PICICA: "Proponho um exercício para contribuir com
a compreensão da atual conjuntura brasileira: a articulação entre
fortuna e virtude. Apresento que a delicada situação política,
nitidamente marcada pelo crescimento e fortalecimento da agenda
conservadora na sociedade e nas instituições, é produto das limitações
do projeto dos governos petistas entre 2013 e 2015. Vejamos."
O triunfo das pequenas virtudes
Comparo a sorte a um desses rios impetuosos que, quando se irritam, alagam as planícies, arrasam as árvores e a casas, arrastam terras de um lado para levar a outro: todos fogem deles, cedem ao seu ímpeto, sem poder detê-lo em parte alguma. Mesmo assim, nada impede que voltando a calma, os homens tomem providências construam barreiras e diques, de modo que, quando a cheia se repetir, ou o rio flua por um canal, ou sua força se torne menos livre e danosa. (Maquiavel, O príncipe, 1513)
Proponho um exercício para contribuir com
a compreensão da atual conjuntura brasileira: a articulação entre
fortuna e virtude. Apresento que a delicada situação política,
nitidamente marcada pelo crescimento e fortalecimento da agenda
conservadora na sociedade e nas instituições, é produto das limitações
do projeto dos governos petistas entre 2013 e 2015. Vejamos.
A fortuna privilegiou a maior parte do
mandato de Lula, conseguindo assim efetivar uma agenda social que
beneficiou os mais pobres, sem atacar, e até mesmo ampliar, os
privilégios dos mais ricos. No centro deste arranjo esteve a alta dos
preços das mercadorias internacionalizadas (commodities) nas
quais o Brasil especializou-se. A demanda chinesa por estes itens foi
fundamental. Tal situação, vendida como a grande conquista do “lulismo”,
não foi outra coisa senão a possibilidade de apoiar-se em um cenário
favorável internacionalmente. A fortuna desempenhou seu papel.
É verdade. Os governos do PT foram
diferentes daqueles do PSDB, que não teria a mesma atenção com as
demandas sociais. Porém governar melhor que os tucanos não pode ser o
parâmetro de nenhum projeto de fôlego. Não nego que haja positividade
nisso, porém entendo que se tratam de virtudes de baixo perfil, pouco
ousadas, e neste sentido também conservadoras. É louvável que tenham
realizado políticas que alteraram a fisionomia da pobreza no país (só
quem não sabe o que é pobreza é capaz de desconsiderar este fato), porém
creditar mais do que isso seria estelionato analítico. O Brasil ainda
continua dependente externamente e profundamente desigual. Os governos
petistas foram o triunfo das pequenas virtudes.
Pelo menos em quatro momentos nos anos de
governos do PT a correlação de forças foi amplamente favorável a
transformações substanciais, a virtude poderia ter sido revelada. Em
2008, com a crise internacional abriu-se a oportunidade para mudar o
rumo da economia brasileira, nada foi feito. Em 2010, Lula sai do seu
segundo mandato com uma aprovação elevadíssima, fato que poderia ter
sido usado no primeiro governo Dilma, como propulsão para a mudança de
rumo, mais uma vez nada se fez. Em junho de 2013, com a mobilização
massiva por uma nova orientação para o Estado e a democracia brasileira
poderia ter sido o estopim para mudanças significativas, a postura
recuada se repetiu. A vitória de Dilma no segundo turno em 2014,
resultado da ampla participação voluntária de milhares de pessoas que se
somaram no esforço contra Aécio e sua política, fato que poderia ser
utilizado para estabelecer um novo arranjo de governabilidade, tendo a
mobilização da sociedade como centro; de novo a timidez imperou. Faltou
virtude.
Não tomar medidas para enfrentar os
riscos externos é a prova dos nove da ausência de virtude. Não há
conjuntura favorável para aqueles que não estão dispostos à ousadia; tal
postura significa renunciar a própria ideia de governo e deixar que a
sorte (ou a direita) comande o país. Então para que pretender-se a
governo se o que se faz é renunciá-lo cotidianamente, por atos, mas
sobretudo por omissões?
Os diques, como advertia Maquiavel a
cinco séculos, não foram preparados e a maré conservadora agora assola
as planícies e o Planalto brasileiro. Não é hora de defendermos pequenas
virtudes, mas reencontrar a virtude à esquerda, que pode não ser
visível ainda, mas conspira em favor do futuro.
Fonte: Brasil em 5
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