Poeta Anibal Beça
José P. di Cavalcanti Jr. entrevista Anibal Beça
Pelos 40 anos de literatura, 45 de música e 60 de idade
Anibal Beça (13.09.1946), poeta e compositor amazonense, achou maneira singular para festejar seu aniversário e, datas comemorativas na poesia e na música. Fez duas sessões de autógrafos, lançando 4 livros, 3 inéditos, reunidos em dois volumes pela Editora Valer: Noite Desmedida, Terna colheita, Folhas da selva e Chá das quatro. Além de um show musical. Confira abaixo a entrevista concedida ao poeta capixaba José P. di Cavalcanti Jr.
di - Li muito de sua obra para elaborar perguntas inteligentes, e demorei. Deparei-me, de forma frontal, com a minha vaidade porque me pareceu existir uma simplicidade monumental em tudo o que li. Que poder é este? É proposital ou é algo ligado à convivência com esta vastidão amazônica?
AB - Todo homem tem sua porção de vaidade. Todo poeta se mira nas mesmas águas de Narciso. É natural e é comum ao ser humano.
Com essa suspeita firmada sobre um existir de simplicidade em minha obra, você acaba de pôr mais brasa na fogueira da minha dita cuja (vaidade), sempre bem humorada.
Há 55 anos persigo o simples que existe em mim. Dizendo melhor: o simples que reside e convive comigo. É um projeto e um ideário de vida, que continuo a buscar. Em alguns momentos, sei que alcanço esse objetivo. Mas esse arcabouço teórico, no plano de uma estética de uma simplicidade ansiada, proposital nesse sentido, reflete os hábitos de um homem de vida simples. Tirante meu lado gourmet, sou uma pessoa de hábitos simples: no vestir, no falar, no conviver. O único refinamento a que me exijo é com o que eu faço em literatura, poesia, música, teatro, televisão. Aí vou buscar e me socorrer da obsessão compulsiva deixada na legenda desse grande gênio da humanidade Leonardo Da Vinci: "ostinato rigore". Tudo que realizo tem sido feito com obstinado rigor, em cima de muito trabalho. Enfim, só se chega ao simples com muito trabalho.
Sendo um habitante dessa imensa planície amazônica, envolta pela floresta com sua multiplicidade intrincada de lianas, de verdes, navegante das águas grandes e baixas das várzeas e, sobretudo, aprendiz desse mágico mundo habitado por entidades vivas e semeadas de sonhos no imaginário coletivo, tudo o que é grande, passa a ser pequeno. É um sentimento de impotência diante de tanta grandeza. Primeira grande lição de humildade dessa convivência. E como estamos próximos, muitas vezes nos distanciamos dessa realidade. Um paradoxo interessante. Daí, que o olhar estrangeiro, de passagem, em viagem de tombadilho, muitas vezes se beneficia mais das coisas vistas por aqui. É natural. Tudo o que vêem é novidade, é surpresa. Tudo o que vemos, está conosco todos os dias, embora nos surpreendamos todos os dias. Quer ver um exemplo disso em poesia? O belíssimo poema "Cobra Norato", escrito pelo poeta gaúcho Raul Bopp. Como eu gostaria de ter escrito esse poema... Para os que curtem a cabala judaica, remeto a minha santa inveja à Cabala da Inveja...com a ressalva do engenho e do talento do poeta gaúcho. Está claro que, somente o seu olhar estrangeiro, não seria suficiente para realizar essa obra de arte.
di - Estabelecer uma seqüência de perguntas interligadas não me pareceu uma coisa lógica depois de ler a sua poesia. À medida que eu lia, chegava a clareiras de compreensão da obra e, mais surpreendente, de muito de mim. Você tem consciência disso, você, poeta amazônico que acaba por levar-me a interligar perguntas como interligados parecem ser todos os igarapés? É proposital ou vem de uma intuição natural de um habitante, você mesmo, de uma clareira em meio a tanta floresta densa?
