maio 04, 2015

"O Dano: Política e Polícia". Por Jacques Rancière

PICICA: "No conflito primário que põe em litígio a dedução entre a capacidade do ser falante qualquer e a comunidade do justo e do injusto, deve-se então reconhecer duas lógicas do estar-junto humano que geralmente se confundem sob o nome de política, quando a atividade política nada mais é que a atividade que as divide. Chamamos geralmente pelo nome de política o conjunto dos processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes, a distribuição dos lugares e funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição. Proponho dar outro nome a essa distribuição e ao sistema dessas legitimações. Proponho chamá-la de polícia. Sem dúvida, essa designação coloca alguns problemas. A palavra polícia evoca comumente o que chamamos baixa polícia, os golpes de cassetete das forças da ordem e as inquisições das polícias secretas. Mas essa identificação restritiva pode ser considerada contingente. Michel Foucault mostrou que, como técnica de governo, a polícia definida pelos autores do século XVII e XVIII estendia-se a tudo o que diz respeito ao “homem” e à sua “felicidade” [4]. A baixa polícia é apenas uma forma particular de uma ordem mais geral que dispõe o sensível, na qual os corpos são distribuídos em comunidade. E a fraqueza e não a força dessa ordem que incha em certos estados a baixa polícia, até encarregá-la do conjunto das funções de polícia. Prova disso, a contrário, é a evolução das sociedades ocidentais que faz do policial um elemento de um dispositivo social, em que se entrelaçam o médico, o assistencial e o cultural. O policial está fadado nesse contexto a tornar-se conselheiro e animador tanto quanto agente da ordem pública e sem dúvida até o seu nome será trocado um dia, nesse processo de eufemização pelo qual nossas sociedades revalorizam, ao menos em imagem, todas as funções tradicionalmente desprezadas. Utilizarei portanto a partir de agora a palavra polícia e o adjetivo policial num sentido amplo, que é também um sentido “neutro”, não pejorativo. Nem por isso estou identificando a polícia àquilo que é designado pelo nome de “aparelho de Estado”. A noção de aparelho de Estado encontra-se de fato ligada à pressuposição de que Estado e sociedade se opõem, sendo o primeiro figurado como a máquina, o “monstro frio” que impõe a rigidez de sua ordem à vida da segunda. Ora essa figuração já pressupõe uma certa “filosofia política”, isto é, uma certa confusão da política e da polícia. A distribuição dos lugares e funções que define uma ordem policial depende tanto da suposta espontaneidade das relações sociais quanto da rigidez das funções de Estado. A polícia é, na sua essência, a lei, geralmente implícita, que define a parcela ou a ausência de parcela das partes. Mas, para definir isso, é preciso antes definir a configuração do sensível na qual se inscrevem umas e outras. A polícia é assim, antes de mais nada, uma ordem dos corpos que define as divisões entre os modos do fazer, os modos de ser e os modos do dizer, que faz que tais corpos sejam designados por seu nome para tal lugar e tal tarefa; é uma ordem do visível e do dizível que faz com que essa atividade seja visível e outra não o seja, que essa palavra seja entendida como discurso e outra como ruído. É, por exemplo, uma lei de polícia que faz tradicionalmente do lugar de trabalho um espaço privado não regido pelos modos do ver e dizer próprios do que se chama o espaço público, onde o ter parcela do trabalhador é estritamente definido pela remuneração de seu trabalho. A polícia não é tanto uma “disciplinarização” dos corpos quanto uma regra de seu aparecer, uma configuração das ocupações e das propriedades dos espaços em que essas ocupações são distribuídas.

Proponho agora reservar o nome de política a uma atividade bem determinada e antagônica à primeira: a que rompe a configuração sensível na qual se definem as parcelas e as partes ou sua ausência a partir de um pressuposto que por definição não tem cabimento ali: a de uma parcela dos sem-parcela. Essa ruptura se manifesta por uma série de atos que reconfiguram o espaço onde as partes, as parcelas e as ausências de parcelas se definiam. A atividade política é a que desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha lugar o barulho, faz ouvir como discurso o que só era ouvido como barulho. Pode ser a atividade dos plebeus de Ballanche que fazem uso de uma palavra que “não têm”. Pode ser a desses operários do século XIX que colocam em razões coletivas relações de trabalho que só dependem de uma infinidade de relações individuais privadas. Ou ainda a desses manifestantes de ruas ou barricadas que literalizam como “espaço público” as vias de comunicação urbanas. Espetacular ou não, a atividade política é sempre um modo de manifestação que desfaz as divisões sensíveis da ordem policial ao atualizar uma pressuposição que lhe é heterogênea por princípio, a de uma parcela dos sem-parcela que manifesta ela mesma, em última instância, a pura contingência da ordem, a igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante. Existe política quando existe um lugar e formas para o encontro entre dois processos heterogêneos. O primeiro é o processo policial no sentido que o tentamos definir. O segundo é o processo da igualdade. Entendamos provisoriamente sob esse termo o conjunto aberto das práticas guiadas pela suposição da igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante e pela preocupação de averiguar essa igualdade."

O DANO: POLÍTICA E POLÍCIA.

 Jacques Rancière.*

A bela dedução que vai das propriedades do animal lógico para os fins do animal político esconde então uma falha. Entre o útil e o justo, há o incomensurável do dano que sozinho institui a comunidade política como antagonismo de partes da comunidade que não são verdadeiras partes do corpo social. Mas, por sua vez, a falsa continuidade do útil ao justo vem denunciar a falsa evidência da oposição tão incisiva que separa os homens dotados de logos dos animais limitados unicamente ao instrumento da voz (phoné). A voz, diz Aristóteles, é um instrumento destinado a um fim limitado. Serve aos animais em geral para indicar (semainein) a sensação que têm de dor e agrado. Agrado e dor situam-se aquém da divisão que reserva aos humanos e à comunidade política o sentimento do proveitoso e do nocivo, logo a comunhão do justo e do injusto. Mas, dividindo tão claramente as funções comuns da voz e os privilégios da palavra, pode Aristóteles esquecer o furor das acusações lançadas por seu mestre Platão contra o “gordo animal” popular? O livro VI da República se compraz em nos mostrar esse gordo animal respondendo às palavras que o adulam com o tumulto de suas aclamações, e às que o irritam com o alarido de sua reprovação.

