dezembro 12, 2006

Adeus, Pátria amada!

Banca de tacacá da Tia Pátria,
Pça dos Remédios, Manaus-AM, 1958













Tia Pátria, aos fundos, e seu sobrinho
Rogelito, no primeiro plano.


Adeus, Pátria amada!

Aos 85 anos, acaba de desaparecer o último ícone da Praça dos Remédios: Pátria Barbosa, minha tia. Por insistência, morreu no mesmo lugar em que viu desaparecer, com a instalação da Zona Franca de Manaus, sua comunidade de origem, composta por uma minoria de portugueses e uma grande maioria de sírio-libaneses.

Como não se valer do único bálsamo oferecido pela cultura cristã, tão pródiga em imagens poéticas, para aliviar a dor da perda dos nossos entes queridos? Embora Tia Pátria, nem de longe lembre a Irene de Manoel Bandeira, que tão logo morreu foi imortalizada em versos singelos, certamente é no céu dos cristãos que ela finalmente encontrará o descanso eterno.

Merecido descanso para quem enfrentou uma vida dura com a morte do meu avô, o imigrante português Antônio Barbosa, funcionário da firma J.G. Araújo & Cia. Ltda. O nome de batismo dado por ele – Pátria –, mais do que um símbolo nostálgico da terra amada foi um marco no qual ergueu-se uma forte personalidade que nunca esmoreceu diante das adversidades.

A imagem do pai amoroso foi transmitida aos cinco sobrinhos que ajudou a criar. Como não se enternecer com a história contada e recontada ocorrida em 21 de maio de 1936, quando, ao completar 15 anos de idade, recebeu de presente um vestidinho novo e um passeio de catraia pela baía do Rio Negro? Em sua companhia, a irmã Luzitânia e o pai querido, que morreria cinco meses depois.

Como não lembrar de uma Manaus que seus sobrinhos ainda alcançaram, nos anos 1950-1960, no relato de suas caminhadas pelos arrabaldes da cidade na companhia do pai? Fins de semana inesquecíveis, registradas para sempre na sua alma de menina-moça, época em que a cidade possuía invejável qualidade de vida, com igarapés límpidos e gelados. No trajeto de bonde para Flores, nas agradáveis manhãs de domingo, parada obrigatória, após a travessia da ponte dos Bilhares, no local que passaria a ser conhecido por Chapada Recreativa Clube (atual Clube Sírio Libanês) - balneário que o pai ajudou a construir com a comunidade sírio-libanesa.

Todos os seus sobrinhos apreciam uma qualidade reconhecida por quantos a conheceram: a mulher de fibra que ela foi. O arquiteto João Bosco Chamma, meu amigo de infância, diz que com um pouco mais de estudo e ela seria uma executiva admirável.

Fibra não lhe faltou para enfrentar mais uma perda, a da irmã Luzitânia, atingida por tuberculose, uma doença da pobreza. Fibra não lhe faltou para atravessar os anos difíceis da 2ª. Guerra Mundial quando eram escassos os gêneros alimentícios, obrigando a família a alimentar-se de borrachos (filhotes de pombo). Fibra não lhe faltou quando, em 1953, no ano que nasci, com a morte da mãe, Tereza de Jesus Barbosa, também imigrante portuguesa, manteve a banca de tacacá que desde os anos 1940 garantia o pão na mesa da modesta casinhola, na rua dos Barés, onde nasceu e morreu - única herança material deixada pelo pai querido.

Sua banca de tacacá foi referência na Praça dos Remédios até o final dos anos 1960. Através dela educou sua irmã Tereza Barbosa, minha mãe, na Escola Normal do Amazonas (atual Instituto de Educação). Através dela ouviu histórias que lhe enriqueceram a sensibilidade. Através dela serviu quase três gerações de descendentes sírio-libaneses, além dos estudantes que freqüentavam a Faculdade de Direito, onde fez muitos amigos. Através dela, construiu uma consciência política exemplar e foi, ao seu modo, uma espécie de terapeuta popular.

Mulher de comunicação espontânea, nunca seus amigos políticos, desembargadores, arquitetos, médicos, advogados estranharam a invulgar saudação: “Como vai, seu salafra?” Reunidas essas qualidades - a da comunicadora espontânea, da ouvinte atenta, da cuidadora solidária, não foi à toa que dos seus saíram novos cuidadores e comunicadores, todos muito orgulhosos da origem trabalhadora de Tia Pátria. Adeus, Pátria amada, querida!

Manaus, Dezembro de 2006.
Rogelio Casado, psicoterapeuta
Coordenador do Programa Estadual de Saúde Mental
E-mail: rogeliocasado@uol.com.br Posted by Picasa

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