dominar e ela volta à sua irredutibilidade. Mesmo o sádico, para quem o outro é somente objeto e nem mesmo consciência encarnada, só obtém o gozo do outro à custa de perdê-lo na exacerbação do próprio prazer.

Em ambos os casos, o que está em questão é a transcendência do outro, pois esta é a manifestação de sua liberdade. Se considero o outro como processo de transcendência, ele sempre me escapará. Portanto, tenho de considerá-lo como transcendência transcendida, isto é, tenho que me apoderar da transcendência do outro para mantê-lo submetido a mim. Mas isso é estruturalmente impossível. Estando sempre adiante de si, o outro está sempre adiante de mim. Mas como o olhar fixa condutas em essências, o outro sempre me possui de alguma maneira, precisamente essa maneira pela qual ele me fixou num dado momento da minha existência, que posso superar mas não posso anular. Assim, temos uma oposição que é ao mesmo tempo a síntese do ser-para­ outro: pelo olhar o outro me possui e me imobiliza como coisa; pela transcendência o outro me escapa quando julgo possuí-lo. Portanto, não é possível fugir do outro (do seu olhar) e não é possível possuir o outro (neutralizar a sua transcendência). Essa dupla impossibilidade constitui a dialética da relação: é impossível ser sujeito e exercer a liberdade sem tratar o outro como objeto; e é impossível tratar o outro como objeto sem que ele me escape enquanto sujeito que, por sua vez, exerce a sua liberdade.

Por mais conflituosa que seja a relação entre as pessoas, tem-se que admitir que esse conflito deriva da radicalidade da liberdade, e toda relação concreta é o conflito de duas liberdades concretas. A solução é impossíel porque é impossível anular a liberdade: ninguém pode anular a do outro e ninguém pode anular a sua. Portanto, o mundo de Sartre, por ser um mundo de conflito das consciências, não é um mundo em que uma consciência triunfará definitivamente sobre a outra. É a liberdade absoluta de todas as consciências em conflito que deveria impedir a submissão e a heteronomia. E isso nos faz compreen­der também por que, por mais forte que seja a relação de dominação, pessoal e histórica (política), a própria dominação nunca é um fato consumado. Estando o conflito latente em toda dominação, por mais consolidada que apareça, a liberdade está também inscrita em toda relação de dominação, e, assim, a possibilidade de realizá-la.

