maio 05, 2015

"Fundamentos contigentes: o feminismo e a questão do "pós-modernismo". Por Judith Butler. (Territórios de Filosofia)

PICICA: "A questão do pós-modernismo é certamente uma questão, pois existe, afinal, algo chamado pós-modernismo? É ele uma caracterização histórica, um certo tipo de posição teórica, e o que significa para um termo que descreveu certa prática estética ser agora aplicado à teoria social e, em particular, à teoria social e política feminista? Quem são esses pós- modernistas? Trata-se de um nome que se assume ou é, com mais freqüência, um nome pelo qual se é chamado se e quando se apresenta uma crítica do sujeito, uma análise discursiva, ou se questiona a integridade ou coerência de descrições sociais totalizantes?" 

FUNDAMENTOS CONTINGENTES: O FEMINISMO E A QUESTÃO DO SMODERNISMO.


Judith Butler.*
A questão do pós-modernismo é certamente uma questão, pois existe, afinal, algo chamado pós-modernismo? É ele uma caracterização histórica, um certo tipo de posição teórica, e o que significa para um termo que descreveu certa prática estética ser agora aplicado à teoria social e, em particular, à teoria social e política feminista? Quem são esses pós- modernistas? Trata-se de um nome que se assume ou é, com mais freqüência, um nome pelo qual se é chamado se e quando se apresenta uma crítica do sujeito, uma análise discursiva, ou se questiona a integridade ou coerência de descrições sociais totalizantes?

Eu conheço o termo da maneira como é usado e ele aparece geralmente em meu horizonte embutido nas seguintes formulações críticas: “se tudo que existe é o discurso…”, ou “se tudo é um texto…”, ou “se o sujeito está morto…”, ou “se verdadeiros corpos não existem…”. A frase começa com uma advertência contra um niilismo iminente, pois se o conteúdo invocado dessa série de cláusulas condicionais mostrar-se verdadeiro, então, e há sempre um então, se seguirá certamente algum conjunto de conseqüências desastrosas. Assim, o “pós-modernismo” parece estar articulado na forma de um temível condicional ou, às vezes, na forma de desdém paternalista pelo que é jovem e irracional. Contra esse pós-modernismo, há um esforço para escorar as premissas primárias, de estabelecer de antemão que qualquer teoria da política requer um sujeito, precisa desde o início presumir seu sujeito, da referencialidade da linguagem, da integridade das descrições institucionais que proporciona, pois a política é impensável sem um fundamento, sem essas premissas. Mas essas afirmações buscam garantir uma formação contingente de política que exige que essas noções permaneçam como traços não problematizados de sua própria definição? Seria o caso de que toda política, e a política feminista em particular, é impensável sem essas estimadas premissas? Ou será que uma versão específica de política é mostrada em sua contingência depois que essas premissas são problematicamente tematizadas?

Afirmar que a política exige um sujeito estável é afirmar que não pode haver oposição política a essa afirmação. Com efeito, essa afirmação implica que uma crítica do sujeito não pode ser uma crítica politicamente informada, mas antes, um ato que põe em xeque a política enquanto tal. Exigir o sujeito significa tomar de volta o domínio do político e essa espécie de execução judicial, instalada analiticamente como uma característica essencial do político, impõe as fronteiras do domínio do político de tal forma que essa imposição fica protegida do exame político. O ato que estabelece unilateralmente o domínio do político funciona então como um estratagema autoritário pelo qual se silencia sumariamente a contestação política do estatuto do sujeito. [1]

Recusar-se a pressupor, isto é, a exigir a noção do sujeito desde o início, não é o mesmo que negar ou dispensar essa noção totalmente; ao contrário, é perguntar por seu processo de construção e pelo significado político e pelas conseqüências de tomar o sujeito como um requisito ou pressuposição da teoria. Mas já chegamos nós a uma noção de pós-modernismo?

Várias posições são atribuídas ao pós-modernismo, como se fosse o tipo de coisa que pudesse ser portadora de um conjunto de posições: o discurso é tudo que existe, como se o discurso fosse uma espécie de matéria monística da qual todas as coisas são compostas; o sujeito está morto, jamais poderei dizer “eu” de novo; não há realidade, somente representações. Essas caracterizações são variadamente imputadas ao pós-modernismo e ao pós-estruturalismo, que são combinados um com o outro, fundidos às vezes com a desconstrução e, outras vezes, compreendidos como uma reunião indiscriminada de feminismo francês,     desconstrução,     psicanálise     lacaniana,     análise     foucaultiana, conservadorismo e estudos culturais de Rorty. Deste lado do Atlântico e no discurso recente, os termos “pós-modernismo” ou “pós-estruturalismo” resolvem as diferenças entre aquelas posições numa única tacada, proporcionando um substantivo, um nome, que inclui aquelas posições e muitas de suas modalidades ou permutações. Pode ser uma surpresa para alguns fornecedores da cena européia continental ficar sabendo que na França, a psicanálise lacaniana se posiciona oficialmente contra o pós-estruturalismo, que Kristeva denuncia o pós-modernismo [2], que os foucaultianos raramente se relacionam   com   os   derrideanos,   que   Cixous   e   Irigaray   opõem-se fundamentalmente, embora encontre-se uma certa afinidade nas práticas textuais de Derrida e Irigaray. Biddy Martin tem razão também ao apontar que quase todo o feminismo francês adere a uma noção de alto modernismo e avant-garde, que levanta alguma questão sobre se essas teorias ou escritos podem ser agrupados simplesmente sob a categoria de pós-modernismo.
Proponho que a questão do pós-modernismo seja lida não apenas como a questão que o pós-modernismo coloca para o feminismo, mas como a questão, o que é pós-modernismo? Que tipo existência ele tem? Jean-François Lyotard defende o termo, mas ele não pode ser visto como exemplo daquilo que está fazendo todo o resto dos que passam por pós-modernistas. [3] A obra de Lyotard está, por exemplo, em conflito com a de Derrida, que não sustenta a noção do “pós-moderno”, e com a de outros autores dos quais querem que ele seja representante. É ele paradigmático? Têm todas essas teorias a mesma estrutura (uma noção confortadora para o crítico que quer dispensá-las todas de uma vez)? O esforço para colonizar e domesticar essas teorias sob uma única rubrica é uma simples recusa de conceder a especificidade dessas posições, uma desculpa para não ler, e não ler atentamente? Pois se Lyotard utiliza o termo, se ele pode ser convenientemente agrupado com um conjunto de escritores e se alguma citação problemática pode ser encontrada em sua obra, então essa citação serve como um “exemplo” de pós-modernismo, sintomático do todo?
Mas se entendo parte do projeto do pós-modernismo, deve-se pôr em questão as maneiras pelas quais esses “exemplos” e “paradigmas” servem para subordinar e apagar aquilo que eles buscam explicar. O “todo”, o campo do pós-modernismo em sua suposta amplitude, é efetivamente “produzido” pelo exemplo que fazem passar por sintoma e exemplar do todo; com efeito, se pensamos que no exemplo de Lyotard temos uma representação do pós- modernismo, então forçamos uma substituição de todo o campo pelo exemplo, efetuando uma redução violenta do campo a um pedaço de texto que o crítico está disposto a ler, um pedaço que, convenientemente, usa o termo “pós-moderno”.