Eis por que a “ciência” daqueles que se apresentam à sua volta consiste só em conhecer os efeitos de voz que fazem o gordo animal grunhir e os que o deixam calmo e dócil. Assim como o demos usurpa o título da comunidade, a democracia é o regime — o modo de vida — em que a voz que não apenas exprime mas também proporciona os sentimentos ilusórios do prazer e do sofrimento usurpa os privilégios do logos que faz reconhecer o justo e ordena sua realização na proporção comunitária. A metáfora do gordo animal não é uma simples metáfora. Ela serve rigorosamente para prostrar na animalidade esses seres falantes sem qualidade que introduzem a perturbação no logos e em sua realização política como analogia das partes da comunidade.

A simples oposição entre os animais lógicos e os animais fônicos não é pois, de forma alguma, o dado sobre o qual se funda a política. Ela é, ao contrário, uma aposta do jogo do próprio litígio que institui a política. No âmago da política, há um duplo dano, um conflito fundamental e nunca considerado como tal em torno da relação entre a capacidade do ser falante sem propriedade e a capacidade política. Para Platão, a multiplicidade dos seres falantes anônimos chamada povo prejudica toda distribuição ordenada dos corpos em comunidade. Mas inversamente “povo” é o nome, a forma de subjetivação, desse dano imemorial e sempre atual pelo qual a ordem social se simboliza rejeitando a maioria dos seres falantes para a noite do silêncio ou o barulho animal das vozes que exprimem satisfação ou sofrimento. Isso porque, antes das dívidas que colocam as pessoas de nada na dependência dos oligarcas, há a distribuição simbólica dos corpos, que as divide em duas categorias: aqueles a quem se vê e a quem não se vê, os de quem há um logos — uma palavra memorial, uma contagem a manter —, e aqueles acerca dos quais não há logos, os que falam realmente e aqueles cuja voz, para exprimir prazer e dor, apenas imita a voz articulada.

Há política porque o logos nunca é apenas a palavra, porque ele é sempre indissoluvelmente a contagem que é feita dessa palavra: a contagem pela qual uma emissão sonora é ouvida como palavra, apta a enunciar o justo, enquanto uma outra é apenas percebida como barulho que designa prazer ou dor, consentimento ou revolta.

É o que conta um pensador francês do século XIX ao reescrever o relato feito por Tito Lívio da secessão dos plebeus romanos no Aventino. Em 1829, Pierre-Simon Ballanche publica na Revue de Paris uma série de artigos sob o título de “Fórmula geral da história de todos os povos aplicada à história do povo romano”. À sua maneira, Ballanche estabelece um vínculo entre a política dos “clássicos” e a dos “modernos”. O relato de Tito Lívio encadeava o fim da guerra contra os volscos, a retirada da plebe para o Aventino, a embaixada de Menênio Agripa, a fábula que o celebrizou e a volta dos plebeus à ordem. Ballanche censura ao historiador latino sua incapacidade de pensar o acontecimento a não ser como revolta, um levante da miséria e da cólera que institui uma relação de forças privada de sentido. Tito Lívio é incapaz de conferir sentido ao conflito porque é incapaz de situar a fábula de Menênio Agripa no seu verdadeiro contexto: o de uma querela sobre a questão da própria palavra. Centralizando seu relato-apólogo nas discussões dos senadores e nos atos de palavra dos plebeus, Ballanche efetua uma reencenação do conflito na qual toda a questão consiste em saber se existe um palco comum onde plebeus e patrícios possam debater sobre alguma coisa.
A posição dos patrícios intransigentes é simples: não há por que discutir com os plebeus, pela simples razão de que estes não falam. E não falam porque são seres sem nome, privados de logos, quer dizer de inscrição simbólica na pólis. Vivem uma vida puramente individual, que não transmite nada, a não ser a própria vida, reduzida a sua faculdade reprodutiva. Aquele que não tem nome não pode falar. Um erro fatal faz o deputado Menênio imaginar que da boca dos plebeus saíssem palavras, quando logicamente só poderia sair ruído.

Possuem a palavra como nós, ousaram eles dizer a Menênio! Foi um deus quem fechou a boca de Menênio, quem ofuscou seu olhar, quem fez zumbir seus ouvidos? Será que foi tomado de uma vertigem sagrada? […] ele não soube responder-lhes que tinham uma palavra transitória, uma palavra que é um som fugidio, espécie de mugido, sinal da necessidade e não da manifestação da inteligência. São privados da palavra eterna que estava no passado, que estará no futuro. [1]

O discurso que Ballanche atribui a Ápio Cláudio apresenta perfeitamente o argumento da querela. Entre a linguagem daqueles que têm um nome e o mugido dos seres sem nome, não há situação de troca lingüística que possa ser constituída, não há regras ou código para a discussão. Esse veredito não reflete apenas a obstinação dos dominantes ou sua cegueira ideológica. Exprime estritamente a ordem do sensível que organiza sua dominação, que é essa própria dominação. Antes de ser um traidor da sua classe, o deputado Menênio, que pensa ter ouvido os plebeus falarem, é vítima de uma ilusão dos sentidos. A ordem que estrutura a dominação dos patrícios não conhece logos que possa ser articulado por seres privados de logos, nem palavra que possa ser proferida por seres sem nome, por seres dos quais não há contagem.

 Diante de tal situação, o que fazem os plebeus reunidos no Aventino? Não armam trincheiras, a exemplo dos escravos dos citas. Fazem o que para estes era impensável: instituem uma outra ordem, uma outra divisão do sensível, constituindo-se não como guerreiros iguais a outros guerreiros, mas como seres falantes repartindo as mesmas propriedades daqueles que as negam a eles. Executam assim uma série de atos de palavra que mimetizam os dos patrícios: proferem imprecações e celebram apoteoses; delegam um dos seus para ir consultar seus oráculos; outorgam-se representantes rebatizando-os. Em suma, comportam-se como seres que têm nomes. Descobrem-se, ao modo da transgressão, como seres falantes, dotados de uma palavra que não exprime simplesmente a necessidade, o sofrimento e o furor, mas manifesta a inteligência. Escrevem, diz Ballanche, “um nome no céu”: um lugar numa ordem simbólica da comunidade dos seres falantes, numa comunidade que ainda não tem efetividade na civitas romana.

O relato nos apresenta essas duas cenas e nos mostra, entre as duas, observadores e emissários que circulam — num único sentido, é claro: são patrícios atípicos que vêm ver e ouvir o que se passa nessa cena, inexistente por direito. E observam este fenômeno incrível: os plebeus transgrediram, pelo fato, a ordem da cidade. Deram-se nomes. Executaram uma série de atos de palavra que ligam a vida de seus corpos a palavras e a usos das palavras. Em suma, na linguagem de Ballanche, de “mortais” que eram, tornaram-se “homens”, quer dizer, seres que empenham em palavras um destino coletivo. Tornaram-se seres passíveis de firmar promessas e de estabelecer contratos. A conseqüência disso é que, quando Menênio Agripa conta seu apólogo, escutam-no educadamente e agradecem, mas para pedir-lhe, depois, um tratado. Ele protesta, dizendo que isso é logicamente impossível. 