AB - O rio é um poema de correnteza serena, quando ele chega ao mar, se vê levado ao colo embalado nos braços das ondas. É dança de conflitos num ritmo de confrontos. Se ele veio vindo, molusco de veias lânguidas, desde os muitos igarapés, lambendo e levando histórias de margens com seu sono de areia? Ah, aí a sabença se faz marítima, por que íntima da grande dança, no ritmo das águas abissais , lá do fundão da alma, do perau do inaudito, revelando-se o mágico tradutor do mistério falador dos malditos e do sonho cantador dos benditos. Uma digressão bretoniana, para lhe responder armado da loucura poética: a metáfora.
Em meio a tanto cipoal da floresta, se não tomamos cuidados, nos enredamos sem claridade nas clareiras obscuras da selva que não é selvagia. Aí perdemos a oportunidade de servir na difícil bandeja da simplicidade. Àquela, que oferece o simples pasto no repasto simples. Cheguei ao jogo de palavras, brincando com elas, assim como construo meu poema. O mesmo que venho construindo há 55 anos. Rito recorrente ao meu exercício de poeta.
Nunca fiz planos de estrutura para meus livros, mas desde o primeiro, "Convite Frugal" (1966), sei quando chego ao término de cada um deles. Tomado de espanto e surpresa, é verdade, porque sem planejar eis que os poemas se me apresentam ligados como se fossem um único e longo poema, com princípio, meio e fim. E, para minha alegria, acrescido de uma outra leitura enriquecedora; esta, aleatória: todos os poemas podem ser lidos separadamente, como um monobloco, sem prejuízo de entendimento em sua leitura. Mas não é difícil de entender porque isso se dá. Se existe um segredo, ele reside no fato da unidade temática: o homem e sua história; o mundo e seus mistérios; tratados dialeticamente. A universalidade acontece através dos temas comuns: morte-vida, tempo, alegria-tristeza. Isso ocorre tanto nos poemas ditos confessionais, ou em outros de fôlego épico. A amarração sempre é lírica. O tratamento do verso é dinâmico. Jogo com versos livres, brancos, rimados ou metrificados, sempre apoiados no tripé da tradição: fanopéia, logopéia e melopéia.
di - Arte, poesia e música em todas as formas de canto tal e qual os cantares diversos de sua rica terra, foi o que li. Ao que é universal, você empresta regionalismo e continua por todo o mundo ainda mais universal. É, malgrado o juntar-se em cidades ou em agrupamentos habitacionais, a contaminação pelo que traduz de solidão tanta floresta, tanta água, tanta beleza e tanto mistério, ou isto pouco representa, sendo apenas uma condição inerente ao homem-poeta ou até mesmo simplesmente ao homem em desejo, no entanto, permanente de poesia?
AB - Somente quando fiz 40 anos, me assumi poeta. Não porque me auto-afirmasse, à época, num poema-testamento dedicado aos meus 3 filhos; senão porque já estava me incomodando com os outros, os amigos, os críticos, que assim me rotulavam: poeta pra cá, poeta pra lá. Convida o poeta para fazer uma conferência e coisas que tais. Então me disse a mim mesmo: é camarada, não adianta fugir. Lembrei-me de Thiago de Mello, que sempre diz:
- Quem nasce marcado com a "tara", não escapa à sina. Coisa que ele sempre me lembrava e, ainda lembra.
A questão de ser ou não poeta não me incomodava. O que me incomodava é que a poesia foi a terceira arte a se manifestar em mim. Antes da poesia já existiam as artes-plásticas e a música. Eu me considerava mais pintor e músico do que poeta. E não concordava, como não concordo até hoje, de que artista não se faz, já nasce feito. Conversa. Artista só se faz com muito trabalho. Suor, suor, suor. A velha questão da transpiração versus inspiração. Só, que eu não me dedicava tanto à poesia. Estudá-la, trabalhá-la. Já com as outras duas manifestações, era um mouro no trabalho duro. Claro, que com o tempo houve, finalmente, a inversão de valores e de preferência. A música ficou meio como coadjuvante e, quanto à pintura, aposentei os pincéis. E, para minha alegria, meu filho primogênito é hoje o pintor Turenko Beça, construindo uma bela carreira. Mas as duas são e estão muito presentes na elaboração dos meus poemas. Como sou multimídia, também elas me acompanham no teatro, na publicidade e no vídeo.