Num certo sentido, esse gesto de domínio conceitual que agrupa uma série de posições sob o pós-moderno, que faz do pós-moderno um marco ou um todo sintético e que afirma que a parte pode representar esse todo artificialmente construído, realiza um certo ardil de poder auto- congratulatório. Na melhor das hipóteses, é paradoxal que o ato de domínio conceitual que efetua esse agrupamento descartante de posições sob o pós- moderno queira evitar o perigo do autoritarismo político. A suposição é a de que alguma parte do texto é representacional, que representa o fenômeno, e que a estrutura “dessas” posições pode ser devida e economicamente distinguida na estrutura do exemplo. O que autoriza essa suposição? Inicialmente, devemos acreditar que as teorias se oferecem em feixes ou em totalidades organizadas e que historicamente, um conjunto de teorias que são estruturalmente semelhantes surgem como a articulação de uma condição histórica específica da reflexão humana. Esse tropo hegeliano, que continua com Adorno, supõe que essas teorias podem ser substituídas umas pelas outras porque são sintomas variados de uma preocupação estrutural comum. Contudo, essa suposição não pode mais ser feita, pois o suposto hegeliano de que há uma síntese disponível desde o início é precisamente o que tem sido contestado de várias formas por algumas das posições alegremente unificadas sob o signo do pós-modernismo. Pode-se argumentar que se – e na medida em que – o pós-moderno funciona como esse signo unificador, então trata-se decididamente de um “signo” moderno, e é por isso que há dúvidas sobre se é possível debater a favor ou contra esse pós-modernismo. Instalar o termo de tal forma que só possa ser afirmado ou negado é forçá-lo a ocupar uma posição dentro de um binário e assim afirmar uma lógica da não-contradição acima e contra um projeto mais generativo.

O motivo para essa unificação de posições talvez seja ocasionado pela própria indisciplina do campo, pelo modo em que as diferenças entre essas posições não podem ser convertidas em sintomáticas, exemplares ou representativas umas das outras e de alguma estrutura comum chamada pós- modernismo. Se o termo pós-modernismo tem alguma força ou significação na teoria social, e na teoria social feminista em particular, ela talvez possa ser encontrada no exercício crítico que busca mostrar como a teoria, como a filosofia, está sempre implicada no poder, e que talvez seja isso que sintomaticamente está em funcionamento no esforço para domesticar e recusar um conjunto de críticas fortes sob a rubrica de pós-modernismo. Não é nenhuma novidade que o aparato filosófico, em seus vários refinamentos conceituais, está sempre empenhado em exercer poder, mas de novo é preciso dizer que o pós-moderno não se confunde com o novo; afinal, a busca do “novo” é a preocupação do alto modernismo; quando mais não seja, o pós- moderno lança dúvidas sobre a possibilidade de um “novo” que não esteja de alguma forma já implicado no “velho”.

Mas o argumento articulado eficazmente por alguns críticos recentes da filosofia política normativa é que o recurso a uma posição – hipotética, contrafactual, ou imaginária – que se coloca acima do jogo do poder, e que busca estabelecer a base metafórica para uma negociação de relações de poder, é talvez a mais insidiosa artimanha do poder. O fato de que essa posição acima do poder reivindique sua legitimidade, recorrendo a um acordo anterior e implicitamente universal, não evita de forma alguma a acusação, pois que projeto racionalista designará de antemão o que conta como acordo? Que forma de imperialismo cultural insidioso legisla para si mesmo sob o signo do universal? [4]
Não sei em relação ao termo “pós-moderno”, mas se há um argumento válido naquilo que eu entendo melhor como pós-estruturalismo, é que o poder permeia o próprio aparato conceitual que busca negociar seus termos, inclusive a posição do sujeito do crítico; e mais, que essa implicação dos termos da crítica no campo do poder o é o advento de um relativismo niilista incapaz de oferecer normas, mas ao contrário, a própria pré-condição de uma crítica politicamente engajada. Estabelecer um conjunto de normas que estão acima do poder ou da força é em si mesmo uma prática conceitual poderosa e forte que sublima, disfarça e amplia seu próprio jogo de poder, recorrendo a tropos de universalidade normativa. E a questão não é acabar com seus fundamentos, ou mesmo defender uma posição que se classifica como antifundamentalismo. Ambas as posições são versões diferentes de fundamentalismo e da problemática cética que engendram. Em vez disso, a tarefa é interrogar o que o movimento teórico que estabelece fundamentos autoriza e o que precisamente exclui ou priva de direitos.

Parece que a teoria postula fundamentos sem cessar e forma comumente compromissos metafísicos implícitos, mesmo quando busca se prevenir contra isso; os fundamentos funcionam como o inquestionado e o inquestionável em qualquer teoria. Todavia, esses “fundamentos”, isto é, as premissas que funcionam como base autorizante, não são eles mesmos constituídos mediante exclusões que, se levadas em conta, expõem a premissa fundamental como uma suposição contingente e contestável? Mesmo quando afirmamos que há alguma base universal implicada para um determinado fundamento, essa implicação e essa universalidade constituem simplesmente uma dimensão nova de inquestionabilidade.

Como poderemos fundamentar uma teoria ou política numa situação de discurso ou posição de sujeito que é “universal” quando a própria categoria do universal apenas começa a ser desmascarada por seu viés altamente etnocêntrico? Quantas “universalidades” existem [5] e em que medida o conflito cultural pode ser compreendido como o choque de um conjunto de “universalidades” presumidas e intransigentes, um conflito que não pode ser negociado recorrendo a uma noção culturalmente imperialista do “universal”, ou antes, que só se resolverá por esse recurso ao custo de violência? Acho que testemunhamos a violência conceitual e material dessa prática na guerra dos Estados Unidos contra o Iraque, na qual o “outro” árabe é entendido como estando radicalmente “fora” das estruturas universais da razão e da democracia e que, portanto, se exige que seja trazido para dentro pela força. Significativamente, os EUA tiveram de revogar os princípios democráticos da soberania política e da livre manifestação do pensamento, entre outros, para efetuar esse retorno forçado do Iraque ao campo “democrático”; esse gesto violento revela, entre outras coisas, que as noções de universalidade são instaladas mediante a anulação dos próprios princípios universais que deveriam ser implementados. Dentro do contexto político do pós-colonialismo contemporâneo, talvez seja especialmente urgente sublinhar a própria categoria do “universal” como o lugar de insistente disputa e re-significação. [6] Tendo em vista o caráter contestado do termo, supor desde o início uma noção instrumental ou substantiva do universal é impor uma noção culturalmente hegemônica sobre o campo social. Anunciar essa noção então como o instrumento filosófico que negociará entre conflitos de poder é exatamente proteger e reproduzir uma posição de poder hegemônico instalando-a no lugar metapolítico da máxima normatividade.

