maio 27, 2015

"Psicanalista Christian Dunker analisa a vida entre muros". Por Marsílea Gombata (Carta na Escola)

PICICA: "Psicanalista explica como a privatização do Estado e da vida nos leva a um tipo de controle no qual o sofrimento é combatido antes de ser escutado"

Entrevista


Psicanalista Christian Dunker analisa a vida entre muros
O psicanalista Christian Dunker

Psicanalista Christian Dunker analisa a vida entre muros

Psicanalista explica como a privatização do Estado e da vida nos leva a um tipo de controle no qual o sofrimento é combatido antes de ser escutado

Por Marsílea Gombata
Pode parecer paradoxal para os dias de hoje, mas o sofrimento – que há tempos vem sendo combatido por meio de novos diagnósticos, medicações e pela liberdade de consumo – é um importante elemento de mobilização. Os moldes e regras da vida contemporânea, no entanto, mascaram-no dentro de uma espécie de vida planejada, com operações regradas.
 
O retrato social e filosófico dos dias atuais é debatido pelo psicanalista Christian Dunker em seu livro Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 416 págs., R$ 66). Ao traçar um histórico para mostrar como a teoria social é capaz de explicar o mal-estar individual que não é exclusivo de cada um, o autor explica que o fenômeno da “vida em condomínio” pode ser visto também nas políticas públicas atuais, elaboradas com base em diagnósticos, como no setor do Ensino Superior. “Os verdadeiros gestores do sistema passaram a publicar apenas para marcar pontos no Lattes, reduzindo a qualidade ao preço da quantidade, poluindo as revistas científicas com um lixo industrial acadêmico que prejudica a todos”, lembra em entrevista a Carta na Escola.
 
No cenário em que o espaço público passa a ser invadido pelo privado, ele alerta, não escapam nem mesmo as escolas infantis, cada vez mais parecidas com clubes. “Nelas tudo se passa como se estivéssemos em um parque de diversões ampliado. Os pais transferem para a escola o mandato de educar seus filhos, por um lado, e por outro demandam que esses sejam tratados segundo leis de exceção e particularidade. Exatamente a forma de relação entre o público e o privado que encontramos na vida em forma de condomínio”, denuncia. 
As escolas – e o Estado – passam, portanto, a agir como “terapeutas” interessados não apenas no bem-estar social, mas no conforto psíquico de seus cidadãos. Um estilo de vida que aplaca o sofrimento a um alto custo. Afinal, sem o sofrimento elaborado para ser força motriz de transformações acabamos por acatar até mesmo aquilo que não nos satisfaz. “É pela via das novas formas de sofrer que aspirações de liberdade são inventadas”, alerta. “Nossos sintomas são tão sociais quanto individuais, e tento mostrar isso pela análise de um que é obviamente social: a vida em forma de condomínio.” Confira os principais trechos da entrevista:
 
Carta na Escola: O livro nos traz à memória o filme Alphaville, de Jean-Luc Godard, para nos questionarmos sobre a transformação da vida em forma de condomínio. De que maneira esse fenômeno ocorre e que tipos de monstros produz?
Christian Dunker: Durante os anos 1980, teóricos como Anthony Giddens, Richard Sennett e Frank Furedy argumentavam que o espaço público estava sendo invadido pelo privado. Surgia assim a figura do Estado “terapeuta” interessado não apenas no bem-estar social, mas no conforto psíquico de seus cidadãos. Até certo ponto essa tendência se confirmou, o que não ficava muito evidente é que a vida privada também sofreu um impacto semelhante. A vida privada “exteriorizada” dos políticos, das celebridades ou da hipersociabilidade digital é uma esfera privada “administrada”. Uma combinação nova entre exibicionismo, narcisismo e identificação. Essa nova forma de privacidade, na qual surge a figura do gestor, controlado por regras estritas e murado por sólidas estruturas de exclusão, produz monstros de vários tipos: os “funcionários invisíveis” (usando entradas e saídas especiais), as “mulheres Frankenstein” (que trocaram sua elasticidade pelo desejo infinito de adequação), “as crianças zumbis” (administradas à base de Ritalina), os “trabalhadores monossintomáticos” (que operam 24 horas por dia), as “maternidades vampiras” (que se apossam dos destinos de seus filhos) e, é claro, os “Caution Shreks”, que somos todos nós excluídos do lado de cá dos muros (lembrando que Caution é o detetive que investiga a desaparição dos sentimentos dentro do condomínio de Alphaville).
 