Infelizmente, diz Ballanche, seu apólogo tinha, num único dia, “envelhecido de um ciclo”. A coisa é simples de formular: se os plebeus podiam compreender seu apólogo — o apólogo da necessária desigualdade entre o princípio vital patrício e os membros executantes da plebe —, é que já eram, necessariamente, iguais. O apólogo quer dar a compreender uma divisão desigualitária do sensível. Ora, o senso necessário para compreender essa divisão pressupõe uma divisão igualitária que destrói a primeira. Mas somente o desenvolvimento de uma cena de manifestação específica confere, a essa igualdade, efetividade. Somente esse dispositivo mede a distância do logos a si mesmo e faz efeito dessa medida, organizando um outro espaço sensível em que se verifica que os plebeus falam como os patrícios e que a dominação destes não tem outro fundamento que .1 pura contingência de toda ordem social.

O Senado romano, no relato de Ballanche, é animado por um Conselho secreto de velhos sábios. Estes sabem que, quando acaba um ciclo, quer isso nos agrade, quer não, ele está acabado. E concluem que, já que os plebeus se tornaram seres de palavra, nada mais há a fazer, a não ser falar com eles. Essa conclusão está em conformidade com a filosofia que Ballanche retoma de Vico: a passagem de uma era da palavra a outra não é uma revolta que se possa reprimir, é uma revelação progressiva, cujos sinais se reconhecem e contra a qual não se luta. Mas o que nos importa aqui, mais do que essa filosofia determinada, é a maneira como o apólogo situa a relação entre o privilégio do logos e o jogo do litígio que institui a cena política. Antes de qualquer medida dos interesses e dos títulos de tal ou qual parte, o litígio refere-se à existência das partes como partes, a existência de uma relação que as constitui como tais. E o duplo sentido do logos, como palavra e como contagem, é o lugar onde se trava o conflito. O apólogo do Aventino permite-nos reformular o enunciado aristotélico sobre a função política do logos humano e sobre a significação do dano que ele manifesta. A palavra por meio da qual existe política é a que mede o afastamento mesmo da palavra e de sua contagem. E a aisthesis que se manifesta nessa palavra é a própria querela em torno da constituição da aisthesis, sobre a divisão do sensível pela qual corpos se encontram em comunidade. Vamos entender aqui divisão [2] no duplo sentido da palavra: comunidade e separação. É a relação de ambas que define uma divisão do sensível. E é essa relação que está em jogo no “duplo sentido” do apólogo: o que ele faz entender e o que é necessário para entendê-lo. Saber se os plebeus falam é saber se existe algo “entre” as partes. Para os patrícios, não há cena política já que não há partes. Não há partes já que os plebeus, não tendo logos, não são. “A desgraça de vocês é não serem”, diz um patrício aos plebeus, “e essa desgraça é inelutável.” [3] É esse o ponto decisivo que se vê obscuramente designado na definição aristotélica ou na polêmica platônica, mas claramente ocultado, em contrapartida, por todas as concepções cambistas, contratuais ou comunicacionais da comunidade política. A política é primeiramente o conflito em torno da existência de uma cena comum, em torno da existência e a qualidade daqueles que estão ali presentes. É preciso antes de mais nada estabelecer que a cena existe para o uso de um interlocutor que não a vê e que não tem razões para vê-la já que ela não existe. As partes não preexistem ao conflito, que elas nomeiam e no qual são contadas como partes. A “discussão” do dano não é uma troca — sequer violenta — entre parceiros constituídos. Ela diz respeito à própria situação de palavra e a seus atores. Não há política porque os homens, pelo privilégio da palavra, põem seus interesses em comum. Existe política porque aqueles que não têm direito de ser contados como seres falantes conseguem ser contados, e instituem uma comunidade pelo fato de colocarem em comum o dano que nada mais é que o próprio enfrentamento, a contradição de dois mundos alojados num só: o mundo em que estão e aquele em que não estão, o mundo onde há algo “entre” eles e aqueles que não os conhecem como seres falantes e contáveis e o mundo onde não há nada. A facticidade da liberdade ateniense e o extraordinário da secessão plebeia encenam, assim, um conflito fundamental, que é ao mesmo tempo marcado e abortado pela guerra servil da Cítia. O conflito separa dois modos do estar-junto humano, dois tipos de divisão do sensível, opostos em seu princípio e no entanto entrelaçados um no outro nas contagens impossíveis da proporção, assim como nas violências do conflito.

Há o modo de estar-junto que situa os corpos em seu lugar e nas suas funções segundo suas propriedades”, segundo seu nome ou sua ausência de nome, o caráter “lógico” ou “fônico” dos sons que saem de sua boca. O princípio desse estar-junto é simples: dá a cada um a parcela que lhe cabe segundo a evidência do que ele é. As maneiras de ser, as maneiras de fazer e as maneiras de dizer — ou de não dizer — aí remetem exatamente umas às outras. Os citas, ao furar os olhos daqueles que têm de executar com as mãos a tarefa que lhes é mandada, dão o exemplo selvagem disso. Os patrícios, que não podem ouvir a palavra daqueles que não podem tê-la, fornecem a sua fórmula clássica. Os “políticos” da comunicação e da sondagem que, a cada instante, dão a cada um de nós o espetáculo inteiro de um mundo que se tornou indiferente e a contagem exata daquilo que cada classe de idade e cada categoria sócio-profissional pensam do “futuro político” de tal ou qual ministro poderiam ser considerados uma fórmula moderna exemplar disso. Há portanto, de um lado, essa lógica que conta as parcelas unicamente das partes, que distribui os corpos no espaço de sua visibilidade ou de sua invisibilidade e põe em concordância os modos do ser, os modos do fazer e os modos do dizer que convém a cada um. E há a outra lógica, aquela que suspende essa harmonia pelo simples fato de atualizar a contingência da igualdade, nem aritmética nem geométrica, dos seres falantes quaisquer.