Pode parecer, a princípio, que estou simplesmente pedindo uma “universalidade” mais concreta e internamente diversificada, uma noção mais sintética e inclusiva do universal, e dessa forma, comprometida com a própria noção fundamental que procuro solapar. Mas creio que minha tarefa é significativamente diferente daquela que articularia uma universalidade abrangente. Em primeiro lugar, uma tal noção totalizadora só poderia ser alcançada ao custo de produzir novas exclusões. O termo “universalidade” teria de   ficar   permanentemente   aberto, permanentemente   contestado, permanentemente   contingente,   a   fim   de   não   impedir   de   antemão reivindicações futuras de inclusão. Com efeito, de minha posição e de qualquer perspectiva historicamente restringida, qualquer conceito totalizador do universal impedirá, em vez de autorizar, as reivindicações não antecipadas e inantecipáveis que serão feitas sob o signo do “universal”. Nesse sentido, não estou me desfazendo da categoria, mas tentando aliviá-la de seu peso fundamentalista, a fim de apresentá-la como um lugar de disputa política permanente.

Uma teoria social comprometida com a disputa democrática dentro de um horizonte pós-colonial precisa encontrar uma maneira de pôr em questão os fundamentos que é obrigada a estabelecer. É esse movimento de interrogar aquele estratagema de autoridade que busca se fechar à disputa que está, em minha visão, no âmago de qualquer projeto político radical. Na medida em que   oferece   um modo   de   crítica que   efetua   essa contestação,   o   pós-estruturalismo pode ser usado como parte dessa agenda radical. Observem que disse “pode ser usado”: penso que não há conseqüência política de uma tal teoria, mas apenas uma possível disposição de forças políticas.

Se um dos temas associados ao pós-modernismo é que o ponto de partida epistemológico na filosofia é inadequado, então não se trata de uma questão de sujeitos que afirmam conhecer e teorizar sob o signo do pós-moderno lançados contra outros sujeitos que sustentam conhecer e teorizar sob o signo do moderno. Com efeito, é essa maneira de enquadrar o debate que está sendo contestada pela sugestão de que a posição articulada pelo sujeito é sempre, de alguma forma, constituída pelo que deve ser deslocado para que aquela posição se sustente, e que o sujeito que teoriza é constituído como um “sujeito teorizante” por um conjunto de procedimentos exclusivos e seletivos. Pois, com efeito, quem é constituída como teórica feminista cujo enquadramento do debate ganhará publicidade? Não acontece sempre de o poder atuar de antemão, nos próprios procedimentos que estabelecem quem será o sujeito que fala em nome do feminismo, e a quem? E não está claro também que um processo de sujeição está pressuposto no processo de subjetivação que produz diante de você um sujeito falante do debate feminista? O que fala quando ‘eu” falo para você? Quais são as histórias institucionais de sujeição e subjetivação que me “posicionam” aqui agora? Se há algo chamado “posição de Butler”, será essa que crio, publico e defendo, que pertence a mim como uma espécie de propriedade acadêmica? Ou há uma gramática do sujeito que apenas nos estimula a me posicionar como proprietária dessas teorias?

Com efeito, como uma posição se torna uma posição, pois está claro que nem toda declaração se qualifica como tal. É obviamente uma questão de um certo poder autorizador que não emana da própria posição. Minha posição é minha na medida em que “eu” – e não me esquivo do pronome – repito e volto a dar significado às posições teóricas que me constituíram, trabalhando as possibilidades de sua convergência e tentando levar em conta as possibilidades que elas excluem sistematicamente. Mas claramente não é o caso de que “eu” esteja acima das posições que me constituíram, saltando de uma para outra instrumentalmente, pondo algumas de lado, incorporando outras, embora um pouco da minha atividade possa assumir essa forma. O “eu” que seleciona entre elas já está sempre constituído por elas. O “eu” é o ponto de transferência daquela repetição, mas simplesmente não é uma asserção forte o suficiente para dizer que o “eu” é situado; o “eu”, esse “eu”, é constituído por essas posições e essas “posições” não são meros produtos teóricos, mas princípios organizadores totalmente embutidos de práticas materiais e arranjos institucionais, aquelas matrizes de poder e discurso que me produzem como um “sujeito” viável. Com efeito, esse “eu” não seria um “eu” pensante e falante se não fosse pelas próprias posições a que me oponho, pois elas, as que sustentam que o sujeito deve ser dado de antemão, que o discurso é um instrumento ou reflexão desse sujeito, já fazem parte do que me constitui.

Nenhum sujeito é seu próprio ponto de partida; e a fantasia de que o seja só pode desconhecer sua relações constitutivas refundindo-as como o domínio de uma externalidade contrabalançadora. Com efeito, pode-se levar em conta a afirmação de Luce Irigaray de que o sujeito, entendido como uma fantasia de autogênese, é sempre já masculino. Do ponto de vista psicanalítico, essa versão do sujeito é constituída por meio de uma espécie de rejeição ou mediante a repressão primária de sua dependência do maternal. E tornar-se um sujeito com base nesse modelo não é, com certeza, um objetivo feminista.

A crítica do sujeito não é uma negação ou repúdio do sujeito, mas um modo de interrogar sua construção como premissa fundamentalista ou dada de antemão. No início da guerra contra o Iraque, quase todos vimos estrategistas que expunham diante de nós mapas do Oriente Médio, objetos de análise e alvos de ação militar instrumental. Generais reformados e da ativa foram chamados pelas redes de televisão para ocupar o lugar dos generais que estavam em campo, cujas intenções seriam invariavelmente realizadas com a destruição de várias bases militares do Iraque. As afirmações do sucesso inicial dessas operações foram feitas com grande entusiasmo e parecia que esse cumprimento do objetivo, essa realização de intenção aparentemente inconsútil, mediante uma ação instrumental sem muita resistência ou obstáculos, era uma ocasião não somente para destruir as instalações militares iraquianas, mas também para defender um sujeito ocidental masculinizado cuja vontade se traduz imediatamente em ato, cuja declaração de ordem se materializa em uma ação que destruiria a própria possibilidade de uma reação e cujo poder obliterador confirma ao mesmo tempo os contornos impenetráveis de sua própria condição de sujeito.

Nessa altura, talvez seja interessante lembrar que Foucault relacionava o deslocamento do sujeito intencional com as relações de poder modernas que ele mesmo associava com a guerra.7 O que ele queria dizer, penso eu, é que sujeitos que instituem ações são eles mesmos efeitos instituídos de ações anteriores, e que o horizonte em que agimos está aí como uma possibilidade constitutiva de nossa capacidade de agir, não mera ou exclusivamente como um campo exterior ou teatro de operações. Mas o que talvez seja mais significativo é que as ações instituídas via aquele sujeito fazem parte de uma cadeia de ações que não pode mais ser entendida como unilinear quanto à direção, ou previsível quanto aos resultados. Todavia, o sujeito militar instrumental aparece inicialmente para proferir palavras que se materializam diretamente em atos destrutivos. E ao longo da guerra, foi como se o sujeito ocidental masculino se apropriasse do poder divino de traduzir palavras em atos; os apresentadores das telenotícias estavam quase todos cheios de felicidade vertiginosa e leviana enquanto demonstravam, observavam, representavam de modo vicário a exatidão da destruição. Quando começou a guerra, a palavra que se ouvia na televisão era “euforia”, e um apresentador observou que as armas americanas eram instrumentos de “terrível beleza” (CBS); celebrou-se prematura e fantasmaticamente a capacidade própria de agir instrumentalmente no mundo para obliterar a oposição e controlar as conseqüências dessa obliteração.