CE: Esse fenômeno difere de país para país? A chamada ascensão da classe C no Brasil pode ser enquadrada nele?
CD: A ascensão da classe C, a saída de muitas pessoas do estado de miséria e fome para o estado de consumidores em potencial, a expansão de certas formas de consumo de luxo, associada à classe média alta, intensificam um problema que dá origem ao sintoma do condomínio, ou seja: a legitimidade e pertinência do reconhecimento social. Essa satisfação suplementar está baseada em dois fatores: o sentimento de exclusividade e, portanto, de exclusão de outras pessoas, em relação à experiência de consumo. Quando há muita mobilidade social, como é o caso do Brasil dos últimos tempos, os signos e padrões de consumo perdem sua função de diferenciação para o desejo, acentuando sua função de demanda e de gozo. Quando todos começam a andar de avião, a possuir carros e a se vestir de forma mimeticamente luxuosa, as classes que antes se asseguravam de sua condição por meio de tais signos sentem que sua identificação foi parasitada, sentem que há uma degradação de seus signos de gozo. Surge o ressentimento e o ódio, surge o apelo a formas ainda mais exclusivas de viver a vida, sendo o condomínio o símbolo maior dessa exclusividade.
 
CE: No Brasil, o senhor lembra, as “políticas públicas baseiam-se cada vez mais em diagnósticos”. Quais exemplos poderíamos dar disso?
CD: Durante os anos 1990, por exemplo, o Brasil acolheu o diagnóstico de que sua população universitária era muito pequena. O mesmo diagnóstico apontava uma necessidade de ampliar cursos universitários e a pesquisa no País, o que não poderia ser feito apenas com recursos públicos. Tendo por modelo as universidades públicas, que tinham bom desempenho, mas atendiam a uma parcela pequena da população, começou então um esforço para a ampliação e qualificação do sistema de pós-graduação e o aumento de doutores. O sistema gerava mais e mais diagnósticos, o que levou à implantação de sistemas de avaliação de alunos, de instituições, com números mínimos de doutores por universidade, de pós-graduações bem como a valorização da produção científica, aferida pelo então nascente Currículo Lattes. Ora, depois de formados os condomínios universitários o que aconteceu? Os verdadeiros gestores do sistema passaram a publicar apenas para marcar pontos no Lattes, reduzindo a qualidade ao preço da quantidade, poluindo as revistas científicas com um lixo industrial acadêmico que prejudica a todos. Os síndicos geraram regras tão complexas que ninguém consegue mais levar em conta o que acontece nas salas de aula. O pior dos mundos com o melhor dos diagnósticos.
 
CE: De que maneira “a vida em condomínio” impacta a Educação Infantil?
CD: Na Educação Infantil o impacto da autossegregação é ainda maior. Isso ocorre porque a ambiguidade que constitui esse espaço pedagógico, entre cuidar e educar, convida à aplicação massiva do princípio securitário e da moral da segurança. Tem-se, por exemplo, a proliferação de pré-escolas bilíngues, que atraem pais que não falam outra língua e famílias culturalmente estranhas à língua; ou a adoção de câmeras de vigilância dentro de salas de aula, exatamente como em elevadores e áreas comuns de condomínios. Esse estado de exceção dentro da exceção tem produzido uma rápida judicialização e uma grande psicopatologização da primeira infância. Sabemos que a relação de extensão narcísica que existe entre a mãe e seus filhos, ou entre a família e suas crianças, deve passar por uma espécie de mutação da lei simbólica, importante para o processo de socialização do sujeito. Ele deve entender que a lei que se encontra em uma escola é pública e impessoal, condição para que cada qual lute por sua autonomia e para reduzir sua dependência. A lei da família, é, ao contrário, pessoal e caprichosa. As novas pré-escolas, criadas ao gosto do consumidor, não conseguem favorecer esta mutação. Nelas, tudo se passa como se estivéssemos em um parque de diversões ampliado, com a sucessiva transferência de expectativas. Ou seja, os pais transferem para a escola o mandato de educar seus filhos, por um lado, e por outro demandam que esses sejam tratados segundo leis de exceção e particularidade. Exatamente a forma de relação entre o público e o privado que encontramos na vida em forma de condomínio.
 