No conflito primário que põe em litígio a dedução entre a capacidade do ser falante qualquer e a comunidade do justo e do injusto, deve-se então reconhecer duas lógicas do estar-junto humano que geralmente se confundem sob o nome de política, quando a atividade política nada mais é que a atividade que as divide. Chamamos geralmente pelo nome de política o conjunto dos processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes, a distribuição dos lugares e funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição. Proponho dar outro nome a essa distribuição e ao sistema dessas legitimações. Proponho chamá-la de polícia. Sem dúvida, essa designação coloca alguns problemas. A palavra polícia evoca comumente o que chamamos baixa polícia, os golpes de cassetete das forças da ordem e as inquisições das polícias secretas. Mas essa identificação restritiva pode ser considerada contingente. Michel Foucault mostrou que, como técnica de governo, a polícia definida pelos autores do século XVII e XVIII estendia-se a tudo o que diz respeito ao “homem” e à sua “felicidade” [4]. A baixa polícia é apenas uma forma particular de uma ordem mais geral que dispõe o sensível, na qual os corpos são distribuídos em comunidade. E a fraqueza e não a força dessa ordem que incha em certos estados a baixa polícia, até encarregá-la do conjunto das funções de polícia. Prova disso, a contrário, é a evolução das sociedades ocidentais que faz do policial um elemento de um dispositivo social, em que se entrelaçam o médico, o assistencial e o cultural. O policial está fadado nesse contexto a tornar-se conselheiro e animador tanto quanto agente da ordem pública e sem dúvida até o seu nome será trocado um dia, nesse processo de eufemização pelo qual nossas sociedades revalorizam, ao menos em imagem, todas as funções tradicionalmente desprezadas. Utilizarei portanto a partir de agora a palavra polícia e o adjetivo policial num sentido amplo, que é também um sentido “neutro”, não pejorativo. Nem por isso estou identificando a polícia àquilo que é designado pelo nome de “aparelho de Estado”. A noção de aparelho de Estado encontra-se de fato ligada à pressuposição de que Estado e sociedade se opõem, sendo o primeiro figurado como a máquina, o “monstro frio” que impõe a rigidez de sua ordem à vida da segunda. Ora essa figuração já pressupõe uma certa “filosofia política”, isto é, uma certa confusão da política e da polícia. A distribuição dos lugares e funções que define uma ordem policial depende tanto da suposta espontaneidade das relações sociais quanto da rigidez das funções de Estado. A polícia é, na sua essência, a lei, geralmente implícita, que define a parcela ou a ausência de parcela das partes. Mas, para definir isso, é preciso antes definir a configuração do sensível na qual se inscrevem umas e outras. A polícia é assim, antes de mais nada, uma ordem dos corpos que define as divisões entre os modos do fazer, os modos de ser e os modos do dizer, que faz que tais corpos sejam designados por seu nome para tal lugar e tal tarefa; é uma ordem do visível e do dizível que faz com que essa atividade seja visível e outra não o seja, que essa palavra seja entendida como discurso e outra como ruído. É, por exemplo, uma lei de polícia que faz tradicionalmente do lugar de trabalho um espaço privado não regido pelos modos do ver e dizer próprios do que se chama o espaço público, onde o ter parcela do trabalhador é estritamente definido pela remuneração de seu trabalho. A polícia não é tanto uma “disciplinarização” dos corpos quanto uma regra de seu aparecer, uma configuração das ocupações e das propriedades dos espaços em que essas ocupações são distribuídas.

Proponho agora reservar o nome de política a uma atividade bem determinada e antagônica à primeira: a que rompe a configuração sensível na qual se definem as parcelas e as partes ou sua ausência a partir de um pressuposto que por definição não tem cabimento ali: a de uma parcela dos sem-parcela. Essa ruptura se manifesta por uma série de atos que reconfiguram o espaço onde as partes, as parcelas e as ausências de parcelas se definiam. A atividade política é a que desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha lugar o barulho, faz ouvir como discurso o que só era ouvido como barulho. Pode ser a atividade dos plebeus de Ballanche que fazem uso de uma palavra que “não têm”. Pode ser a desses operários do século XIX que colocam em razões coletivas relações de trabalho que só dependem de uma infinidade de relações individuais privadas. Ou ainda a desses manifestantes de ruas ou barricadas que literalizam como “espaço público” as vias de comunicação urbanas. Espetacular ou não, a atividade política é sempre um modo de manifestação que desfaz as divisões sensíveis da ordem policial ao atualizar uma pressuposição que lhe é heterogênea por princípio, a de uma parcela dos sem-parcela que manifesta ela mesma, em última instância, a pura contingência da ordem, a igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante. Existe política quando existe um lugar e formas para o encontro entre dois processos heterogêneos. O primeiro é o processo policial no sentido que o tentamos definir. O segundo é o processo da igualdade. Entendamos provisoriamente sob esse termo o conjunto aberto das práticas guiadas pela suposição da igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante e pela preocupação de averiguar essa igualdade.

A formulação dessa oposição exige algumas precisões e acarreta alguns corolários. Antes de tudo, não faremos da ordem policial assim definida a noite onde tudo se eqüivale. A prática dos citas de furar os olhos de seus escravos e a das estratégias modernas da informação e da comunicação que, ao contrário, abrem infinitamente os olhos, prendem-se ambas à polícia. Não tiraremos de forma alguma a conclusão niilista de que uma e outra se eqüivalem. Nossa situação é em tudo melhor que a dos escravos dos citas. Há a polícia menos boa e a melhor — não sendo a melhor, aliás, a que segue a ordem supostamente natural das sociedades ou a ciência dos legisladores, mas a que os arrombamentos da lógica igualitária vieram na maioria das vezes afastar de sua lógica “natural”. A polícia pode proporcionar todos os tipos de bens, e uma polícia pode ser infinitamente preferível a uma outra. Isso não muda sua natureza, que é a única coisa aqui que está em questão. O regime da opinião sondada e da exibição permanente do real é hoje a forma comum da polícia nas sociedades ocidentais. A polícia pode ser doce e amável. Continua sendo, mesmo assim, o contrário da política, e convém circunscrever o que cabe a cada uma delas. É assim que muitas questões tradicionalmente repertoriadas como questões sobre as relações da moral e da política só tratam, a rigor, das relações da moral e da polícia. Saber, por exemplo, se todos os meios são bons para assegurar a tranqüilidade da população e a segurança do Estado é uma questão que não depende do pensamento político — o que não significa que não possa fornecer o lugar de uma intervenção transversal da política. É assim também que a maior parte das medidas que nossos clubes e laboratórios de “reflexão política” imaginam para mudar ou renovar a política aproximando o cidadão do Estado ou o Estado do cidadão oferece, na verdade, à política sua mais simples alternativa: a da simples polícia. Pois é uma figuração da comunidade própria à polícia aquela que identifica a cidadania como propriedade dos indivíduos passível de se definir numa relação de maior ou menor proximidade entre o seu lugar e o do poder público. Quanto à política, ela não conhece relação entre os cidadãos e o Estado. Ela conhece apenas dispositivos e manifestações singulares pelos quais às vezes há uma cidadania que nunca pertence aos indivíduos como tais.