Mas a presunção desse ato não pode ser prevista pelo ator instrumental que celebra na atualidade a efetividade de suas próprias intenções. O que Foucault propôs é que esse sujeito é ele mesmo o efeito de uma genealogia que é apagada no momento em que o sujeito se toma como única origem de sua ação, e que o efeito de uma ação sempre suplanta a intenção ou propósito declarado do ato. De fato, os efeitos da ação instrumental têm sempre o poder de proliferar para além do controle do sujeito, para desafiar a transparência racional da intencionalidade desse sujeito, e assim subverter a definição do próprio sujeito. Sugiro que estivemos no meio de uma celebração por parte do governo dos Estados Unidos e de alguns de seus aliados do sujeito fantasmático, aquele que determina seu mundo unilateralmente e que é, em alguma medida, tipificado pelas cabeças de generais reformados agigantando-se diante do mapa do Oriente Médio, onde a cabeça falante desse sujeito é mostrada como tendo o mesmo tamanho, ou sendo maior do que a área que busca dominar. Em certo sentido, isso é a representação gráfica do sujeito imperialista, uma alegoria visual da própria ação.

Mas aqui você pensa que fiz uma distinção entre a ação em si mesmo e algo como uma representação, mas quero ir adiante em meu argumento. Você terá provavelmente notado que Colin Powell, o general do Estado Maior, invocou o que é, acredito, uma nova convenção militar ao chamar o envio de mísseis de “the delivery of an ordnance” [a distribuição de uma artilharia]. A expressão é significativa, penso eu: ela representa um ato de violência como um ato de lei (o termo militar ordnance está ligado etimologicamente ao jurídico ordinance – ordem, regulamento), dando à destruição a aparência de ordenação; mas além disso, representa o míssil como uma espécie de comando, uma ordem a obedecer, e assim representava-se a si mesma como um certo ato de discurso que não só distribui uma mensagem – caia fora do Kuwait – como também reforça essa mensagem com a ameaça de morte e com a própria morte. Evidentemente, trata-se de uma mensagem que jamais pode ser recebida, pois mata o destinatário, e portanto, não é de forma alguma uma ordem, mas o fracasso de todas as ordens, a recusa da comunicação. E aqueles que sobram para ler a mensagem não lerão o que às vezes está literalmente escrito no míssil.

Ao longo da guerra, testemunhamos e participamos da fusão da tela da tevê com as lentes do piloto de bombardeio. Nesse sentido, o registro visual dessa guerra não é uma reflexão sobre a guerra, mas a realização de sua estrutura fantasmática, parte dos próprios meios pelos quais ela é socialmente constituída e mantida como guerra. A assim chamada smart bomb grava seu alvo enquanto avança para destruí-lo – uma bomba com uma câmara fotográfica na frente, uma espécie de falo óptico; ela envia o filme para um controle de comando e aquele filme é apresentado na televisão, constituindo efetivamente a tela da tevê e seu espectador no aparato ampliado da própria bomba. Nesse sentido, ao assistir, estamos bombardeando, identificados com ambos, bombardeiro e bomba, voando pelo espaço, transportados da América do Norte para o Iraque, e ao mesmo tempo protegidos no sofá da sala. A tela da smart bomb é, evidentemente, destruída no momento em que realiza sua destruição, o que significa dizer que se trata da gravação de um ato totalmente destruidor que jamais pode gravar essa destrutibilidade, que efetua a distinção fantasmática entre o impacto no alvo e suas conseqüências. Assim, na qualidade de espectadores, nós realmente convertemos em realidade a alegoria do triunfo militar: conservamos nossa distância visual e nossa segurança corporal por meio da decretação desencarnada da morte que não produz sangue e na qual conservamos nossa impermeabilidade radical. Nesse sentido, estamos em relação com esse lugar de destruição absolutamente próximo, absolutamente essencial e absolutamente distante, um emblema para o poder imperial que assume a visão aérea, global, o assassino desencarnado que nunca pode ser morto, o atirador de tocaia como um emblema do poder militar imperialista. A tela da tevê replica assim a visão aérea, garantindo uma fantasia de transcendência, de um instrumento desencarnado de destruição que está infinitamente protegido de um ataque do inimigo pela distância eletrônica.

Essa visão aérea jamais chega perto de ver os efeitos de sua destruição e quando um close-up do local vai ficando cada vez mais possível, a tela se auto- destrói convenientemente. E assim, embora fosse dado a entender que se tratava de um bombardeio humano, que tem por alvo prédios e instalações militares, tratava-se, ao contrário, do efeito de um enquadramento que excluía da visão a destruição sistemática de uma população, o que Foucault chama de sonho moderno dos estados. [8] Ou talvez devamos dizer de outra maneira: precisamente mediante a exclusão de seus alvos da visão, sob o pretexto de provar a capacidade de atingir com precisão o alvo, trata-se de um enquadramento que realiza efetivamente a aniquilação que ele sistematicamente desrealiza.

O semideus de um sujeito militar americano, que euforicamente realizou a fantasia de que pode atingir seus objetivos com facilidade, não entende que suas ações produziram efeitos que excederão em muito seu alcance fantasmático; ele pensa que seus objetivos foram alcançados em questão de semanas e que sua ação se completou. Mas a ação continua a agir depois que o sujeito intencional anunciou sua conclusão. Os efeitos de suas ações já inauguraram violência em lugares e de maneiras que ele não só não poderia prever, mas que será incapaz de, em última análise, deter, efeitos que produzirão uma contestação maciça e violenta da auto-construção fantasmática do sujeito ocidental.
Se posso então, tentarei retornar ao sujeito em discussão. Em certo sentido, o sujeito é constituído mediante uma exclusão e diferenciação, talvez uma repressão, que é posteriormente escondida, encoberta, pelo efeito da autonomia. Nesse sentido, a autonomia é a conseqüência lógica de uma dependência negada, o que significa dizer que o sujeito autônomo pode manter a ilusão de sua autonomia desde que encubra o rompimento que a constitui. Essa dependência e esse rompimento já são relações sociais, aquelas que precedem e condicionam a formação do sujeito. Em conseqüência, não se trata de uma relação em que o sujeito encontra a si mesmo, como uma das relações que formam sua situação. O sujeito é construído mediante atos de diferenciação que o distinguem de seu exterior constitutivo, um domínio de alteridade degradada associada convencionalmente ao feminino, mas não exclusivamente. Nessa guerra recente vimos “o árabe” representado como o outro degradado, bem como um lugar de fantasia homofóbica explicitado na abundância de piadas de mau gosto baseadas no trocadilho de Saddam por Sodoma.