O traço ontológico do conflito não contraria a liberdade; pelo contrário, enfatiza-a. E a possibilidade de superar eticamente o conflito e estabelecer a solidariedade entre as pessoas existe a partir desse traço ontológico. Daí o projeto sartriano de fazer seguir à ontologia fenomenológica uma ética da libertação: a possibilidade de que todos sejam livres a partir da tensão entre as diferentes liberdades, já que é essa tensão ou esse conflito que revela ao homem a radicalidade de sua condição de ser livre. “A essência das relações entre consciências não é o Mitsein, mas o conflito.” [3] O reconhecimento do outro é inseparável do reconhecimento desse conflito, e a passagem da subjetividade para a intersubjetividade somente se realiza pela compreensão ontológica e histórica da relação entre o Eu e os outros. É possível pensar também que é a partir desse conflito insuperável que o homem deve encontrar a coragem para assumir a solidariedade histórica. A liberdade do outro não é um valor, e, portanto, tê-la como algo sagrado é filisteísmo. Mas todos e cada um só encontraremos valores por via da liberdade. Então, é a partir da facticidade que compartilho com o outro que deveremos ambos tentar realizar a liberdade. Isso quer dizer que mesmo a solidariedade e a fraternidade, caso venham a existir, existirão ainda a partir da contingência e da gratuidade inerentes à realidade humana. O sentido dessa solidariedade e dessa fraternidade não está disponível num mundo inteligível de valores morais. Terá de ser construído histórica­ mente a partir da contingência e apesar do absurdo inscritos no fato de haver seres livres no mundo.
Ser-em-outro como desejo de si.
Estas palavras de Daniel – “vêem-me, logo existo”[4] – resumem a angústia de existir sob o olhar do outro, mas elas possuem também, no contexto, um propósito que é o avesso da submissão que se dá na relação governada pelo olhar. Ele comunica essa sua descoberta a Mathieu para que este saiba que o vê, ou seja, para que Mathieu não possa mais conduzir-se como quem não olha e não é olhado. Isso tem relação com a forma pela qual Mathieu pretende “preservar” a sua liberdade: mantendo -se no exterior dos acontecimentos e das pessoas. A carta de Daniel tem o objetivo de fazer que o seu ódio invada a vida de Mathieu não como uma relação direta e pessoal, mas como um fato que independe de uma deliberação psicológica que o outro poderia ignorar. É nesse sentido que ele utiliza a fórmula do cogito: não é possí­vel fugir do olhar do outro porque não há como duvidar de que a exis­tência está vinculada a esse olhar. Dada essa inexorabilidade presente nas relações humanas, acrescem-se a dimensão situacional e a força da presença concreta do outro, não o Outro como o oposto universal do si-mesmo, mas um outro. “Ao te revelar em junho último um aspecto pitoresco da minha natureza, talvez tenha feito de ti – sem o perceber – minha testemunha prioritária.” [5]. Uma testemunha sempre pode ser invocada em dois sentidos: para acusar e para defender. Em qual­ quer dos casos, tem-se que contar com a anterioridade da presença necessária ao testemunho. Aquele que testemunha o faz por estar presente: cumprido esse requisito, não pode furtar-se à sua qualidade de testemunha. Assim, o testemunho deriva pura e simplesmente da presença ao outro. Se toda presença é presença ao outro, o testemunho é algo de que não se pode escapar. Na ordem humana, ninguém está absolutamente exterior ao outro na medida em que estar no mundo é estar diante do outro. É essa relação interna que Mathieu pretende­ ria ignorar para “preservar” a sua liberdade, isto é, para não se com prometer com ninguém. A “revelação” de Daniel acerca da inevitabi­lidade existencial do testemunho tem então o propósito de mostrar a Mathieu a inutilidade de sua pretensão e a impossibilidade de conferir um sentido absolutamente solipsista à sua conduta. Ademais, a situação concreta faz de Mathieu a “testemunha prioritária”: Daniel não está apenas sob o olhar de Mathieu; ele colocou-se nessa posição ao revelar ao outro “um aspecto pitoresco de sua natureza”: dessa forma ele capturou o olhar de Mathieu para si, e de nada valeriam daí em diante os esforços de indiferença do outro. Daniel não está apenas sob o olhar de Mathieu, mas também o deseja, porque assim ele se incrustará na liberdade do outro e o ser-visto, que seria a passividade, atuará na constituição da posição do outro que o vê e que não pode deixar de vê-lo. Dessa maneira, Daniel não precisará votar a Mathieu “um ódio ativo”; esse ódio refletirá apenas o olhar do outro e será o outro que será ativo como ocasião do ódio. Fazendo do outro a teste­munha obrigatória e prioritária de minha vida, como que o forço a assumir a posição de causa de minha angústia e me transfiro, apesar dele mesmo, para a sua consciência, tornando-me assim o outro que invadiu aquele mundo que Mathieu pretendia fechado e preservado, mas que agora ele tem de compartilhar comigo.

