PICICA: "Psicanalista explica como a privatização
do Estado e da vida nos leva a um tipo de controle no qual o sofrimento é
combatido antes de ser escutado"
Entrevista
O psicanalista Christian Dunker
Psicanalista Christian Dunker analisa a vida entre muros
Psicanalista explica como a privatização do Estado e da vida nos leva a um tipo de controle no qual o sofrimento é combatido antes de ser escutado
Por Marsílea Gombata
Pode parecer paradoxal para os dias de hoje, mas o sofrimento – que há
tempos vem sendo combatido por meio de novos diagnósticos, medicações e
pela liberdade de consumo – é um importante elemento de mobilização. Os
moldes e regras da vida contemporânea, no entanto, mascaram-no dentro de
uma espécie de vida planejada, com operações regradas.
O retrato social e filosófico dos dias atuais é debatido pelo
psicanalista Christian Dunker em seu livro Mal-Estar, Sofrimento e
Sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 416 págs.,
R$ 66). Ao traçar um histórico para mostrar como a teoria social é capaz
de explicar o mal-estar individual que não é exclusivo de cada um, o
autor explica que o fenômeno da “vida em condomínio” pode ser visto
também nas políticas públicas atuais, elaboradas com base em
diagnósticos, como no setor do Ensino Superior. “Os verdadeiros gestores
do sistema passaram a publicar apenas para marcar pontos no Lattes,
reduzindo a qualidade ao preço da quantidade, poluindo as revistas
científicas com um lixo industrial acadêmico que prejudica a todos”,
lembra em entrevista a Carta na Escola.
No cenário em que o espaço público passa a ser invadido pelo privado,
ele alerta, não escapam nem mesmo as escolas infantis, cada vez mais
parecidas com clubes. “Nelas tudo se passa como se estivéssemos em um
parque de diversões ampliado. Os pais transferem para a escola o mandato
de educar seus filhos, por um lado, e por outro demandam que esses
sejam tratados segundo leis de exceção e particularidade. Exatamente a
forma de relação entre o público e o privado que encontramos na vida em
forma de condomínio”, denuncia.
As escolas – e o Estado – passam, portanto, a agir como “terapeutas”
interessados não apenas no bem-estar social, mas no conforto psíquico de
seus cidadãos. Um estilo de vida que aplaca o sofrimento a um alto
custo. Afinal, sem o sofrimento elaborado para ser força motriz de
transformações acabamos por acatar até mesmo aquilo que não nos
satisfaz. “É pela via das novas formas de sofrer que aspirações de
liberdade são inventadas”, alerta. “Nossos sintomas são tão sociais
quanto individuais, e tento mostrar isso pela análise de um que é
obviamente social: a vida em forma de condomínio.” Confira os principais
trechos da entrevista:
Carta na Escola: O livro nos traz à memória o filme Alphaville,
de Jean-Luc Godard, para nos questionarmos sobre a transformação da
vida em forma de condomínio. De que maneira esse fenômeno ocorre e que
tipos de monstros produz?
Christian Dunker: Durante os anos 1980, teóricos como
Anthony Giddens, Richard Sennett e Frank Furedy argumentavam que o
espaço público estava sendo invadido pelo privado. Surgia assim a figura
do Estado “terapeuta” interessado não apenas no bem-estar social, mas
no conforto psíquico de seus cidadãos. Até certo ponto essa tendência se
confirmou, o que não ficava muito evidente é que a vida privada também
sofreu um impacto semelhante. A vida privada “exteriorizada” dos
políticos, das celebridades ou da hipersociabilidade digital é uma
esfera privada “administrada”. Uma combinação nova entre exibicionismo,
narcisismo e identificação. Essa nova forma de privacidade, na qual
surge a figura do gestor, controlado por regras estritas e murado por
sólidas estruturas de exclusão, produz monstros de vários tipos: os
“funcionários invisíveis” (usando entradas e saídas especiais), as
“mulheres Frankenstein” (que trocaram sua elasticidade pelo desejo
infinito de adequação), “as crianças zumbis” (administradas à base de
Ritalina), os “trabalhadores monossintomáticos” (que operam 24 horas por
dia), as “maternidades vampiras” (que se apossam dos destinos de seus
filhos) e, é claro, os “Caution Shreks”, que somos todos nós excluídos
do lado de cá dos muros (lembrando que Caution é o detetive que
investiga a desaparição dos sentimentos dentro do condomínio de
Alphaville).