Não há reflexividade ontologicamente inatata para o sujeito que é então colocado dentro de um contexto cultural; é como se esse contexto já estivesse aí como o processo desarticulado da produção desse sujeito, escondido pelo enquadramento que situaria um sujeito ready-made numa teia externa de relações culturais.

Podemos ser tentados a pensar que supor o sujeito de antemão é necessário a fim de proteger a capacidade de agir [9] do sujeito. Mas afirmar que o sujeito é constituído não é dizer que ele é determinado; ao contrário, o caráter constituído do sujeito é a própria pré-condição de sua capacidade de agir. Afinal, o que permite uma reconfiguração significativa e consciente das relações culturais e políticas senão uma relação que pode ser virada contra si mesma, retrabalhada, resistida? Será que precisamos pressupor teoricamente desde o início um sujeito com capacidade de agir antes que possamos articular os termos de uma tarefa significativa de transformação, social e política, de resistência, de democratização radical? Se não oferecemos de antemão a garantia teórica daquele agente, estamos condenados a desistir da transformação e da prática política significativas? Minha sugestão é que a capacidade de agir pertence a um modo de pensar sobre as pessoas como atores instrumentais que confrontam um campo político externo. Mas se concordarmos que política e poder já existem no nível em que o sujeito e sua capacidade de agir estão articulados e tornados possíveis, então a capacidade de agir pode ser presumida somente ao custo da recusa de inquirir sobre sua construção. Considere que a “capacidade de agir” não tem existência formal ou, se a tem, não tem relação com a questão em discussão. Em certo sentido, o modelo epistemológico que nos oferece um sujeito ou agente dado de antemão se recusa a reconhecer que a capacidade de agir é sempre e somente uma prerrogativa política. Enquanto tal, parece essencial questionar as condições de sua possibilidade, não a tomar por uma garantia a priori. Ao contrário, precisamos perguntar que possibilidades de mobilização são produzidas com base nas configurações existentes de discurso e poder. Onde estão as possibilidades de retrabalhar a matriz de poder pela qual somos constituídos, de reconstituir o legado daquela constituição, e de trabalhar um contra o outro os processos de regulação que podem desestabilizar regimes de poder existentes? Pois se o sujeito é constituído pelo poder, esse poder não cessa no momento em que o sujeito é constituído, pois esse sujeito nunca está plenamente constituído, mas é sujeitado e produzido continuamente. Esse sujeito não é base nem produto, mas a possibilidade permanente de um certo processo de re-significação, que é desviado e bloqueado mediante outro mecanismo de poder, mas que é a possibilidade de retrabalhar o poder. Não é suficiente dizer que o sujeito está invariavelmente engajado num campo político; este fraseado fenomenológico não percebe que o sujeito é uma realização regulada e produzida de antemão. E como tal, é totalmente político; com efeito, talvez mais político no ponto em que se alega ser anterior à própria política. Fazer esse tipo de crítica foucaultiana do sujeito não é acabar com o sujeito ou pronunciá-lo morto, mas apenas afirmar que certas versões do sujeito são politicamente insidiosas.
Para que o sujeito seja um ponto de partida prévio da política é necessário adiar a questão da construção e regulação política do próprio sujeito, pois é importante lembrar que os sujeitos se constituem mediante a exclusão, isto é, mediante a criação de um domínio de sujeitos desautorizados, pré-sujeitos, representações de degradação, populações apagadas da vista. Isso fica claro, por exemplo, na justiça, quando é preciso primeiro atender a certas qualificações a fim de ser uma demandante em casos de discriminação sexual ou estupro. Aqui torna-se bastante urgente perguntar quem se qualifica como um “quem”, que estruturas sistemáticas de privação de poder tornam impossível para certas partes injuriadas invocar o “eu” efetivamente dentro de uma corte de justiça. Ou menos abertamente, como acontece numa teoria social como a de O colonizador e o colonizado, de Albert Memmi, que é um forte chamamento à emancipação radical, a categoria das mulheres não se enquadra na categoria dos oprimidos, nem das opressores. [10] Como teorizamos a exclusão das mulheres da categoria dos oprimidos? Aqui, a construção de sujeitos-posições funciona para excluir as mulheres da descrição da opressão e isso constitui um tipo diferente de opressão, aquela que é efetuada pelo apagamento que fundamenta a articulação do sujeito emancipatório. Como Joan Scott deixa claro em Gender and the Politics of History, uma vez entendido que os sujeitos se formam mediante operações exclusivistas, torna-se politicamente necessário remontar às origens das operações dessa construção e apagamento. [11]

O dito acima esquematiza, em parte, uma reinscrição foucaultiana do sujeito, um esforço de re-significar o sujeito como um lugar de re-significação. Em conseqüência, não se trata de um dizer adeus ao sujeito de per si, mas antes um apelo a retrabalhar essa noção fora dos termos de um dado epistemológico. Mas talvez Foucault não seja realmente pós-moderno; afinal, a sua é uma análise do poder moderno. Existe, é claro, uma conversa sobre a morte do sujeito, mas qual sujeito? E qual o estatuto da declaração que anuncia seu passamento? O que fala agora que o sujeito está morto? Que há uma fala, parece claro, pois de que outro modo a declaração poderia ser ouvida? Assim, fica claro que a morte do sujeito não é o fim da capacidade de agir, do discurso, ou do debate político. Há o refrão que, justamente agora, quando as mulheres começam a assumir o lugar de sujeitos, as posições pós-modernas chegam para anunciar que o sujeito está morto (há uma diferença entre posições do pós-estruturalismo, que afirmam que o sujeito nunca existiu, e posições pós-modernas que sustentam que o sujeito outrora teve integridade, mas não a tem mais). Algumas vêem isso como uma conspiração contra as mulheres e outros grupos privados de direitos que só agora começam a falar em sua própria defesa. Mas o que se quer dizer exatamente com isso e como damos conta das críticas muito fortes do sujeito como instrumento da hegemonia imperialista ocidental teorizado por Gloria Anzaldua [12], Gayatri Spivak [13] e vários teóricos do pós-colonialismo? Temos aqui certamente uma advertência de que na luta pela emancipação e democratização podemos adotar os modelos de dominação pelos quais fomos oprimidas, não percebendo que um modo da dominação funcionar é mediante a regulação e produção de sujeitos. Por meio de que exclusões se construiu o sujeito feminista e como esses domínios excluídos retornam para assombrar a “integridade” e a “unidade” do “nós” feminista? E como é possível que a própria categoria, o sujeito, o “nós”, que deveria ser presumido com o propósito da solidariedade, produza a facciosidade que deveria liquidar? Querem as mulheres tornar-se sujeitos com base no modelo que exige e produz uma região anterior de degradação, ou deve o feminismo tornar-se um processo que é auto-crítico sobre os processos que produzem e desestabilizam categorias de identidade? Tomar a construção do sujeito como uma problemática política não é a mesma coisa que acabar com o sujeito; desconstruir o sujeito não é negar ou jogar fora o conceito; ao contrário, a desconstrução implica somente que suspendemos todos os compromissos com aquilo a que o termo “o sujeito” se refere, e que examinamos as funções lingüísticas a que ele serve na consolidação e ocultamento da autoridade. Desconstruir não é negar ou descartar, mas pôr em questão e, o que talvez seja mais importante, abrir um termo, como sujeito, a uma reutilização e uma redistribuição que anteriormente não estavam autorizadas.