CE: Como a condominização se expressa no Ensino Fundamental?
CD: Quando o assunto é o Ensino Primário ou o Fundamental I, a condominização caminha por dois sentidos opostos. Pelo primeiro suspendemos os critérios de formação de professores, vetamos o acesso de gente qualificada à docência e impedimos que salários diferenciados sejam pagos a professores com formações diferenciadas. Essa isonomia artificial cria uma espécie de reserva de mercado, que será então instrumentalizada pela escola pública para produzir números à base de “aparências” (como na aprovação compulsória) e pela escola privada para produzir crianças “felizes e funcionais” (e seu óbvio efeito de bullying para com as diferenças).
 
CE: O que seria o “novo espírito do capitalismo”, segundo o livro, que nos impede de reconhecer a aspiração de liberdade?
CD: É antes de tudo um espírito: um sistema de crenças que nos provê do sentimento de mundo como uma unidade. No momento em que esse nos faz acreditar que todo o sucesso depende de nós, de nossas habilidades, de nossas potencialidades, de nosso poder de superação, de nossa combatividade, ele nos diz que quando fracassamos tudo depende de nós.
 
CE: O crescente uso de substâncias por estudantes, em especial os universitários, em épocas de provas é consequência desse espírito? Afinal, por que “não podemos falhar”?
CD: Não podemos falhar porque não podemos mais aprender com erros, não há tempo para isso. O espírito neoliberal se caracteriza pela redução metódica do peso dado aos meios e aos processos e um incremento da importância conferida aos fins e ao produto. Se o que importa, desde os pais até o Ministério da Educação e os organismos internacionais, são resultados, o uso de meios como a dopagem, o professor particular crônico, o apostilamento, os cursinhos preparatórios, a compra de vagas, tudo isso começa a se tornar apenas uma questão de grau onde vamos colocar um limite artificial. É por isso que nossos sistemas estatais de controle de qualidade de cursos, de evolução oferecida pelo curso, de ranqueamento são um óbvio estímulo à corrupção. Uma escola que, dentro da lei, escolhe, seleciona ou segrega os melhores alunos para o Enem, obtendo assim resultados que podem ser usados como propaganda, está obviamente realizando o que eu chamo de “corrupção dentro da lei”. Ao final não podemos falhar porque isso será interpretado como índice de que você não entendeu como o sistema funciona, que ele não funciona sem falhas, mas pela moral do encobrimento máximo delas.
 
CE: Como as escolas e universidades poderiam relativizar essa ideia de meritocracia e de sucesso, que parece depender exclusivamente de nós?
CD: O mérito e a construção de diferenças não é um mau critério, mas ele deve estar baseado na premissa de que todos deveríamos possuir oportunidades iguais, de saída. Ora, como essa condição ainda está muito longe de ser alcançada no Brasil, é importante relativizar o sucesso e o mérito obtidos em meio a terríveis desigualdades de início. Importa modificar as condições iniciais. Isso só pode ser feito com uma redistribuição dos recursos que temos.
 
CE: O senhor lembra que para Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Philippe Pinel a “alienação da razão era condição necessária (...) para a experiência da liberdade”. O  sofrimento é, então, importante para a mobilização?
CD: Sim, as grandes transformações políticas sempre foram uma redefinição da linha que separa o sofrimento que deve ser aceito e tolerado, do sofrimento que deve ser alterado, quer pela transformação de si, quer pela transformação do mundo. Não é uma coincidência que as populações resignadas diante do sofrimento sejam também as menos engajadas politicamente. Tanto o movimento feminista, como o movimento em favor da valorização da negritude ou anticolonização, começam por despertar as pessoas para essa verdade invisível: “você está sofrendo, você está sendo oprimido, e nem se dá conta disso”. Por outro lado, neutralizações e bloqueios de mudanças sociais se fazem acompanhar de narrativas que dizem: “o sofrimento é incontornável, aceite o mundo como ele é, o sofrimento é uma predestinação”. O sofrimento por si só não muda nem melhora ninguém. O mais provável é que sua acumulação nos torne piores. Contudo, é pela via das novas formas de sofrer que aspirações de liberdade são inventadas. Nossos sintomas são tão sociais quanto individuais, e tento mostrar isso pela análise de um que é obviamente social: a vida em forma de condomínio.
 

Publicado na edição 96, de maio de 2015

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