CE: Esse fenômeno difere de país para país? A chamada ascensão da classe C no Brasil pode ser enquadrada nele?
CD: A ascensão da classe C, a saída de muitas pessoas
do estado de miséria e fome para o estado de consumidores em potencial, a
expansão de certas formas de consumo de luxo, associada à classe média
alta, intensificam um problema que dá origem ao sintoma do condomínio,
ou seja: a legitimidade e pertinência do reconhecimento social. Essa
satisfação suplementar está baseada em dois fatores: o sentimento de
exclusividade e, portanto, de exclusão de outras pessoas, em relação à
experiência de consumo. Quando há muita mobilidade social, como é o caso
do Brasil dos últimos tempos, os signos e padrões de consumo perdem sua
função de diferenciação para o desejo, acentuando sua função de demanda
e de gozo. Quando todos começam a andar de avião, a possuir carros e a
se vestir de forma mimeticamente luxuosa, as classes que antes se
asseguravam de sua condição por meio de tais signos sentem que sua
identificação foi parasitada, sentem que há uma degradação de seus
signos de gozo. Surge o ressentimento e o ódio, surge o apelo a formas
ainda mais exclusivas de viver a vida, sendo o condomínio o símbolo
maior dessa exclusividade.
CE: No Brasil, o senhor lembra, as “políticas públicas
baseiam-se cada vez mais em diagnósticos”. Quais exemplos poderíamos dar
disso?
CD: Durante os anos 1990, por exemplo, o Brasil
acolheu o diagnóstico de que sua população universitária era muito
pequena. O mesmo diagnóstico apontava uma necessidade de ampliar cursos
universitários e a pesquisa no País, o que não poderia ser feito apenas
com recursos públicos. Tendo por modelo as universidades públicas, que
tinham bom desempenho, mas atendiam a uma parcela pequena da população,
começou então um esforço para a ampliação e qualificação do sistema de
pós-graduação e o aumento de doutores. O sistema gerava mais e mais
diagnósticos, o que levou à implantação de sistemas de avaliação de
alunos, de instituições, com números mínimos de doutores por
universidade, de pós-graduações bem como a valorização da produção
científica, aferida pelo então nascente Currículo Lattes. Ora, depois de
formados os condomínios universitários o que aconteceu? Os verdadeiros
gestores do sistema passaram a publicar apenas para marcar pontos no
Lattes, reduzindo a qualidade ao preço da quantidade, poluindo as
revistas científicas com um lixo industrial acadêmico que prejudica a
todos. Os síndicos geraram regras tão complexas que ninguém consegue
mais levar em conta o que acontece nas salas de aula. O pior dos mundos
com o melhor dos diagnósticos.
CE: De que maneira “a vida em condomínio” impacta a Educação Infantil?
CD: Na Educação Infantil o impacto da autossegregação é
ainda maior. Isso ocorre porque a ambiguidade que constitui esse espaço
pedagógico, entre cuidar e educar, convida à aplicação massiva do
princípio securitário e da moral da segurança. Tem-se, por exemplo, a
proliferação de pré-escolas bilíngues, que atraem pais que não falam
outra língua e famílias culturalmente estranhas à língua; ou a adoção de
câmeras de vigilância dentro de salas de aula, exatamente como em
elevadores e áreas comuns de condomínios. Esse estado de exceção dentro
da exceção tem produzido uma rápida judicialização e uma grande
psicopatologização da primeira infância. Sabemos que a relação de
extensão narcísica que existe entre a mãe e seus filhos, ou entre a
família e suas crianças, deve passar por uma espécie de mutação da lei
simbólica, importante para o processo de socialização do sujeito. Ele
deve entender que a lei que se encontra em uma escola é pública e
impessoal, condição para que cada qual lute por sua autonomia e para
reduzir sua dependência. A lei da família, é, ao contrário, pessoal e
caprichosa. As novas pré-escolas, criadas ao gosto do consumidor, não
conseguem favorecer esta mutação. Nelas, tudo se passa como se
estivéssemos em um parque de diversões ampliado, com a sucessiva
transferência de expectativas. Ou seja, os pais transferem para a escola
o mandato de educar seus filhos, por um lado, e por outro demandam que
esses sejam tratados segundo leis de exceção e particularidade.
Exatamente a forma de relação entre o público e o privado que
encontramos na vida em forma de condomínio.
CE: Como a condominização se expressa no Ensino Fundamental?