Não se deve esquecer também que, se a política emprega uma lógica totalmente heterogênea à da polícia, está sempre amarrada a ela. A razão disso é simples. A política não tem objetos ou questões que lhe sejam próprios. Seu único princípio, a igualdade, não lhe é próprio e não tem nada de político em si mesmo. Tudo o que ela faz é dar-lhe uma atualidade sob a forma de caso, inscrever, sob a forma de litígio, a averiguação da igualdade no seio da ordem policial. O que constitui o caráter político de uma ação não é seu objeto ou o lugar onde é exercida mas unicamente sua forma, a que inscreve a averiguação da igualdade na instituição de um litígio, de uma comunidade que existe apenas pela divisão. A política encontra em toda parte a polícia. Ainda se deve pensar esse encontro como encontro dos heterogêneos. Deve-se para isso renunciar ao benefício de alguns conceitos que asseguram por antecipação a passagem entre os dois campos. O conceito de poder é o primeiro desses conceitos. Foi ele que permitiu, outrora, que uma certa boa vontade militante assegurasse que “tudo é político”, já que por toda parte há relações de poder. A partir disso podem separar-se a visão sombria de um poder presente em toda parte e a todo instante, a visão heróica da política como resistência ou a visão lúdica dos espaços de afirmação criados por aqueles e aquelas que viram as costas à política e a seus jogos de poder. O conceito de poder permite concluir de um “tudo é policial” um “tudo é político”. Ora, a conseqüência não é boa. Se tudo é político, nada o é. Se então é importante mostrar, como Michel Foucault o fez magistralmente, que a ordem policial se estende para muito além de suas instituições e técnicas especializadas, é igualmente importante dizer que nenhuma coisa é em si política, pelo único fato de exercerem-se relações de poder. Para que uma coisa seja política, é preciso que suscite o encontro entre a lógica policial e a lógica igualitária, a qual nunca está preconstituída.

Nenhuma coisa é então por si política. Mas qualquer coisa pode vir a sê-lo se der ocasião ao encontro das duas lógicas. Uma mesma coisa — uma eleição, uma greve, uma manifestação — pode dar ensejo à política ou não dar nenhum ensejo. Uma greve não é política quando exige reformas em vez de melhorias ou quando ataca as relações de autoridade em vez da insuficiência dos salários. Ela o é quando reconfigura as relações que determinam o local de trabalho em sua relação com a comunidade. O lar pôde se tornar um lugar político, não pelo simples fato de que nele se exercem relações de poder mas porque se viu arguido no interior de um litígio sobre a capacidade dás mulheres à comunidade. Um mesmo conceito — a opinião ou o direito, por exemplo — pode designar uma estrutura do agir político ou uma estrutura da ordem policial. E assim que a mesma palavra opinião designa dois processos opostos: a reprodução das legitimações de Estado sob a forma de “sentimentos” dos governados ou a constituição de uma cena em que se arma o litígio desse jogo de legitimações e de sentimentos; a escolha entre respostas propostas ou a invenção de uma questão que ninguém se colocava. Mas é preciso acrescentar que essas palavras podem também designar, e designam na maioria das vezes, o próprio entrelaçamento das lógicas. A política age sobre a polícia. Ela age em lugares e com palavras que lhes são comuns, se for preciso reconfigurando esses lugares e mudando o estatuto dessas palavras. O que é habitualmente colocado como o lugar do político, ou seja, o conjunto das instituições do Estado, justamente não é um lugar homogêneo. Sua configuração é determinada por um estado das relações entre a lógica política e a lógica policial. Mas é também, é claro, o lugar privilegiado onde sua diferença se dissimula na pressuposição de uma relação direta entre a arkhé da comunidade e a distribuição das instituições, das archai que efetuam o princípio.

Nenhuma coisa é em si política, pois a política só existe por um princípio que não lhe é próprio, a igualdade. O estatuto desse “princípio” deve ser precisado. A igualdade não é um dado que a política aplica, uma essência que a lei encarna nem um objetivo que ela se propõe atingir. E apenas uma pressuposição que deve ser discernida nas práticas que a põem em uso. Assim, no apólogo do Aventino, a pressuposição igualitária deve ser discernida até no discurso que pronuncia a fatalidade da desigualdade. Menênio Agripa explica aos plebeus que eles são apenas os membros estúpidos de uma pólis cujo coração são os patrícios. Mas, para ensinar-lhes assim seu lugar, deve pressupor que os plebeus entendam seu discurso. Deve pressupor essa igualdade dos seres falantes que contradiz a distribuição policial dos corpos colocados em seu lugar e estabelecidos em sua função.