No feminismo, parece haver uma necessidade política de falar enquanto mulher e pelas mulheres, e não vou contestar essa necessidade. Esse é certamente o modo como a política representativa funciona e, neste país, os esforços de lobby são virtualmente impossíveis sem recorrer à política de identidade. Assim, concordamos que manifestações, esforços legislativos e movimentos radicais precisam fazer reivindicações em nome das mulheres.

Mas essa necessidade precisa ser reconciliada com uma outra. No instante em que se invoca a categoria mulheres como descrevendo a clientela pela qual o feminismo fala, começa invariavelmente um debate interno sobre o conteúdo descritivo do termo. Há quem afirme haver uma especificidade ontológica das mulheres enquanto mães que forma a base de um interesse específico legal e político na representação; há outras que entendem a maternidade como uma relação social que é, nas atuais circunstâncias sociais, a situação específica das mulheres, comum em todas as culturas. E há aquelas que recorrem a Gilligan e outras para estabelecer uma especificidade feminina que se manifesta nas comunidades ou modos de conhecer das mulheres. Mas cada vez que essa especificidade é articulada, há resistência e formação de facções dentro da própria clientela que está supostamente unificada pela articulação de seu elemento comum. No começo da década de 1980, o “nós” feminista foi atacado com justiça pelas mulheres de cor que diziam que aquele “nós” era invariavelmente branco e que em vez de solidificar o movimento, era a própria fonte de uma dolorosa divisão. O esforço para caracterizar uma especificidade feminina recorrendo à maternidade, seja biológica ou social, produz uma formação de facções semelhante e até uma rejeição completa do feminismo, pois é certo que nem todas as mulheres são mães: algumas não podem sê-lo, algumas são jovens ou velhas demais para sê-lo, outras escolhem não sê-lo, e para algumas que são mães, esse não é necessariamente o ponto central de sua politização no feminismo.

Eu diria que qualquer esforço para dar conteúdo universal ou específico à categoria mulheres, supondo-se que essa garantia de solidariedade é exigida de antemão, produzirá necessariamente facções e que a “identidade” como ponto de partida jamais se sustenta como base sólida de um movimento político feminista. As categorias de identidade nunca são meramente descritivas, mas sempre normativas e como tal, exclusivistas. Isso não quer dizer que o termo “mulheres” não deva ser usado, ou que devamos anunciar a morte da categoria. Ao contrário, se o feminismo pressupõe que “mulheres” designa um campo de diferenças indesignável, que não pode ser totalizado ou resumido por uma categoria de identidade descritiva, então o próprio termo se torna um lugar de permanente abertura e re-significação. Eu diria que os rachas entre as mulheres a respeito do conteúdo do termo devem ser preservados e valorizados, que esses rachas constantes devem ser afirmados como o fundamento infundado da teoria feminista. Desconstruir o sujeito do feminismo não é, portanto, censurar sua utilização, mas, ao contrário, liberar o termo num futuro de múltiplas significações, emancipá-lo das ontologias maternais ou racistas às quais esteve restrito e fazer dele um lugar onde significados não antecipados podem emergir.

Paradoxalmente, pode acontecer que somente mediante a liberação da categoria mulheres de um referente fixo se torne possível algo parecido com “capacidade de agir”. Pois se o termo permite uma re-significação, se o referente não é fixo, então se tornam possíveis possibilidades de novas configurações. Em certo sentido, o que mulheres significa foi dado como certo durante tempo demais e o que foi determinado como “referente” do termo foi “fixado”, normalizado, imobilizado, paralisado em posições de subordinação. Com efeito, o significado foi fundido com o referente, de tal forma que um conjunto de significados foi levado a ser inerente à natureza real das próprias mulheres. Refundir o referente como o significado e autorizar ou salvaguardar a categoria mulheres como lugar de re-significações possíveis é expandir as possibilidades do que significa ser uma mulher e, nesse sentido, dar condições para e permitir uma capacidade de agir realçada.

Alguém pode perguntar: mas não deve haver um conjunto de normas que discrimine entre as descrições que devem e que não devem aderir à categoria mulheres? A única resposta a essa questão é uma contra-questão: quem estabeleceria essas normas e que contestações elas produziriam? Estabelecer um fundamento normativo para resolver a questão do que deveria ser propriamente incluído na descrição de mulheres seria somente e sempre produzir um novo lugar de disputa política. Esse fundamento não resolveria nada, mas afundaria necessariamente em seu próprio estratagema autoritário. Isso não quer dizer que não há fundamento, mas sempre que há um, haverá sempre um afundamento, uma contestação. Que esses fundamentos existam apenas para serem questionados é o risco permanente do processo de democratização. Recusar essa disputa é sacrificar o ímpeto democrático radical da política feminista. Que a categoria não seja restringida, mesmo que venha servir a propósitos antifeministas, será parte do risco desse procedimento.   Mas   trata-se   de   um   risco   produzido   pelo   próprio fundamentalismo que busca proteger o feminismo contra ele. Em certo sentido, esse risco é o fundamento de qualquer prática feminista e, por conseguinte, não o é.
Na parte final deste artigo, gostaria de abordar uma questão relacionada que nasce da preocupação de que uma teoria feminista não possa avançar sem supor a materialidade dos corpos femininos, a materialidade do sexo. Não diz o canto do anti pós-modernismo que se tudo é discurso, então os corpos não têm realidade? Como entender a violência material que as mulheres sofrem? Ao responder a essa crítica, gostaria de sugerir que a própria formulação da questão compreende erradamente o ponto essencial.

Não sei o que é pós-modernismo, mas tenho alguma idéia do que possa significar submeter noções do corpo e da materialidade a uma crítica desconstrutiva. Desconstruir o conceito de matéria ou de corpo não é negar ou recusar ambos os termos. Significa continuar a usá-los, repeti-los, repeti-los subversivamente, e deslocá-los dos contextos nos quais foram dispostos como instrumentos do poder opressor. Aqui é necessário obviamente declarar que as opções para a teoria não se exaurem presumindo materialidade, de um lado, e negando materialidade, de outro. É meu propósito exatamente não fazer essas duas coisas. Pôr um pressuposto em questão não é a mesma coisa que o suprimir; antes, é libertá-lo de sua morada metafísica a fim de ocupar e servir objetivos políticos muito diferentes. Problematizar a matéria dos corpos acarreta, em primeiro lugar, uma perda de certeza epistemológica, mas essa perda de certeza não tem por resultado necessário o niilismo político. [14]

Se uma desconstrução da materialidade dos corpos suspende e problematiza o referente ontológico tradicional do termo, ela não congela, bane, torna inútil ou esvazia de sentido seu uso; ao contrário, proporciona as condições para mobilizar o significante a serviço de uma produção alternativa.