Ou seja, Daniel não aceita a indiferença de Mathieu, ainda que esta seja artificialmente construída. Quer ser o objeto da consciência de Mathieu, e para isso é preciso que Mathieu se faça consciência dele, Daniel. Ele está ali, no campo do olhar do outro, mas o outro procede como se isso não ocorresse. É preciso mostrar que isso não é possível, que a liberdade desse sujeito, Daniel, está sujeita à liberdade do outro. Daniel se compraz nesse ato de submissão agressiva porque essa é a maneira de habitar a consciência do outro – talvez no limite de fazê-la sua, se forçar o outro a submeter-me for uma maneira de possuí-lo. Daniel deseja que a prioridade do testemunho de Mathieu estabeleça entre eles uma ligação que torne a presença de Daniel os­ tensiva na consciência de Mathieu. Não o conseguiu por via do rumo que deu aos acontecimentos: casar-se com Marcelle não despertou em Mathieu a reação que talvez fosse esperada o “sacrifício” de nada adiantou. Mas e se Mathieu não puder fugir à condição e testemunha desse e de todos os acontecimentos da vida de Daniel? Não seria essa a maneira de forçá-lo a compartilhar, mais do que a infelicidade, a existência? Pois Daniel não pretende expor a Mathieu a sua “psicologia”, solicitando implicitamente a compreensão do outro para idiossincrasias subjetivas. Pretende mostrar que há laços mais profundos, mais fortes e talvez mais cruéis. “Acrescento, para evitar qualquer mal­ entendido, e agradecendo à boa-vontade do psicólogo sutil, que desta vez é ao filósofo que me dirijo, pois convém situar a narrativa que te envio no plano metafísico. “ [6] Mathieu ordenará racionalmente aquilo que Daniel relatará confusamente por ter vivido “às cegas”. Como se trata de uma narração metafísica, o filósofo terá de compreendê-la a partir de si e não a partir do outro. Não poderá se utilizar do pretexto da condescendência psicológica, pois está concernido pelo seu pró­prio métier, que, em princípio, é o da clarividência. Isso também faz parte da situação concreta, em que o outro a que se dirige Daniel não é qualquer um, mas Mathieu Delarue, filósofo, profissional da razão, “capaz de fixar em noções os movimentos atuais de meu espírito”. Armadilha cuidadosamente montada? Talvez, já que isso não seria es­tranho à misogenia de Daniel. Em todo caso, ele põe em jogo os hábitos incorporados de Mathieu, aquilo em que ele livremente se consti­tuiu: “um racionalista um pouco curto … raciocinador por prudência … intelectual comedido”. [7] Não que tudo isso leve Mathieu à verdade em relação a Daniel. Este sabe que o outro utilizará esses instrumentos “para chafurdar deliberadamente no erro”, mas é isso mesmo que interessa. Daniel deseja que Mathieu o veja a partir de si, que forme uma imagem comprometida com o que ele, Mathieu, é, e que, além disso, es a imagem, por via da qual chafurdará no erro, esteja impregnada do racionalismo que é um ingrediente importante do olhar do “intelectual”. Assim a constituição de Daniel por Mathieu será da inteira responsabilidade deste. É isso que Daniel quer levar Mathieu a assumir.

Por isso, ele começará pela “confissão” de que não sabe o que é. Mas essa impossibilidade de definir-se é decorrente da dificuldade de produzir em si mesmo o “recuo” necessário à consideração de si mes­mo “em conjunto”, algo que incide na relação que o sujeito mantém consigo mesmo. O que odiar em si e o que amar em si, quando nada em si se apresenta como capaz de sustentar qualquer um desses senti­ mentos? Onde está esse eu que poderia considerar como objeto de amor ou ódio? Perco -o na própria experiência que dele tenho, ele me escapa em todo ato de localizá-lo. O enunciado “eu sou eu” torna-se vazio se não posso definir a significação atributiva que nele seria visa­ da. Eis então que surge a oportunidade de preencher esse vazio:

“acreditei tocar-me em teus olhos amedrontados. Tu me vias, a teus olhos eu era sólido e previsível; meus atos e meus humores não eram mais que as conseqüências de uma essência fixa. Esta ssência, é através de mim que a conhecias, eu a tinha descrito com palavras, eu te revelara fatos que ignoravas e que te tinham permitido entrevê-la. No entanto, tu é que a vias e eu só podia ver-te a vê-la”. [8]

O ser-visto fixa uma essência do para-si. Aquela “matéria mole e movediça em que as palavras se atolam” torna-se algo “sólido e previ­sível”, pronto a ser definido, enunciado definitivamente, nomeado. As palavras encontram chão firme para se articularem e constituírem um saber. Então Daniel passa a ver-se nos olhos que o vêem. Mas o que ele vê? Essa essência que estabilizaria a fluidez do seu ser, ele conti­nua a não vê-la; ele vê que outro a vê. E nisso que o outro vê, ele teve participação decisiva, porque revelou, “confessou” fatos que o outro ignorava e a partir dos quais pôde construir a sua visão. Daniel se vê excluído da visão dessa essência que, se não fosse por ele, o outro não teria chegado a realizar. Há, portanto, uma essência guardada na visão do outro: minha essência. Eu nada sei dela exceto que o outro a vê. Descubro então, primeiramente, que “a gente só se podia alcançar pelo juízo de outrem”; e descubro também que jamais poderei alcan­çar isso que o outro chegou a saber sobre mim. Daí a ambigüidade da relação: dependo do outro para me ver, mas essa visão que ele tem de mim só ele pode realizá-la. Dependo de algo que somente se realiza ao tomar-se inacessível a mim. Gratidão mitigada: sou grato ao outro pela revelação de que me vê, mas não posso obter aquilo que ele vê a meu respeito. Antes eu existia “não me sentindo ser”; agora a essa certeza sem fundamento se acrescenta o sentimento de que existo pelo outro, mas se essa visão do outro confere algum fundamento ao meu ser, continuarei a ignorar qual seja esse fundamento. Não compartilho com o outro essa visão de mim que ele obteve por meu intermédio. Trata-se de uma possibilidade para mim perdida na consciência do outro. De modo que tenho de continuar vivenciando o nada que sou, mas, desta vez, sabendo que há algo que sou segregado pelo outro.
Daniel encontra alguma coisa de consolador em tudo isso: a reciprocidade.