O regionalismo presente em meus livros (evidenciados mais em "Convite Frugal", 1966; "Filhos da Várzea, 1984 , Noite Desmedida e Mínima Fratura, 1987) não corta no figurino nativista à maneira armorial do gênio Ariano Suassuna. Mas está bem próximo pela verticalidade universal.
A solidão não é sentimento só de insulado. Coisa que nunca me senti, mesmo morando em plena Amazônia, distante geograficamente do eixo dos acontecimentos brasileiros: Rio-Sampa. A solidão é inerente ao ser humano. O que se faz diferente no escritor, é que o próprio ato de escrever é solitário. E cantar a solidão do Homem é outra recorrência em minha obra. Hoje temos até uma solidão muito especial, a qual nós dois somos co-partícipes: a solidão internáutica.
di - São fortes as presenças de tons verdes em sua obra. Igualmente, os sons e os caminhos das águas. Posso estar a enganar-me mas toda foi a minha impressão que seus personagens surgem das folhas, das torrenciais chuvas passageiras, da quase impenetrabilidade da floresta, de todo este mundo vasto e restrito a esta parte do mundo onde você mora. Você conseguiria ver-se, como poeta, como compositor, inteiramente distanciado disso? Quanta falta lhe faria posto que sabemos que o poeta sobreviveria e cantaria, então, esta saudade?
Parece sem propósito esta pergunta mas ela me surgiu por ocasião de minha leitura de seus versos "E a palavra de pedra / em pedra se afirmava" ocasião em que eu, leitor, vinha impregnado de idéias de cantos indígenas e de sons de matas virgens banhadas por águas mágicas e traduzidos em poesia por um homem que vive onde não existem pedras assim.
AB - É interessante essa questão de cores e sons. Já tive minha poesia analisada sobre esse prisma pelo crítico Oscar D'Ambrosio. Quem tiver interesse, sugiro a leitura desse artigo, que se encontra em minha página pessoal http://www.bmtech.com.br/anibal
O universo do poeta, seja ele da Amazônia ou do deserto do Saara, sempre é transgressor em sua inventiva. No sentido de fugir às características do entorno onde o poeta vive. É evidente, que na maioria de seus poemas, ou mesmo na minoria, a natureza de seu ambiente sempre aparece mesmo quando o tema, aparentemente, não é convocado por esse apelo. O inconsciente se encarrega no afloramento desses registros de sua memória visual, olfativa, sensorial como um todo. Nem sempre isso é concorde com que às vezes o poeta deseja para seu poema. Mas o poeta não é dono do poema. Na maioria das vezes é domado por ele, ou guiado por ele como se fosse um cavalo de santo. E isso nada tem com espiritismo. É apenas a tentativa de exemplificar algumas nuances do processo criativo. O trabalho do poeta aparece na arte final. Que é a arte de cortar os excessos ou de acrescentar o que seu estro lhe diz que falta. E isso é transpiração em cima da inspiração.
Claro, que existem situações em que essa influência ambiental é requisito da base do poema. Como abstrair de "Morte e vida severina" a atmosfera nordestina? Ou, para citar outro belo poema, Yacala, de Alberto da Cunha Melo, que amplia essa influência por que retrata realidades sócio-econômico-culturais comuns a muitas cidades do mundo. A trajetória desse Homem-Yacala, poderia muito bem ter sido alçada na "Favela da Maré" do Rio, nas palafitas do Bodó-na-lama de Manaus, em cidades da África, da Índia, ou até mesmo nos guetos novaiorquinos. Da mesma maneira, a presença das muitas Minas em Drummond, no gauchismo de Nejar, da amazonidade de Elson Farias, Astrid Cabral e João de Jesus Paes Loureiro, da saciologia goiana e os romances goianinos de Gilberto Teles e Afonso Felix de Souza, dos nordestinados de Accioly, da praia do Futuro do taxista Espínola. Os exemplos são muitos. Mas é bom que não esqueçamos, que existem poetas que constroem sua obra com temas em que não há lugar para essa atmosfera regionalista. Fiquemos só no Brasil: Abgar Renault, Ivan Junqueira, Luiz Bacellar, Bruno Tolentino, Affonso Romano de Sant'Anna, Jorge Tufic, Alexei Bueno, Nauro Machado entre muitos.
