PICICA: "Em tese de doutorado, pesquisador
Rafael Dias discute as dores e as delícias do cuidado de si e os dilemas
da Redução de Danos em tempos de guerra às drogas"
Dilemas da Redução de Danos
10/11/2014
Em tese de doutorado, pesquisador
Rafael Dias discute as dores e as delícias do cuidado de si e os dilemas
da Redução de Danos em tempos de guerra às drogas
Por Júlio Delmanto
Nascido em Salvador, Rafael Dias
começou a se interessar pela Redução de Danos quando fazia faculdade de
Psicologia e se aproximou dos debates sobre a luta antimanicomial. Ainda
como estudante, fez um estágio na Aliança de Redução de Danos – Fátima
Cavalcanti (ARD-FC), um serviço de extensão permanente da Faculdade de
Medicina da Universidade Federal da Bahia que, em suas palavras, o
“marcou profundamente” e o motivou a continuar a pesquisar a história da
Redução de Danos no Brasil e as relações dessa prática com os
movimentos sociais e culturais.
Dessa caminhada nasceu sua tese de
doutorado em Psicologia, defendida em 2013 na Universidade Federal
Fluminense (UFF), de Niterói, e intitulada “Experimentação e cuidado: um
campo problemático das drogas e a emergência da Redução de Danos no
Brasil” (Baixe aqui).
O trabalho, que se utiliza da atuação prática de Dias e seus colegas
redutores de danos e também recorre a filmes para sustentar as análises,
trata sobre a ética do cuidado e do conhecimento de si como práticas e
abordagens contraculturais, e foi sobre ele que conversamos nessa
entrevista exclusiva ao site do É de Lei.
É de Lei - Pelo que pude sacar da sua tese, Redução de Danos (RD) pra você é algo como experiência + experimentação + prudência, é por aí?
Rafael Dias -
A RD aparece no Brasil na década de 90, num momento de intensificação
da “guerra às drogas”. Dessa forma, a RD surge como uma prática que
rompe com o discurso dominante que é regido pelo paradigma da
abstinência e também o paradigma bélico no tratamento das questões que
envolvem drogas. Nesse sentido, a RD vai enfrentar o discurso
moralizante que era hegemônico inclusive nas políticas de saúde voltadas
para o enfrentamento da DST/aids. Reparei que desde o início, como na
experiência da prefeitura de Santos em 1991, a RD surge em meio da
experimentação de políticas públicas no campo da saúde e questionamento
da violência institucional que se reproduzem nas práticas da saúde
mental e na política de drogas. A RD vai estar interessada na
experiência concreta das pessoas que fazem uso de drogas para construir
com elas práticas de cuidado que não sejam guiadas por uma moral
transcendente, mas que comportem uma dimensão de experimentação e
prudência, um questionamento ético sobre o cuidado proposto.
Por isso, considero que a importância
da RD é também questionar a idéia de gestão dos riscos que se fazem
presentes nas práticas de prevenção em saúde e construir uma intervenção
na política sobre drogas a partir do ponto de vista daqueles
considerados “marginais” (profissionais do sexo, usuários de drogas,
travestis). Esses atores com a sua experiência e saberes fazem a RD ser
efetiva e consistente como estratégia de cuidado. Considero que a
experimentação como método requer o exercício da prudência.
É de Lei - Sei
que é difícil, e talvez problemático, fazer essa separação, mas é mais
para fins de entrevistação que vou separar teoria e prática, e começar
perguntando sobre a primeira. Você usa muito autores como Foucault,
Deleuze, Guattari, Nietzsche, como esses autores te ajudam a pensar a
redução de danos e a equação acima?
Rafael Dias -
Esses autores fazem parte da minha aliança entre pensamento e prática.
Uso eles com prudência de acordo com o que diz Foucault que os conceitos
podem servir como ferramentas para alguma situação concreta, alguma
luta específica. Por isso, me servi dos conceitos de Nietzsche e
Foucault para entender a história da RD como o resultado de práticas
sociais num campo de forças sempre em tensão e não como um objeto
a-histórico. Foucault vai falar também das práticas éticas em relação
aos prazeres ao longo da história e isso me ajudou a pensar a proposta
da RD em relação às drogas como um questionamento no campo da ética.
Deleuze e Guattari também seguem esse caminho ao pensar o corpo não
pelos parâmetros biomédicos como mero organismo, mas como algo que é
produzido continuamente numa relação entre experimentação e prudência.
Portanto, quis ampliar o debate das drogas para além do enquadre médico
ou do campo da saúde e nisso esses autores também me ajudaram. Para
Deleuze as drogas são, sobretudo, algo que pode ser pesquisado através
da via da percepção e da criação e não, como se costuma fazer ainda nos
dias de hoje, através da relação entre drogas, dependência e fracasso.
Podemos ampliar a discussão e pensar as drogas mais próximas da
experimentação artística como fizeram Artaud, Michaux e Burroughs, ao
pesquisar os estados alterados da consciência e a percepção, do que ver
essa questão por um viés médico estrito senso.