“Se é certo que não posso alcançar-me sem a tua intercessão, não é menos certo de que a minha te é necessária se queres conhecer-te. Vi­ nos então exibindo, um por intermédio do outro, os nossos nadas, e pela primeira vez ri, ri esse riso profundo e confortador que abrasa tudo” [.9]

Essa reciprocidade em que cada um conserva na sua solidão o nada que o constitui está, portanto, eivada de negatividade. A intermediação recíproca ou a mútua “intercessão” não configura para cada um a visão que um possui do outro. Reitera o nada que ambos exibem, “um por intermédio do outro”, o que produz uma relação atravessada pela inacessibilidade de um termo a outro. Eis por que a mediação que o outro constitui para mim, ao constituir-me pelo seu olhar, remete-me a mim mesmo, mas remete-me ao meu nada, refletido no segredo que sou para mim mesmo guardado na consciência alheia. Ao riso de Daniel se segue a “indiferença melancólica” porque o alcance de minha solidez- e a do outro- se encontra indefinidamente adiada. À imposição de si mesmo ao outro pela submissão ao olhar do outro acrescenta-se o domínio do outro por mim, a necessidade também da minha intercessão para que ele possa “adivinhar por vezes” o que é “de verdade”. Racionalista curto, cego e mentiroso, inseguro, intelectual mode­ rado, “fruto delicioso de nossas classes médias”: Daniel pode dizer tudo isso a Mathieu sem, no entanto, revelar Mathieu a Mathieu, assim como este não poderá revelar Daniel a Daniel. Ambos têm de tentar “adivinhar” aquilo que é pelo outro. Esse bloqueio afeta pela negatividade. Não se trata de um isolamento que redundasse numa ignorância mútua. O meu ser em outro caracteriza-se pela impossibilidade de saber o que sou no outro e pelo outro. O meu ser-para-outro identifica-se com a absoluta impossibilidade de atingir o que sou para-outro. O caráter angustiante dessa situação só poderia ser quebrado pela dissolução da reciprocidade, quer dizer, da mútua intercessão. Pela impossibilidade de que o outro seja para mim da mesma forma como sou para ele. Ou então pela total impossibilidade de que o outro, para quem eu sou, seja para mim. Isso pode acontecer? “Deus me vê, Mathieu; eu o sinto, eu o sei.” [10]. Se nunca poderei chegar a saber o que sou para Deus, ao menos sei que o que ele sabe de mim nada deve a minhas palavras ou aos meus pensamentos. O “tudo” a que se refere o cura de Sauveterre não é a totalidade da “espuma” superficial que brota cotidianamente de nós, mas algo como “nossa essência eterna” [11]. Assim como, no caso do outro, sei que ele me vê por meu intermédio, no caso de Deus sei que a sua visão dispensa essa intermediação contingente; por isso a “essência eterna”.