Concedamos, de antemão, aos espíritos ponderados, para os quais igualdade rima com utopia enquanto desigualdade evoca a sadia robusteza das coisas naturais: essa pressuposição é mesmo tão vazia quanto eles a descrevem. Não tem por si mesma nenhum efeito particular, nenhuma consistência política. Pode-se até duvidar de que chegue um dia a ter esse efeito e essa consistência. Melhor ainda, os que levaram essa dúvida a seu limite extremo são os partidários mais resolutos da igualdade. Para que haja política, é preciso que a lógica policial e a lógica igualitária tenham um ponto de encontro. Essa consistência da igualdade vazia só pode ser ela mesma uma propriedade vazia, como o é a liberdade dos atenienses. A possibilidade ou a impossibilidade da política joga-se aí. E também aí que os espíritos ponderados perdem seus referenciais: para eles, são as noções vazias de igualdade e de liberdade que impedem a política. Ora, o problema é estritamente o inverso: para que haja política, é preciso que o vazio apolítico da igualdade de qualquer pessoa com qualquer pessoa produza o vazio de uma propriedade política como a liberdade do demos ateniense. É uma suposição que se pode rejeitar. Analisei num outro trabalho a forma pura dessa rejeição na obra do teórico da igualdade das inteligências e da emancipação intelectual, Joseph Jacotot [5]. Ele opõe radicalmente a lógica da pressuposição igualitária à da agregação dos corpos sociais. Para ele sempre é possível fazer prova dessa igualdade sem a qual nenhuma desigualdade pode ser pensada, mas sob a estrita condição de que essa prova seja sempre singular, que seja a cada vez a reiteração do puro traçado de sua verificação. Essa prova sempre singular da igualdade não pode consistir em nenhuma forma de vínculo social. A igualdade vira seu contrário, tão logo ela quer inscrever-se num lugar da organização social e estatal. É assim que a emancipação intelectual não pode institucionalizar-se sem tornar-se instrução do povo, isto é, organização de sua minoria perpétua. Assim, os dois processos devem continuar absolutamente estranhos um ao outro, constituindo duas comunidades radicalmente diferentes, mesmo que sejam compostas pelos mesmos indivíduos, a comunidade das inteligências iguais e a dos corpos sociais agregados pela ficção desigualitária. Eles nunca podem entrelaçar-se, a não ser transformando a igualdade em seu contrário. A igualdade das inteligências, condição absoluta de toda comunicação e de toda ordem social, não poderia causar efeito nessa ordem pela liberdade vazia de nenhum sujeito coletivo. Todos os indivíduos de uma sociedade podem ser emancipados. Mas essa emancipação — que é o nome moderno do efeito de igualdade — nunca produzirá o vazio de alguma liberdade pertencente a um demos ou a qualquer outro sujeito do mesmo tipo. Na ordem social, não poderia haver vazio. Há apenas o pleno, apenas pesos e contrapesos. A política não é, assim, o nome de nada. Não pode ser outra coisa senão a polícia, isto é, a denegação da igualdade. O paradoxo da emancipação intelectual nos permite pensar o nó essencial do logos com o dano, a função constitutiva do dano para transformar a lógica igualitária em lógica política. Ou a igualdade não causa nenhum efeito na ordem social. Ou causa efeito sob a forma específica do dano. A “liberdade” vazia que faz dos pobres de Atenas o sujeito político demos não é outra coisa senão o encontro das duas lógicas. Não é outra coisa senão o dano que institui a comunidade como comunidade do litígio. A política é a prática na qual a lógica do traço igualitário assume a forma do tratamento de um dano, onde ela se torna o argumento de um dano principial que vem ligar-se a tal litígio determinado na divisão das ocupações, das funções e dos lugares. Ela existe mediante sujeitos ou dispositivos de subjetivação específicos. Estes medem os incomensuráveis, a lógica do traço igualitário e a da ordem policial. Fazem-no unindo ao nome de tal grupo social o puro título vazio da igualdade de qualquer pessoa com qualquer pessoa. Fazem-no sobre-impondo à ordem policial que estrutura a comunidade uma outra comunidade que só existe por e para o conflito, uma comunidade que é a do conflito em torno da própria existência do comum entre o que tem parcela e o que é sem parcela.

A política é assunto de sujeitos, ou melhor, de modos de subjetivação. Por subjetivação vamos entender a produção, por uma série de atos, de uma instância e de uma capacidade de enunciação que não eram identificáveis num campo de experiência dado, cuja identificação portanto caminha a par com a reconfiguração do campo da experiência. Formalmente, o ego sum, ego existo cartesiano é o protótipo desses sujeitos indissociáveis de uma série de operações implicando a produção de um novo campo de experiência. Toda subjetivação política se parece com essa fórmula. Ela é um nos sumus, nos existimus. O que significa que o sujeito que ela faz existir tem nem mais nem menos que a consistência desse conjunto de operações e desse campo de experiência. A subjetivação política produz um múltiplo que não era dado na constituição policial da comunidade, um múltiplo cuja contagem se põe como contraditória com a lógica policial. Povo é o primeiro desses múltiplos que desunem a comunidade dela mesma, a inscrição primária de um sujeito e de uma esfera de aparência de sujeito no fundo do qual outros modos de subjetivação propõem a inscrição de outros “existentes”, de outros sujeitos do litígio político. Um modo de subjetivação não cria sujeitos ex nihilo. Ele os cria transformando identidades definidas na ordem natural da repartição das funções e dos lugares em instâncias de experiência de um litígio. “Operários” ou “mulheres” são identidades aparentemente sem mistério. Todo mundo vê de quem se trata. Ora, a subjetivação política arranca-os dessa evidência, colocando a questão da relação entre um quem e um qual na aparente redundância de uma proposição de existência. “Mulher” em política é o sujeito de experiência — o sujeito desnaturado, desfeminizado — que mede a distância entre uma parcela reconhecida — o da complementaridade sexual — e uma ausência de parcela. “Operário”, ou melhor “proletário”, é da mesma forma o sujeito que mede a distância entre a parcela do trabalho como função social e a ausência de parcela daqueles que o executam na definição do comum da comunidade. Toda subjetivação política é a manifestação de um afastamento desse tipo. A bem conhecida lógica policial que julga que os proletários militantes não são trabalhadores mas desclassificados, e que as militantes dos direitos das mulheres são criaturas estranhas a seu sexo tem, afinal de contas, fundamento. Toda subjetivação é uma desidentificação, o arrancar à naturalidade de um lugar, a abertura de um espaço de sujeito onde qualquer um pode contar-se porque é o espaço de uma contagem dos incontados, do relacionamento entre uma parcela e uma ausência de parcela. A subjetivação política “proletária”, como tentei mostrá-lo em outro local, não é nenhuma forma de “cultura”, de ethos coletivo que ganharia voz. Ela pressupõe, ao contrário, uma multiplicidade de fraturas que separam os corpos operários de seu ethos e da voz que supostamente exprime sua alma, uma multiplicidade de eventos de palavra, quer dizer, de experiências singulares do litígio em torno da palavra e da voz, em torno da divisão do sensível. A “tomada da palavra” não é consciência e expressão de um si mesmo que afirma o seu próprio. Ela é ocupação do lugar onde o logos define outra natureza que a phoné. Essa ocupação pressupõe que destinos de “trabalhadores” sejam de uma maneira ou de outra desviados por uma experiência do poder dos logoi na qual a revivescência de antigas inscrições políticas pode combinar-se com o segredo descoberto do alexandrino. O animal político moderno é antes de tudo um animal literário, preso no circuito de uma literariedade que desfaz as relações entre a ordem das palavras e a ordem dos corpos que determinavam o lugar de cada um. Uma subjetivação política é o produto dessas linhas de fratura múltiplas pelas quais indivíduos e redes de indivíduos subjetivam a distância entre sua condição de animais dotados de voz e o encontro violento da igualdade do logos. [6]