É de Lei- Mas,
evidentemente, a RD é uma questão prática, de ética de vida e cuidado.
Que experiências práticas você se envolveu e ou destacaria que balizam
seu entendimento de RD, a sua teoria?
Rafael Dias - Na
minha prática destacaria que a RD está conectada com as pessoas a quem
se direciona o cuidado de tal maneira que a RD vai criar um ambiente de
cuidado ampliado que envolve o próprio cuidador e a cidade no seu campo
de intervenções e experimentações. Produzir um espaço de mediação entre
os atores que fazem parte do campo problemático das drogas (sistema de
justiça criminal, serviços de saúde, assistência social, etc.) e com
eles manejar situações que são problemáticas do ponto de vista clínico e
político. Considero que a RD vai propor um olhar de dentro da
experiência com as drogas que vai transformar o modo como percebemos as
drogas e as pessoas que fazem uso dessas substâncias.
Historicamente os usuários de drogas
tornadas ilícitas são considerados marginais, violentos e na melhor das
hipóteses doentes que precisam de tratamento médico e psicológico.
Portanto, a RD como prática está preocupada em criar uma linha de
cuidado em contraste com as práticas autoritárias e militarizadas de
encarceramento e internação em massa advindas da lógica da guerra às
drogas. Nesse sentido, a RD vai apostar no compartilhamento da
experiência e nas estratégias de diálogo e contato direto para criar uma
relação pautada pela defesa e garantia dos direitos humanos. Para
construir essa linha de cuidado não há receita pronta, por isso que a
experimentação aposta em um caminho que é feito ao caminhar. Diria
também que a utilização do diário de campo para registrar a experiência
do redutor de danos permite ver como o cuidado ligado à RD aborda e
descreve as questões sociais, culturais e políticas que estão envolvidas
na questão do crack, por exemplo. Isso permite ver o usuário de crack
como um cidadão que tem constantemente seus direitos negados e enfrenta
graves situações violência do Estado, ou seja, aborda a questão para
além da droga e os danos à saúde, mas os danos sociais produzidos também
pela lógica proibicionista.
É de Lei - O
que a RD tem de contracultural na sua opinião? Qual a conexão dela com
esse movimento, esse termo amplo que remete a um dado contexto dos anos
1960 e sobretudo 1970 mas que também tem um sentido mais amplo?
Rafael Dias - No Brasil, diferente de outros países, a RD
não surge como uma demanda de cuidado dos próprios usuários de drogas
como aconteceu na Holanda com a experiência do Junkiebond, mas vem na
trilha do movimento da reforma sanitária. No entanto, a experiência da
juventude brasileira na década de 60/70 com as drogas e a internação em
instituições psiquiátricas permitiu relatar os horrores vividos nesses
espaços. O livro do Austregésilo [Carrano Bueno], O Canto dos Malditos,
que serviu de base para o filme Bicho de Sete Cabeças, é um exemplo
disso. Daí também a relação entre luta antimanicomial e a luta
antiproibicionista que vai surgir com força no momento atual. Acho que
essas lutas estão completamente entrelaçadas e não pode ser pensadas
separadamente. Os ditos loucos e os “muito loucos”, como os
participantes da contracultura se autodenominavam, dividiam a mesma
enfermaria das instituições psiquiátricas durante o período da ditadura
militar. A RD vai surgir no Brasil na década de 90 como uma prática
underground ou semi-clandestina, nesse sentido tem alguma similaridade
com o movimento hippie que aparece no Brasil na década de 70, mas não
acho que seja uma relação direta entre as duas experiências e sim que
existe um método que as une e que aposta na experimentação e aborda a
questão das drogas por uma perspectiva não-careta da experiência humana.
É de Lei - Na
sua tese você recorre a três filmes para pensar a questão das drogas e
suas múltiplas abordagens possíveis, o que é um dos achados do texto,
inclusive. Entre o filme Meteorango Kid, feito no fim dos 1960, e o
Louco por cinema, dos 1990, você destaca uma determinada mudança no
discurso sobre drogas, olhado a partir dessas obras, a que culmina na
frustração da geração hippie com a cooptação de seus sonhos. Do Louco
por cinema pro Tropa de Elite, a outra obra avaliada, há a entrada em
cena da militarização, do discurso de responsabilização do usuário pela
violência urbana. Você acha que nosso momento atual ainda é esse do
Tropa de Elite ou com o avanço do debate antiproibicionista já
poderíamos pensar na chegada próxima de um momento em que esse discurso
Capitão Nascimento esteja se tornando, já hoje em dia, mais difícil de
sustentar?