A narrativa que Daniel quer fazer a Mathieu é essa de como somos para-o -outro e de como é impossível não sê-lo, já que o olhar do outro nos essencializa. Mas o que é esse olhar? Assim como nunca saberemos aquilo que o olhar do outro produziu a nosso respeito, porque não podemos coincidir com a consciência do outro, assim também não sabemos, desde o princípio, o que é esse olhar. Ou pior: sabemos o que é ser olhado, capturado pelo olhar do outro, mas não sabemos de­finir esse olhar a partir de sua origem no outro; só sabemos dele o que sentimos dele em nós. Por isso, sabemos que somos olhados antes de nos defrontarmos com o olhar do outro. Seu olhar atinge nossas costas, nossa nuca, quase fisicamente; voltamo-nos e vemos que nin­guém nos olha. Mas o que sentimos é mais forte do que o que constatamos pela observação: continuamos a nos sentir olhados, a sofrer o efeito do olhar. “Tornas à posição anterior mas sabes que o desconheci­ do reergueu os olhos, e sentes um formigamento nas costas, compará­vel a uma crispação violenta e rápida de todos os teus tecidos.”12 Não se trata apenas de sentir e saber que há outros. Trata-se de sofrer direta­ mente a presença desse outro que me fixa por trás e diante do qual estou indefeso. Ele me absorve a distância, minha realidade flui para ele, cristalizada, assimilada. Retesado, permaneço o mesmo, mas sinto que fui transpassado; continuo opaco, mas sinto que me tornei transparente. Essa sensação de que continuo sendo o que era mas que alguém apoderou -se disso que eu sou e, portanto, sou eu mesmo mas em outro é a sensação da existência testemunhada. Existo e existirei sempre no modo da existência testemunhada por outro. “Desde então nunca deixei de estar diante de uma testemunha “, é o que diz Daniel. Sou este ser olhado e nada sei a respeito desse olhar. Só posso dizer dele que “não é nada; é uma ausência. Imagina a noite mais escura. É a noite que te olha”. É a luz negra que me ilumina e me atravessa, mais forte do que a claridade do dia, mas ao mesmo tempo escura a ponto de ser invisível. Sou claro para o outro e ele é obscuro para mim; o foco que me atinge se anula quando tento fixá-lo. Mais: a luz que me atinge não me torna mais claro para mim; ela pertence exclusivamente ao olhar do outro. De modo que me exponho, mas não a mim. Essa exposição ao outro que me oculta de mim é a violentação: possuí­do, desvaneço-me. E ao desaparecer para mim me constituo no outro. Por isso é que “penso, logo existo” é “a palavra imbecil e criminosa de vosso profeta” [13]. Não é pensando que existo; é sendo visto. E por mais que pense nunca atingirei o que sou na consciência do outro. Quem me vê é que me faz ser. Que ele fique então com a responsabilidade pela minha existência. Que a angústia de existir pelos olhos do outro se transforme em repouso. O outro, que é quem eu não sou, me conhece; eu, que sou, não me conheço. Que eu seja então no e pelo conhecimento que o outro tem de mim. “Sou como ele me vê.” E fora desse ser-visto, não pensarei em ser nada mais. Em vez de penso, logo existo, vêem-me, logo existo. “Estou enfim transformado em mim mesmo” [14]. Tel qu’en lui-même l’éternité le change. E é na eternidade que Daniel pretende ser em outro: “E Vós, cujo olhar me foge eternamente, suportai-me”. Suportai-me para que eu possa suportar-me. Mas que o sustentáculo seja eterno e que, sendo naquele que não sou, eu seja ple­namente: “uma presença me sustém e auxilia-me a ser para sempre”.

Desejaria Daniel fazer de seu ser-para-outro algo como uma vin­gança? O olhar do outro me remete a mim, diz Sartre. Mas isso que o outro remete a mim é apenas o sinal do que ele guardará de forma impenetrável. Definitivamente lançado fora de mim pelo olhar do outro que me joga na exterioridade, não tenho, contudo, como alcan­çar, na outra consciência, um meio de retornar a mim mesmo. Viverei então na exterioridade, mas a partir do modo como o olhar do outro me visa nessa exterioridade: serei para ele e assim serei sua responsa­bilidade. Mas quem é ele? Que olhar é esse? “Noite ofuscante.” “Luz negra”; “a noite secreta do dia”: já que só posso ser por intercessão, que o Intercessor suporte meu ser eternamente. Se é um olhar que foge, que fuja eternamente e que eu seja eternamente, essencialmente, o que seu olhar me fizer ser nessa fuga. Daí o interesse de Daniel em saber, junto ao cura de Sauveterre: “Senhor cura, disse-lhe, quero apenas uma informação: ensina a Religião que Deus nos vê?”.