Vejamos o mais material dos conceitos, “sexo”, que Monique Wittig chama de uma completa alegoria política e que Michel Foucault chama de “unidade fictícia” e reguladora. Para ambos os teóricos, o sexo não descreve uma materialidade prévia, mas produz e regula a inteligibilidade da materialidade dos corpos. Para ambos, de diferentes maneiras, a categoria sexo impõe uma dualidade e uma uniformidade sobre os corpos a fim de manter a sexualidade reprodutiva como uma ordem compulsória. Discuti em outro lugar com mais precisão como isso funciona, mas para nossos propósitos aqui, gostaria de sugerir que esse tipo de classificação pode ser chamado de violento, forçado e que essa ordenação e produção discursiva dos corpos de acordo com a categoria sexo é em si mesma uma violência material.

A violência da letra, a violência da marca que estabelece o que irá ou não significar, o que será incluído ou não no inteligível, assume uma significação política quando a letra é a lei ou a legislação autorizadora do que será a materialidade do sexo.

O que pode esse tipo de análise pós-estrutural nos dizer sobre violência e sofrimento? Talvez que as formas de violência devam ser entendidas como mais difusas, mais constitutivas e mais insidiosas do que modelos anteriores nos permitiram ver? Isso é parte do argumento da discussão anterior sobre a guerra, mas quero agora apresentá-lo num outro contexto.

Vejamos as restrições legais que regulam o que é e o que não é considerado estupro: aqui a política da violência opera regulando o que será e o que não será capaz de aparecer como um efeito da violência. [15] Já há, portanto, nessa exclusão, uma violência em ação, uma demarcação prévia do que será ou não qualificado como “estupro”, ou “violência do governo”, ou nos casos dos estados americanos em que se exigem doze provas empíricas separadas para caracterizar     “estupro”,     o     que     pode     ser     chamado     de     estupro governamentalmente facilitado.

Uma linha similar de raciocínio está em funcionamento nos discursos sobre estupro quando o “sexo” de uma mulher é responsabilizado por seu estupro. O advogado de defesa do grupo acusado de estupro em New Bedford perguntou à queixosa: “Se você está vivendo com um homem, o que está fazendo correndo pelas ruas sendo estuprada”?16 O “correndo” nessa sentença colide gramaticalmente com a voz passiva “ser estuprada”. Literalmente, seria difícil “estar correndo” e “ser estuprada” ao mesmo tempo, o que sugere que há uma passagem omitida aqui, talvez um direcional que leve do primeiro ao segundo? Se o sentido da frase é “correndo pelas ruas [procurando ser] estuprada”, que parece ser a única maneira lógica de ligar as duas partes da sentença, então o estupro como uma aquisição passiva é exatamente o objeto de sua busca ativa. A primeira cláusula sugere que ela “pertence” ao lar, ao seu homem, que o lar é o lugar no qual ela é a propriedade doméstica daquele homem, e as “ruas” a estabelecem como aberta à caça. Se ela está buscando ser estuprada, está buscando ser a propriedade de outro e esse objetivo é instalado em seu desejo, concebido aqui como bastante frenético em sua busca. Ela está “correndo”, sugerindo-se que está procurando embaixo de cada pedra por um estuprador que a satisfaça. Significativamente, a frase instala como princípio estruturador de seu desejo “ser estuprada”, onde o “estupro” é representado como um ato de auto-expropiração intencional. Uma vez que se tornar propriedade de um homem é o objetivo de seu “sexo”, articulado em e por seu desejo sexual, e o estupro é o meio pelo qual essa apropriação ocorre “na rua” [uma lógica que implica que o estupro está para o casamento assim como a rua para o lar, isto é, que o “estupro” é o casamento das ruas, um casamento sem lar, um casamento para garotas sem lar, e que o casamento é estupro domesticado], então “estupro” é a conseqüência lógica da realização de seu sexo e sua sexualidade fora da domesticidade. Não importa que esse estupro tenha acontecido num bar, pois o bar é, nesse imaginário, uma extensão da rua, ou talvez seu momento exemplar, pois não há recinto cercado, isto é, proteção, fora do lar enquanto espaço marital doméstico. De qualquer forma, a única causa de sua violação é aqui representada como seu “sexo”, que, tendo em vista sua propensão natural a buscar expropriação, uma vez deslocado da propriedade doméstica, persegue naturalmente seu estupro e é, portanto, responsável por ele.

A categoria sexo funciona aqui como um princípio de produção e regulação ao mesmo tempo, a causa da violação instalada como o princípio formador do corpo e da sexualidade. Aqui sexo é uma categoria, mas não apenas uma representação; é um princípio de produção, inteligibilidade e regulação que impõe uma violência e a racionaliza após o fato. Os próprios termos pelos quais a violação é explicada executam a violação e reconhecem que a violação estava em andamento antes que assumisse a forma empírica de um ato criminoso. Assim, a execução retórica mostra que a “violência” é produzida mediante a exclusão efetuada por essa análise, mediante o apagamento e a negação que determinam o campo dos aparecimentos e da inteligibilidade de crimes de culpabilidade. Como uma categoria que produz efetivamente o sentido político do que descreve, “sexo” põe em funcionamento aqui sua “violência” silenciosa ao regular o que é e não é designável.

Ponho os termos “violência” e “sexo” entre aspas: é isso um sinal de uma certa desconstrução, o fim da política? Ou estou sublinhando a estrutura iterativa desses termos, os modos pelos quais eles cedem a uma repetição, ocorrem de forma ambígua, e estou fazendo isso justamente para aprofundar uma análise política? As aspas mostram que eles estão sob crítica, disponíveis para iniciar a disputa, questionar sua disposição tradicional, e pedir por algum outro termo. As aspas não põem em questão a urgência ou credibilidade de sexo ou violência enquanto questões políticas, mas antes mostram que o modo como a materialidade deles é circunscrita é totalmente político. O efeito das aspas é desnaturalizar os termos, designar esses signos como lugares de debate político.

Se há um medo de que, por não ser mais capaz de tomar como certo o sujeito, seu gênero, seu sexo ou sua materialidade, o feminismo vá afundar, talvez seja interessante examinar as conseqüências políticas de manter em seus lugares as próprias premissas que tentaram assegurar nossa subordinação desde o início.
Notas.