Cena do filme "Meteorango Kid - O Herói Intergalático" (1969), de André Luiz Oliveira
Cena do filme "Meteorango Kid - O Herói Intergalático" (1969), de André Luiz Oliveira
Rafael Dias -
Está cada vez mais difícil de sustentar esse discurso no espaço público
sem que se levantem críticas a ele. Acho que passamos da fase em que
esse discurso era triunfante e o medo, diria até mesmo pânico, que ele
gerava impedia qualquer tipo de critica. Fora isso, acho que ainda
estamos dentro do cenário descrito no filme Tropa de Elite e os
movimentos sociais têm tentado de alguma maneira desmontar esse modelo
que é o da militarização, culpabilização, encarceramento e extermínio. A
pauta da desmilitarização não só da segurança pública, mas da vida como
um todo que surgiu nas últimas manifestações é importantíssima para
questionar esse modelo que reproduz violência e racismo institucional.
Nesse sentido, a RD e o movimento antiproibicionista apontam um caminho
promissor de questionar a partilha moral entre as drogas lícitas e as
ilícitas. O próprio Capitão Nascimento se entope de drogas controladas
para a síndrome do pânico, mas o problema para ele está na maconha.
É de Lei - Nesse contexto “tropadeelitiano”, de guerra, quais os limites concretos que a guerra traz para uma verdadeira redução de danos?
Rafael Dias -
A guerra às drogas cria um campo minado para as práticas de cuidado.
Quando se trata essa questão pela ótica da segurança você enfraquece a
abordagem da saúde pública. Os redutores de danos o tempo inteiro vão
ter que driblar os problemas decorrentes dessa política hegemônica que
irá criar a idéia do inimigo interno. Antes esses inimigos eram os
subversivos (grupos de esquerda, movimentos contraculturais, etc.) hoje
são os traficantes de drogas, jovens moradores de favelas, usuários de
crack ou qualquer outro que será selecionado como perigoso. O avanço da
prática do recolhimento forçado nas cidades brasileiras é também uma
expressão da guerra às drogas, todos os discursos autoritários e que
disseminam o pânico são um modo de enfraquecer outras abordagens sobre
as drogas que não sejam aquelas baseadas no controle.
É de Lei - Pelo
que vi da tese, você é uma pessoa que gosta bastante de cinema, de
cultura. Qual papel que a produção cultural pode exercer no estímulo de
uma outra mentalidade para o trato social das drogas?
Rafael Dias -
Concordo com Foucault quando ele diz que não se pode uma postura de ser
contra ou a favor das drogas, pois elas fazem parte da nossa cultura.
Da mesma forma que não se pode ser contra ou a favor do cinema ou da
música. Não faz nenhum sentido alguém dizer que é contra a internet, por
exemplo. Imagine uma campanha “As drogas existem e são parte da
cultura”. Temos que aprender a lidar com elas. Para mim a melhor forma
de lidar com elas é multiplicar as perspectivas de análise e pegar
diferentes modos de discutir as drogas com o auxílio do cinema, da
música, da literatura. As drogas não são objeto exclusivo para
especialistas, sejam médicos, psicólogos ou juristas.
É de Lei - É possível na
sua opinião pensar numa redução de danos que não seja
antiproibicionista? Pergunto isso no sentido de reduzir os danos para
além do autoconhecimento e dos efeitos individuais do uso ou do abuso de
determinadas substâncias, mas nos danos que estas substâncias produzem
no âmbito social, por serem proibidas.
Rafael Dias -
Considero que a RD criou as condições de possibilidade para que o
antiproibicionismo aparecesse com tanta força e contundência no cenário
atual. Por isso, acho que a RD a o antiproibicionismo têm muitas
afinidades e são de alguma forma complementares. É necessário pensar em
todas práticas de extermínio e encarceramento que têm a proibição como
base de fundamentação para ver que esse modelo não faz nenhum sentido e
cria mais problemas do que aqueles que julga combater.
É de Lei - O
Coletivo DAR entrevistou há um tempo atrás um casal que você conhece
bem, Dênis Petuco e Flávia Fernando, figuras importantes aí nesse campo
RD-antiproibicionista-antimanicomial. Eles discutiram um pouco a redução
de danos como uma prática potencialmente libertária, mostrando como a
RD muitas vezes está numa fronteira tensa entre a autonomia e o
controle, entre a autogestão e a relação com o Estado, etc. O que na sua
opinião é importante para fazer a balança pender para o lado da
autonomia, o nosso lado da RD?
Rafael Dias - Concordo
que a RD está num campo de tensões e de disputa. Algumas abordagens
querem domesticar a RD no que ela tem de mais potente que é o
questionamento constante da prática, uma práxis que defende uma ética de
cuidado. Por isso, defendo que essa prática é mais do que uma técnica a
ser aplicada e pode ser um modo de problematizar o modo medicalizador e
moralizante como encaramos as drogas no contemporâneo. Para pensar a RD
como uma prática potencialmente libertária temos que fazer aliança
entre os movimentos da luta antimanicomial, antiproibicionista, mas
também dos grupos que lutam contra a violência policial, o racismo e
outras formas de opressão. A aliança entre os movimentos sociais e
culturais é que permitirá a produção de uma RD que esteja ao lado das
resistências diante dos modos de controle da vida.
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