 A diferença que a desordem política vem inscrever na ordem policial pode portanto, em primeira análise, exprimir-se como diferença entre uma subjetivação e uma identificação. Ela inscreve um nome de sujeito como diferente de toda parte identificada da comunidade. Esse ponto pode ser ilustrado por um episódio histórico, uma cena de palavra que é uma das primeiras ocorrências políticas do sujeito proletário moderno. Trata-se de um diálogo exemplar, ocasionado pelo processo movido em 1832 contra o revolucionário Auguste Blanqui. Instado pelo presidente do tribunal a declinar sua profissão, ele responde simplesmente: “proletário”. A essa resposta o presidente objeta de pronto: “Isso não é profissão”, para logo ouvir o acusado replicar: “É a profissão de trinta milhões de franceses que vivem de seu trabalho e que são privados de seus direitos políticos”[7]. O que faz o presidente permitir que o escrivão anote essa nova “profissão”. Nessas duas réplicas pode-se resumir todo o conflito entre a política e a polícia. Tudo aí se liga à dupla acepção de uma mesma palavra, profissão. Para o promotor, encarnando a lógica policial, profissão significa ofício: a atividade que situa um corpo em seu lugar e em sua função. Ora, está claro que proletário não designa nenhum ofício, quando muito um estado vagamente definido de trabalhador braçal miserável que, de qualquer forma, não se ajusta ao acusado. Mas, como político revolucionário, Blanqui dá à mesma palavra uma acepção diferente: uma profissão é uma confissão, uma declaração de pertencimento a um coletivo. Só que esse coletivo tem uma natureza bem particular. A classe dos proletários na qual Blanqui faz profissão de alinhar-se não é de forma alguma identificável a um grupo social. Os proletários não são nem os trabalhadores braçais, nem as classes laboriosas. São a classe dos incontados que só existe na própria declaração pela qual eles se contam como os que não são contados. O nome proletário não define nem um conjunto de propriedades (trabalhador braçal, trabalho industrial, miséria etc.) que seriam igualmente detidas por uma multidão de indivíduos, nem um corpo coletivo, que encarna um princípio, do qual esses indivíduos seriam os membros. Ele pertence a um processo de subjetivação que é idêntico ao processo de exposição de um dano. A subjetivação “proletária” define, numa sobre-impressão em relação à multidão dos trabalhadores, um sujeito do dano. O que é subjetividade não é nem o trabalho nem a miséria, mas a pura contagem dos incontados, a diferença entre a distribuição desigualitária dos corpos sociais e a igualdade dos seres falantes.