CD: Quando o assunto é o Ensino Primário ou o
Fundamental I, a condominização caminha por dois sentidos opostos. Pelo
primeiro suspendemos os critérios de formação de professores, vetamos o
acesso de gente qualificada à docência e impedimos que salários
diferenciados sejam pagos a professores com formações diferenciadas.
Essa isonomia artificial cria uma espécie de reserva de mercado, que
será então instrumentalizada pela escola pública para produzir números à
base de “aparências” (como na aprovação compulsória) e pela escola
privada para produzir crianças “felizes e funcionais” (e seu óbvio
efeito de bullying para com as diferenças).
CE: O que seria o “novo espírito do capitalismo”, segundo o livro, que nos impede de reconhecer a aspiração de liberdade?
CD: É antes de tudo um espírito: um sistema de crenças
que nos provê do sentimento de mundo como uma unidade. No momento em
que esse nos faz acreditar que todo o sucesso depende de nós, de nossas
habilidades, de nossas potencialidades, de nosso poder de superação, de
nossa combatividade, ele nos diz que quando fracassamos tudo depende de
nós.
CE: O crescente uso de substâncias por estudantes, em especial
os universitários, em épocas de provas é consequência desse espírito?
Afinal, por que “não podemos falhar”?
CD: Não podemos falhar porque não podemos mais
aprender com erros, não há tempo para isso. O espírito neoliberal se
caracteriza pela redução metódica do peso dado aos meios e aos processos
e um incremento da importância conferida aos fins e ao produto. Se o
que importa, desde os pais até o Ministério da Educação e os organismos
internacionais, são resultados, o uso de meios como a dopagem, o
professor particular crônico, o apostilamento, os cursinhos
preparatórios, a compra de vagas, tudo isso começa a se tornar apenas
uma questão de grau onde vamos colocar um limite artificial. É por isso
que nossos sistemas estatais de controle de qualidade de cursos, de
evolução oferecida pelo curso, de ranqueamento são um óbvio estímulo à
corrupção. Uma escola que, dentro da lei, escolhe, seleciona ou segrega
os melhores alunos para o Enem, obtendo assim resultados que podem ser
usados como propaganda, está obviamente realizando o que eu chamo de
“corrupção dentro da lei”. Ao final não podemos falhar porque isso será
interpretado como índice de que você não entendeu como o sistema
funciona, que ele não funciona sem falhas, mas pela moral do
encobrimento máximo delas.
CE: Como as escolas e universidades poderiam relativizar essa
ideia de meritocracia e de sucesso, que parece depender exclusivamente
de nós?
CD: O mérito e a construção de diferenças não é um mau
critério, mas ele deve estar baseado na premissa de que todos
deveríamos possuir oportunidades iguais, de saída. Ora, como essa
condição ainda está muito longe de ser alcançada no Brasil, é importante
relativizar o sucesso e o mérito obtidos em meio a terríveis
desigualdades de início. Importa modificar as condições iniciais. Isso
só pode ser feito com uma redistribuição dos recursos que temos.
CE: O senhor lembra que para Georg Wilhelm Friedrich Hegel e
Philippe Pinel a “alienação da razão era condição necessária (...) para a
experiência da liberdade”. O sofrimento é, então, importante para a
mobilização?
CD: Sim, as grandes transformações políticas sempre
foram uma redefinição da linha que separa o sofrimento que deve ser
aceito e tolerado, do sofrimento que deve ser alterado, quer pela
transformação de si, quer pela transformação do mundo. Não é uma
coincidência que as populações resignadas diante do sofrimento sejam
também as menos engajadas politicamente. Tanto o movimento feminista,
como o movimento em favor da valorização da negritude ou
anticolonização, começam por despertar as pessoas para essa verdade
invisível: “você está sofrendo, você está sendo oprimido, e nem se dá
conta disso”. Por outro lado, neutralizações e bloqueios de mudanças
sociais se fazem acompanhar de narrativas que dizem: “o sofrimento é
incontornável, aceite o mundo como ele é, o sofrimento é uma
predestinação”. O sofrimento por si só não muda nem melhora ninguém. O
mais provável é que sua acumulação nos torne piores. Contudo, é pela via
das novas formas de sofrer que aspirações de liberdade são inventadas.
Nossos sintomas são tão sociais quanto individuais, e tento mostrar isso
pela análise de um que é obviamente social: a vida em forma de
condomínio.
Publicado na edição 96, de maio de 2015
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