Se há um sentido nessa passagem do olhar do outro ao olhar do Outro, não está certamente apenas no desejo de se pôr sob um olhar absoluto, que de alguma maneira venha a salvar minha subjetividade da disseminação. Com efeito, se Deus me olha, poderia crer que esse olhar que me transcende   absolutamente reduziria os outros olhares a nada. O caráter inalcançável do olhar de Deus seria algo diferente da minha impossibilidade de alcançar o olhar dos outros, pois Deus seria aquele no qual minha essência estaria de modo absolutamente único: escaparia assim da disseminação totalitária pela qual minha essência se constitui absolutamente para cada um dos que me olham. Não alcanço o olhar desses outros porque seus olhares escapam numa fuga contínua que tenho de perseguir. Mas a fuga eterna do olhar de Deus, não teria de persegui-la porque ao escapar esse olhar me acompanha. “Deus tudo vê.” Assim, não se trataria mais de uma perpétua constituição de mim pelo outro, mas da completa visão que o Outro teria de minha “totalidade destotalizada”. Essa realização da minha essência em outro seria a satisfação do desejo de ser, que se daria então como a total alienação de ser-em-si em outro. Por isso, Daniel a quali­fica de “repouso”. Mas o repouso é também “angústia” porque se vin­cula à ânsia de superar minha disseminação nos olhares dos outros, “um ambiente universal de que não posso evadir-me” .15 Haveria, por­ tanto, uma diferença no âmbito significativo da mesma afirmação: “sei que sou” pelo olhar do outro. Pois, quando se trata dos olhares dos outros, “sei que sou” sem saber o que sou para cada uma e para todas aquelas liberdades que me totalizam; quando se trata do olhar de Deus, “sei que sou” sem saber o que sou para uma liberdade que me totaliza a partir de sua própria totalidade. Participo então dessa totali­dade, ele me’ invade e transforma meu para-si em para-ele. Minha “matéria mole e movediça” se solidifica definitivamente, supero a inconsistência; deveria assim a Deus a gratidão absoluta, e não a “grati­dão mitigada” que devo ao outro.

É importante notar, no entanto, que Deus aparece como a con­densação dos olhares que me disseminam, fixando-me na variedade contingente dessas totalidades relativas que são os outros. Deus é, portanto, o desejo do Olhar, despertado pela inevitabilidade dos olha­res. Ele representa a paralisia apaziguadora da questão que sou para mim mesmo. Ora, essa questão, Daniel a atira para Mathieu ao narrar, na carta que lhe envia, como se constituiu pelo olhar do outro, como cada um se constitui pelo olhar do outro, e como poderíamos nos constituir pelo olhar de Deus. Com isso ele desafia a indiferença de Mathieu. Se é esse o seu objetivo, tê-lo-ia atingido? Mathieu reage a partir da indiferença desafiada. “Quanta velharia, pensou. O vidro estava aberto, ele fez uma bola da carta e jogou-a pela janela, desistindo de ler o resto.” [16]. Ora, as “velharias”, eventualmente contidas na retórica de Daniel, são reveladoras da questão: o para-si é um ser em cujo ser está em questão o seu próprio ser como ser-para-outro. E o pró prio Daniel se revela, na sua “confissão”, como aquele que optou por depositar a questão acerca de si em outro. É claro que Mathieu não é um “confidente” de Daniel: o teor da relação particular não o permitiria. Mathieu é aquele que detém algo acerca de Daniel, assim como Daniel detém algo acerca de Mathieu. Ao se negarem, revelam-se cada um no outro que cada um deles não é. Essa ‘revelação feita de inco­municabilidade é uma certeza tão absoluta quanto opaca, pois ela sig­nifica que o meu nada é, fora de mim, algo a que permanecerei para sempre estranho.

Notas.
  1. Sartre, O ser e o nada, 2001, p.325; franc., 1982, p.297.
  2. Ibidem, p.333-4; ed. franc., p.304-5.
  3. Ibidem, p.531; ed. franc., p.481.
  4. Sartre, Sursis, 1964, p.335.
  5. Ibidem, p.330.
  6. Ibidem, p.33l.
  7. Ibidem.
  8. Ibidem.
  9. Ibidem.
  10. Ibidem, p. 334.
  11. Ibidem, p. 335.
  12. Ibidem, p.334
  13. Ibidem, p.335.
  14. Ibidem.
  15. Ibidem.
  16. Ibidem, p. 336.
*Este escrito foi originalmente publicado em: SILVA, Franklin Leopoldo. Ética e literatura em Sartre: Ensaios introdutórios. São Paulo: Editora Unesp, 2004.

**A imagem roubada faz parte da série Císco e foi tecida cuidadosamente pelo poético pintor alagoano, Pedro Lucena. Para enveredar em seus caminhos afectivos, acesso o território: https://www.flickr.com/photos/pedrolucena/

Fonte: Territórios de Filosofia

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