Essa é também a razão pela qual o dano exposto no nome de proletário não se identifica de forma alguma à figura historicamente datada da “vítima universal” e a seu pathos específico. O dano exposto pelo proletariado sofredor dos anos 1830 tem a mesma estrutura lógica que o blaberon implicado na liberdade sem princípios desse demos ateniense que se identificava insolentemente ao todo da comunidade. Simplesmente essa estrutura lógica, no caso da democracia ateniense, funciona sob sua forma elementar, na unidade imediata do demos como todo e como parte. A declaração de pertencimento proletário, em contrapartida, explicita o afastamento entre dois povos: o da comunidade política declarada e o que se define por ser excluído dessa comunidade. “Demos” é o sujeito da identidade da parte e do todo. “Proletário”, ao contrário, subjetiva essa parcela dos sem-parcela que torna o todo diferente de si mesmo. Platão insurgia-se contra esse demos que é a contagem do incontável. Blanqui inscreve, sob o nome de proletários, os incontados no espaço em que são contáveis como incontados. A política em geral é feita desses erros de cálculo, é obra de classes que não são classes, que inscrevem sob o nome particular de uma parte excepcional ou de um todo da comunidade (os pobres, o proletariado, o povo) o dano que separa e reúne duas lógicas heterogêneas da comunidade. O conceito de dano não se liga pois a nenhuma dramaturgia de “vitimização”. Faz parte da estrutura original de toda política. O dano é simplesmente o modo de subjetivação no qual a verificação da igualdade assume figura política. Há política por causa apenas de um universal, a igualdade, a qual assume a figura específica do dano. O dano institui um universal singular, um universal polêmico, vinculando a apresentação da igualdade, como parte dos sem-parte, ao conflito das partes sociais. O dano fundador da política é portanto de uma natureza muito particular, que convém distinguir das figuras às quais se costuma assimilá-lo, fazendo assim desaparecer a política no direito, na religião ou na guerra. Distingue-se antes de mais nada do litígio jurídico passível de se objetivar como relação entre partes determinadas, regulável por procedimentos jurídicos apropriados. Isso se deve simplesmente ao fato de que as partes não existem anteriormente à declaração do dano. O proletariado não tem, antes do dano que seu nome expõe, nenhuma existência como parte real da sociedade. Assim, o dano que ele expõe não poderia ser regulado sob a forma de um acordo entre partes. Ele não pode ser regulado porque os sujeitos que o dano político põe em jogo não são entidades às quais ocorreria acidentalmente esse ou aquele dano, mas sujeitos, cuja própria existência é o modo de manifestação desse dano. A persistência desse dano é infinita porque a verificação da igualdade é infinita e porque a resistência de toda ordem policial a essa verificação é principiai. Mas, mesmo esse dano que não é solucionável, nem por isso é intratável. Ele não se identifica nem com a guerra inexpiável nem com a dívida irresgatável. O dano político não se regula — por objetivação do litígio e compromisso entre as partes. Mas é tratado — por dispositivos de subjetivação que o fazem consistir como relação modificável entre partes, como modificação mesmo do terreno no qual o jogo é jogado. Os incomensuráveis da igualdade dos seres falantes e da distribuição dos corpos sociais medem-se um ao outro e essa medida influencia essa própria distribuição. Entre a regulação jurídica e a dívida inexpiável, o litígio político revela um inconciliável que, entretanto, é tratável. Só que esse tratamento ultrapassa todo diálogo de interesses respectivos como toda reciprocidade de direitos e de deveres. Ele passa pela constituição de sujeitos específicos que assumem o dano, conferem-lhe uma figura, inventam suas formas e seus novos nomes e conduzem seu tratamento numa montagem específica de demonstrações: de argumentos “lógicos” que são ao mesmo tempo reagenciamentos da relação entre a palavra e sua contagem, da configuração sensível que recorta os campos e os poderes do logos e da phoné, os lugares do visível e do invisível, e articula-os na repartição das partes e das parcelas. Uma subjetivação política torna a recortar o campo da experiência que conferia a cada um sua identidade com sua parcela. Ela desfaz e recompõe as relações entre os modos do fazer, os modos do ser e os modos do dizer que definem a organização sensível da comunidade, as relações entre os espaços onde se faz tal coisa e aqueles onde se faz outra, as capacidades ligadas a esse fazer e as que são requeridas para outro. Ela pergunta se o trabalho ou a maternidade, por exemplo, são assunto privado ou assunto social, se essa função pública implica uma capacidade política. Um sujeito político não é um grupo que “toma consciência” de si, se dá voz, impõe seu peso na sociedade. E um operador que junta e separa as regiões, as identidades, as funções, as capacidades que existem na configuração da experiência dada, quer dizer, no nó entre as divisões da ordem policial e o que nelas já se inscreveu como igualdade, por frágeis e fugazes que sejam essas inscrições. É assim, por exemplo, que uma greve operária, na sua forma clássica, pode juntar duas coisas que não têm “nada a ver” uma com a outra: a igualdade proclamada pelas Declarações dos Direitos do Homem e um obscuro tópico de horas de trabalho ou de regulamento da oficina. O ato político da greve é, então, construir a relação entre essas coisas que não têm relação, é fazer ver junto, como objeto do litígio, a relação e a não-relação. Essa construção implica toda uma série de deslocamentos na ordem que define a “parte” do trabalho: ela pressupõe que uma multiplicidade de relações de indivíduo (o empregador) a indivíduo (cada um dos seus empregados) seja posta como relação coletiva, que o lugar privado do trabalho seja posto como pertencente ao campo de uma visibilidade pública, que o próprio estatuto da relação entre o ruído (das máquinas, dos gritos ou dos sofrimentos) e a palavra argumentativa que configura o lugar e a parcela do trabalho como relação privada seja reconfigurado. Uma subjetivação política é uma capacidade de produzir essas cenas polêmicas, essas cenas paradoxais que revelam a contradição de duas lógicas, ao colocar existências que são ao mesmo tempo inexistências ou inexistências que são ao mesmo tempo existências. Foi o que Jeanne Deroin fez de maneira exemplar quando, em 1849, se candidatou a uma eleição legislativa à qual não podia candidatar-se, isto é, demonstrando a contradição de um sufrágio universal que excluía o seu sexo dessa universalidade. Ela se mostra e mostra o sujeito “as mulheres” como necessariamente incluído no povo francês soberano que goza do sufrágio universal e da igualdade de todos perante a lei e ao mesmo tempo como radicalmente excluído. Essa demonstração não é apenas a denúncia de uma inconseqüência ou de uma mentira do universal. É também a encenação da contradição mesma da lógica policial e da lógica política que está no cerne da definição republicana de comunidade. A demonstração de Jeanne Deroin não é política no sentido em que diria que o lar e a domesticidade são também coisa “política”. O lar e o espaço doméstico não são mais políticos em si mesmos que a rua, a fábrica ou a administração. Sua demonstração é política porque evidencia o extraordinário imbróglio que marca a relação republicana entre a parcela das mulheres e a definição mesma do comum da comunidade. A república é, ao mesmo tempo, o regime fundado numa declaração igualitária que não conhece diferença de sexos e a idéia de uma complementaridade das leis e dos costumes. Segundo essa complementaridade, a parcela das mulheres é a dos costumes e da educação pelos quais se formam os espíritos e corações dos cidadãos. A mulher é mãe e educadora, não somente dos futuros cidadãos que são seus filhos mas também, e particularmente para a mulher pobre, de seu marido. O espaço doméstico é assim ao mesmo tempo o espaço privado, separado do espaço da cidadania, e o espaço compreendido na complementaridade das leis e dos costumes pelos quais se define a realização da cidadania. A aparição indevida de uma mulher na cena eleitoral transforma em modo de exposição de um dano, no sentido lógico, esse topos republicano das leis e dos costumes que envolve a lógica policial na definição do político. Construindo a universalidade singular, polêmica, de uma demonstração, ela faz o universal da república aparecer como universal particularizado, torcido em sua própria definição pela lógica policial das funções e das parcelas. Isso quer dizer, inversamente, que ela transforma em argumentos do nos sumos, nos existimus feminino todas essas funções, “privilégios” e capacidades que a lógica policial, assim politizada, atribui às mulheres mães, educadoras, curadoras e civilizadoras da classe dos cidadãos legisladores.

É assim que o relacionar duas coisas sem relação torna-se a medida do incomensurável entre duas ordens: a da distribuição desigualitária dos corpos sociais numa divisão do sensível e a da capacidade igual dos seres falantes em geral. Trata-se, mesmo, de incomensuráveis. Mas esses incomensuráveis estão bem medidos um no outro. E essa medida refigura as relações das parcelas e das partes, os objetos passíveis de provocar litígio, os sujeitos capazes de articulá-lo. Ela produz, ao mesmo tempo, inscrições novas da igualdade em liberdade e uma esfera de visibilidade nova para outras demonstrações. A política não é feita de relações de poder, é feita de relações de mundos.

Notas.

1. Ballanche, “Formule générale de tous les peuples appliquée à l’histoire dupeuple romain”, Revue de Paris, setembro de 1830, p. 94.

2. Em francês, partage, que tem as duas conotações apontadas acima. (N. do revisor técnico).

3. Ballanche, op. cit., p. 75.

4. Michel Foucault, “Omnes et singulatim: vers une critique de la raison politique”, Dits et Écrits, t. IV, pp. 134-161.

5. J. Rancière, Le Maitre ignorant, Fayard, 1987.

6. Que é ao mesmo tempo a perda, a passagem-para-além, no sentido do Untergang nietzschiano, foi o que tentei mostrar em La Nuit des prolétaires, Fayard, 1981. Sobre a lógica dos acontecimentos de palavra, permito-me remeter também a meu livro Les Noms de Vhistoire, Le Seuil, 1992. Essa noção me parece ter relação com o que Jean-Luc Nancy pensa sob a noção de “tomada de palavra” em Le sens du monde, Galilée, 1993.

7. Défense du citoyen Louis-Auguste Blanqui devant la Cour d’assises, Paris, 1832, p. 4.

*A versão do escrito em língua portuguesa foi originalmente publicada em: RANCIÈRE, Jacques. O Desentendimento: Política e Filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996. Tradução de Ângela Leite Lopes.

**A foto partilhada foi capturada pelo fotógrafo Ivonaldo Alexandre da Gazeta do Povo, o qual presenciou a ação brutal da polícia militar contra professores e manifestas na cidade de Curitiba, no último dia 29 de Abril de 2015.

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