1. Aqui vale a pena observar que em certa teoria política recente, notadamente nos escritos de Laclau, Mouffe, Connolly e Nancy & Lacoue-Labarthe, há uma insistência de que o campo político é necessariamente construído mediante a produção de um exterior determinante. Em outras palavras, o domínio da política se constitui por meio da produção e naturalização do “pré” ou “não” político. Nos termos de Derrida, trata-se da produção de um “exterior constitutivo”. Gostaria de sugerir uma distinção entre a constituição de um campo político que produz e naturaliza esse exterior constitutivo e um campo político que produz e torna contingente os parâmetros específicos desse exterior constitutivo. Embora não pense que as relações diferenciais pelas quais se constitui o próprio campo político possam ser totalmente elaboradas (exatamente porque o estatuto dessa elaboração também teria de ser elaborado ad infinitum), acho útil a noção de William Connolly de antagonismos constitutivos, uma noção que encontra uma expressão paralela em Laclau e Mouffe, que sugere uma forma de luta política que põe os próprios parâmetros do político em questão. Isso é especialmente importante para as preocupações feministas, na medida em que as bases da política (“universalidade”, “igualdade”, “o sujeito dos direitos”) foram construídas mediante exclusões raciais e de gênero e por uma fusão da política com a vida pública que torna o privado (reprodução, domínios da “feminilidade”) pré- político. LACLAU, Ernesto e MOUFFE, Chantal. Hegemony and Socialist Strategy. Londres, Verso, 1986; CONNOLLY, William. Political Theory and Modernity. Madison, University of Wisconsin Press, 1988; NANCY, Jean-Luc e LACOUE-LABARTHE, Philippe. Le retrait du politique. Paris, Editions Galilée, 1983


2. KRISTEVA, Julia. Black Sun: Depression and Melancholy. Nova York, Columbia University Press, 1989, 258-59.

3. A fusão de Lyotard com uma variedade de pensadores sumariamente colocados sob a rubrica de “pós-modernismo” é realizada pelo título e o ensaio de BENHABIB, Epistemologies of Postmodernism: A Rejoinder to Jean-François Lyotard. In: NICHOLSON, Linda. (ed.) Feminism/Postmodernism. Nova York, Routledge, 1989.

4. Isso fica abundantemente claro nas críticas feministas a Jurgen Habermas e a Catharine MacKinnon. Ver YOUNG, Iris. Impartiality and the Civil Public: Some Implications of Feminist Criticisms of Modern Political Theory. In: BENHABIB, Seyla e CORNELL, Drucilla. (eds.) Feminism as Critique: Essays on the Politics of Gender in Late- Capitalism. Oxford, Basil Blackwell, 1987; FRASER, Unruly Practices: Power and Gender in Contemporary Social Theory. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1989, em especial “What’s Critical about Critical Theory: The Case of Habermas and Gender”; Brown,Wendy. Razing Consciousness. The Nation 250:2, 8/15 de janeiro de 1990.

5. Ver Nandy sobre a noção de universalidades alternativas no prefácio a NANDY, The Intimate Enemy: Loss and Recovery of Self under Colonialism. Nova Delhi, Oxford University Press, 1983.

6. A noção de “hibridismo” de Homi Bhabha é importante de ser considerada nesse contexto.
7. FOUCAULT, Michel. An Introduction. In: The History of Sexuality. Vol. 1. Nova York, Random House, 1980, 102. Traduzido por Robert Harley.

8. “As guerras não se travam mais em nome da soberania que precisa ser defendida; travam-se em nome da existência de todos; populações inteiras são mobilizadas com o objetivo de massacrar em nome da necessidade da vida: os massacres se tornaram vitais”, escreve ele. Adiante acrescenta: “O princípio ordenador da tática de batalha – que se deve ser capaz de matar a fim de continuar vivo – tornou-se o princípio que define a estratégia dos estados. Mas a existência em questão não é mais a existência jurídica da soberania; o que está em jogo é a existência biológica de uma população. Se o genocídio é de fato o sonho das potências modernas, isso não se dá assim devido a um retorno recente do antigo direito de matar, mas porque o poder é situado e exercido no nível da vida, da espécie, da raça e do fenômeno em larga escala da população”. FOUCAULT, M. The History of Sexuality.cit., p.137.

9. Traduz-se a agency do original por “capacidade de agir”, uma vez que o termo português agência não tem esse significado, digamos, essencial e primordial. (NT)


9.1. O termo “agency” utilizado por Butler remete-se diretamente às construções filosóficas de Gilles Deleuze e Félix Guattari, em especial, ao conceito de agenciamento ou, no original, agenciment da obra Mil Platôs. A definição correta do conceito, refere-se ao processos de conexão realizados pelos sujeitos e seus processos de subjetivação, animais, aparelhos maquínicos ou semióticos, políticos e capitalísticos, pelas ações do corpo, da consciência e do inconsciênte… Os agenciamentos podem ser de caráter individuados ou coletivos. Deleuze e Guattari em seu platô iniciático, Rizoma,  assim enunciam: “Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões” DELEUZE; GUATTARI, Mil Platôs – Vol. 1, p.17. (Nota-extra por Moreno B.)

10. Escreve Memmi: “No auge da revolta, o colonizado ainda traz os traços e lições da coabitação prolongada (da mesma forma que o sorriso ou os movimentos de uma esposa, mesmo durante os procedimentos de divórcio, lembram estranhamente os do marido)”. Aqui Memmi estabelece uma analogia que pressupõe que colonizado e colonizador existem numa relação paralela e separada de marido e mulher se divorciando. A analogia sugere de modo simultâneo e paradoxal a feminilização do colonizado, em que se supõe o colonizado é o sujeito dos homens, e a exclusão das mulheres da categoria do sujeito colonizado. MEMMI, Albert. The Colonizer and the Colonized. Boston, Beacon Press, 1965, 129.

11. SCOTT, Joan W. Introdução. In: Gender and the Politics of History. Nova York, Columbia University Press, 1998.

12. ANZALDUA, Gloria La Frontera/ Borderlands. San Francisco, Spinsters Ink, 1998.

13. SPIVAK, Gayatri. Can the Subaltern Speak? In: NELSON e GROSSBERG. (eds.) Marxism and the Interpretation of Culture. Chicago, University of Illinois Press,1998.

14. O corpo postulado como prévio ao signo é sempre postulado ou significado como prévio. Essa significação funciona mediante a produção de um efeito de seu próprio procedimento, o corpo que ela todavia e simultaneamente afirma descobrir como aquilo que precede a significação. Se o corpo significado como prévio à significação é um efeito da significação, então o estatuto mimético ou representativo da linguagem, que afirma que o signo segue os corpos como seus espelhos necessários, não é de forma alguma mimético; ao contrário, é produtivo, constitutivo, pode-se até dizer performativo, visto que esse ato de significação produz o corpo que então afirma encontrar antes de qualquer significação.

15. Para uma análise mais extensa da relação entre linguagem e estupro, ver a contribuição de Sharon Marcus em BUTLER, Judith e SCOTT, Joan. (eds.) Feminists Theorize the Political. Nova York, Routledge, 1997, de onde foi retirado este artigo.

16. No original: “If you are living with a man, what are you doing running around the streets getting raped?”, citado em MACKINNON, Toward a Feminist Theory of the State. Boston, Harvard University Press, 1989, p.171.

*A versão do escrito em língua portuguesa foi originalmente partilhado em: BUTLES, Judith. FUNDAMENTOS CONTINGENTES: O FEMINISMO E A QUESTÃO DO “PÓS-MODERNISMO”. in: Cadernos Pagu, nº 11, 1998. A tradução foi realizada por Pedro Maia Soares.

**Para conhecer outras reflexões e partilhas do Núcleo de Estudos de Gênero, acesse o território: http://www.pagu.unicamp.br/pt-br/cadernos-pagu

Fonte: Territórios de Filosofia

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