maio 13, 2015

"Comuna de Paris: rebelde, polêmica e… atual". Kristin Ross, entrevistada por Manu Goswami (OUTRAS PALAVRAS)

PICICA: "Livro recém-lançado nos EUA sugere: rebelião antecipou, há 144 anos, visões contemporâneas sobre Arte e Ecologia. Diferenças entre marxistas e anarquistas eram menores que se pensa "

Comuna de Paris: rebelde, polêmica e… atual


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Livro recém-lançado nos EUA sugere: rebelião antecipou, há 144 anos, visões contemporâneas sobre Arte e Ecologia. Diferenças entre marxistas e anarquistas eram menores que se pensa 

Kristin Ross, entrevistada por Manu Goswami, na Jacobin Magazine | Tradução Vila Vudu

Em 18 de março de 1871, artesãos e comunistas, trabalhadores e anarquistas, tomaram a cidade de Paris e estabeleceram a Comuna. Esse experimento radical de autogoverno socialista durou 72 dias, antes de ser esmagado num massacre brutal que estabeleceu a 3ª República francesa. Mas socialistas, anarquistas e marxistas nunca deixaram de discutir o significado daquela ação.

Kristin Ross, em seu novo livro, o poderoso Communal Luxury: The Political Imaginary of the Paris Commune [O luxo da Comuna: imaginário político da Comuna de Paris], expõe com máxima clareza os debates acumulados sobre a Comuna, os quais, como ela diz, calcificaram falsas polêmicas: anarquismo versus marxismo, camponês versus operário, terrorismo jacobino revolucionário versus anarco-sindicalismo e assim por diante.

Agora que a Guerra Fria acabou e o Republicanismo francês está exaurido, argumenta Ross, podemos afinal livrar a Comuna dessa esclerose. Essa emancipação pode, por sua vez, revitalizar a esquerda contemporânea para agir e pensar sobre os desafios de hoje. Nenhum trabalho especifica mais completamente o que disse Marx, para quem a maior conquista da Comuna de Paris foi sua “existência real em operação”. A seguir, sua entrevista.


Seu livro reencena a Comuna de Paris para nossos tempos. Por que o movimento é um recurso para pensar as demandas do presente?

Kristin Ross – Fico contente que você tenha escolhido “recurso”, em vez de “lição”. Em geral as pessoas insistem em que o passado nos daria lições, ou ensinaria que erros evitar. A literatura em torno da Comuna é cheia de palpites, de engenheiros de obra feita, de gente que goza ante a lista de erros: ah, se os Communards tivessem feito isso ou aquilo, saqueado dinheiro do banco, marchado sobre Versailles, feito a paz com Versailles, se se organizassem melhor, aí, sim, teriam sido bem-sucedidos!

Para mim, esse tipo de superioridade teórica post-fato é, ao mesmo tempo, estúpida e profundamente a-histórica. Nosso mundo não é o mundo dos Communards. Quanto mais cedo compreendermos esta diferença, tanto mais fácil será perceber os pontos nos quais o mundo deles é, de fato, muito próximo do nosso – mais próximo de nós, talvez, que o mundo da geração dos nossos pais.

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O modo como vivem hoje as pessoas, particularmente os mais jovens, assemelha-se muito à instabilidade econômica enfrentada pelos operários e artesãos do século 19, que fizeram a Comuna. Muitos deles passavam mais tempo em busca de trabalho do que propriamente trabalhando.

Depois de 2011, com a volta virtualmente em todos os lugares, de uma estratégia política baseada em tomar espaços, ocupar locais e territórios, converter cidades inteiras – de Istanbul a Madrid, de Montreal a Oakland – em teatros para operações estratégicas –, a Comuna de Paris voltou a ser visível, como se recebesse nova iluminação, entrou novamente na figurabilidade do presente.
Suas formas de invenção política tornaram-se novamente viáveis para nós — não como lições, mas como recursos, ou como o que Andrew Ross, ao comentar meu livro, chamou de “um arquivo usável”. A Comuna tornou-se imagem para uma história, e talvez para um futuro — diferente dos rumos que a modernização capitalista tomou; e, por outro, dos caminhos que o Estado socialista utilitário seguiu.

É um projeto que, creio, muita gente partilha hoje, e o imaginário da Comuna é central para aquele projeto. Por essa razão, tentei, no livro, pensar sobre a Comuna ao mesmo tempo como pertencente a nosso passado e como uma espécie de abertura do campo dos futuros possíveis, em meio a nossas atuais lutas.

O luxo comum (fr. le luxe communal) foi slogan da seção dos artistas da Comuna e dá título ao seu livro. Você pode nos falar sobre a gênese dessa expressão?

Diferente de “a república universal”, “o luxo comum” não foi um dos slogans retumbantes da Comuna. Encontrei a expressão metida na última frase do manifesto que artistas e artesãos produziram sob a Comuna, quando se auto-organizavam numa federação. Para mim tornou-se uma espécie de prisma pelo qual refratar várias invenções e ideias chaves da Comuna de Paris.

O autor da expressão, o artesão de artes decorativas Eugène Pottier, é mais conhecido até hoje como autor de “A Internacional”, composto ao final da Semana Sangrenta, antes de o sangue dos massacres ter secado nas calçadas. O que ele e outros artistas queriam dizer com “luxo comum” era alguma coisa como um programa de ação para “beleza pública”: melhoria de vilas e cidades, o direito de todas as pessoas viverem e trabalharem em ambiente agradável.

Pode-se ver aí uma demanda pequena, talvez mesmo só “decorativa”. Mas de fato implica não só completa reconfiguração da nossa relação com a arte, mas também com o trabalho, as relações sociais, a natureza e o ambiente vivido. Significa mobilização total na direção das duas palavras de ordem da Comuna: descentralização e participação. Implica arte e beleza desprivatizadas, plenamente integradas na vida diária, não escondidas em salões privados ou centralizadas numa monumentalidade nacionalista obscena.

Os recursos e realizações estéticas de uma sociedade não mais tomariam, como os Communards mostraram em atos, a forma do que William Morris chamou de “aquela peça básica da estofaria napoleônica”, a Coluna Vendôme. Na pós-vida da Comuna, no trabalho de Elisée Reclus, Morris e outros, mostro como a demanda de que a arte e a beleza florescessem na vida quotidiana continha as ideias chaves do que hoje chamaríamos de desejo “ecológico”, e que pode ser percebido na “noção crítica de beleza” de Morris, por exemplo; ou na insistência de Kropotkin sobre a importância da autossuficiência regional.

Nas suas fronteiras de alcance mais especulativo, “o luxo comum” implica um conjunto de critérios os sistemas de valorização diferentes do que o mercado fornece, para decidir o que uma sociedade valoriza, o que considera precioso. A natureza é valorizada não como um estoque de recursos, mas como fim em si mesma.

Seu livro estende a vida da Comuna aos trabalhos de Kropotkin e do socialista britânico William Morris, dentre outros.

É muito fácil deixar-se tomar, num transe de horror, pelo que Flaubert chamou de a “goticidade” da Comuna, expressão pela qual espero que ele tenha querido referir-se aos horrores da Semana Sangrenta, ao massacre de milhares que levou ao fim da Comuna. De modo algum minimizo o significado do massacre. De fato, vejo aquela espantosa tentativa, pelo Estado, de exterminar um a um e em massa seus inimigos de classe, como o ato de fundação da 3ª República.

Mas me ocupei mais em documentar o que, para mim, seria o prolongamento da Comuna – o modo como o pensamento communard continuou a ser elaborado depois do fim da Semana Sangrenta, com sobreviventes da Comuna exilados reunindo-se e trabalhando juntos com os apoiadores que você mencionou – camaradas de uma mesma viagem, para quem os eventos da Comuna haviam alterado profundamente o que Jacques Rancière chamaria de “a distribuição do sensível”.

Descrevo como a onda de choque produzida pela Comuna e as discussões e a sociabilidade que se seguiram, com os que sobreviveram à Comuna, mudaram os métodos desses pensadores, as questões sobre as quais se debruçavam, os materiais que selecionavam, a paisagem intelectual e política que mapearam para si mesmos – em resumo, o caminho deles. Essas ondas imediatas de pós-choque são a continuação da luta, por outros meios. São parte do excesso do evento, e são tão absolutamente vitais para a lógica de qualquer evento, como as ações iniciais pelas ruas.

Talvez a maior modificação possa ser detectada na trajetória de Marx, depois da Comuna – uma mudança que assume a forma paradoxal tanto de um fortalecimento de sua teoria como de uma ruptura com o próprio conceito de teoria. A Comuna mostrou muito claramente, aos olhos de Marx, que as massas não só modelam a história como também, ao modelá-la, transformam o presente e também transformam a própria teoria. Isso, de fato, é o que Henri Lefebvre tinha em mente, quando falou da “dialética do vivido e do concebido”.

O pensamento e a teoria de um movimento só são desencadeados com o movimento e depois do movimento. São as ações que criam os sonhos, não o contrário.[1]

Piotr Kropotkin, Elisée Reclus e William Morris estavam, como você argumenta em seu livro, preocupados em mobilizar as “energias do antigo”, associadas a formas pré-capitalistas e não capitalistas, com o potencial radical de práticas emergentes

Não só esses, mas também Marx era preocupado com a existência, “anacrônica” em seu próprio tempo, de formas e modos de vida pré-capitalistas.

O destino das obshchina, aquelas formações agrárias comunitárias russas, que perduraram por séculos, foi importante foco das preocupações dos socialistas ocidentais. O desafio teórico que tomou forma depois da Comuna girava em torno da questão de uma forma-comuna revitalizada: como pensar juntas (a) a espantosa insurreição que aconteceu numa grande capital da Europa e (b) a persistência daquelas antigas formas comunistas no campo.
Esses pensadores eram todos extremamente atentos ao que se pode chamar “fissuras no tempo” – momentos nos quais a ininterrupta continuidade da modernidade capitalista parece rachar-se e abrir-se como um ovo. Historiadores em geral temem o anacronismo como o maior erro possível. Tendem, por exemplo, a desconsiderar o interesse de Morris pela Islândia de seu tempo, e pelo passado medieval da Islândia, como se fosse nostalgia obcecada. Morris foi, realmente, capaz de ver formações pré-capitalistas e modos de vida como os que haviam florescido na Islândia medieval como  passados, parte da história, e, ao mesmo tempo, como figuração de um futuro possível.

Isso é sinal, na minha opinião, não de nostalgia, mas de um modo de pensar profundamente historicizado. Sem isso, não temos como pensar a possibilidade de mudança, nem de viver o presente como algo contingente e sem desfecho conhecido.
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* De um artigo sobre o mesmo livro, pela autora, em francês, no Le Monde Diplomatique, maio 2015.  As duas epígrafes foram acrescentadas pelos tradutores [NTs].

[1] O prof. Mangabeira Unger, em Conhecimento e Política, ensina que “a esperança é consequência da ação, não é causa dela”. A mesma lição-recurso de pensamento aparece em entrevista que concedeu à Revista Caros Amigos em 1999. É a mesma ideia progressista que se lê acima [NTs].

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

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