Adoro minha cidade, a minha Amazônia. Por isso vivo aqui, mas já morei por muitos anos no Rio de Janeiro, estudei no Rio Grande do Sul, e nunca me faltou a visita da poesia. A citação do verso com o ícone 'pedra', faz parte de um grande poema sobre a descoberta da palavra. Mas não ficaria deslocado se fosse num poema ambientado na Amazônia. Não se esqueça que a nossa região é imensa. A região do Alto Rio Negro é farta em pedras. Tanto nas cachoeiras como nos montes. Aliás, onde fica o ponto culminante do Brasil. Roraima também. O único estado amazônico pobre em pedras é o Acre. Mas, nesse caso, os poetas de lá, saberiam como achar as pedras de seus caminhos poéticos.
di - ..."As mãos inventam ventos dóceis"...
..."as mãos semeiam as nervuras"...
Outro aspecto de sua poética, para mim, pelo menos, nunca saber ao certo (e aí reside um indiscutível charme) se você, o artista-poeta, canta mais de tristeza ou de alegria. Então, esta trivial pergunta: como lhe surgem os versos, como lhe chegam as palavras-pedras que sua alma, suas mãos, transformam em nervuras, em ventos?
AB - Parafraseando a nossa grande Cecília Meireles, que este ano comemora-se o seu centenário de nascimento: "não sou alegre nem triste: sou poeta". Virou até truismo dizer-se que o poeta é um fingidor. Tudo por conta do gênio de Tabacaria. Mas as coisas caminham mais ou menos assim: há muito de verdadeiro no fingir. E a recíproca também é sempre... dissimulada. Depende muito, meu caro di Cavalcanti, do humor com que acordamos. No meu caso, procuro me impor a uma disciplina de escrever todos os dias. Nem sempre consigo. Por várias razões. De saúde, inclusive. Sou um diabético rebelde e, você que é médico, sabe muito bem o que representa essa rebeldia. Outras vezes, a poesia é quem se rebela e resolve me dar um descanso. Mas geralmente é ela quem me procura. Ainda bem! Tenho até um poema inédito sobre isso. Aproveito para ilustrar:
SUBMERSO
Não sei viver sem palavras
sonando nos meus ouvidos
de afogado dos peraus.
Inda bem!
Sou procurado
quando não quero emergir
Que fazer? Se não tombar
aos apelos, meu desígnio,
nessa sina de entortado.
Aprendi, dura vivência,
num penoso aprendizado,
dizer às claras ao claro
claramente sem mentir,
mas levando no capote,
bem escondido entre as mangas,
a magia de fingir.
Se tenho algum compromisso
é com esse encantamento.
Se me assino, me assassinam.
É meu rito subscrito
assassinando esses signos
de viés cartesiano.
Entre o Bem e o Mal me flagro:
grades ou a longa estrada?
Sigo a curva pela vida
(Pessoa me deu o mote)
e não freqüento desditas.
No entanto digo-me mal
bem-vindo, por que maldito,
tenho meu bem por aval.
di - Não há regionalismo na obra de Anibal Beça, alguns poderão dizer. Estaria eu certo em dizer que estes não conhecem, então, o mormaço e as rápidas chuvas torrenciais, as cores e os sabores dos frutos que evocam o profano e o religioso, as lendas locais e o sol, ainda que mais a lua, a invadir a floresta? Estaria, assim, diretamente relacionada à exuberância da terra em que você vive o conteúdo sensual de sua obra ou isto é seu, do autor, morasse você aí ou num dos pólos?
AB - Como já afirmei nas primeiras respostas, tenho publicado livros de temática regionalista: "Convite Frugal" e "Filhos da Várzea". Mas o telurismo amazônico está presente também numa outra prática poética minha: os haicais. Tenho pronto para lançar em maio o livro "Folhas da Selva". Um título com sabor emblemático e de homenagem a dois grandes poetas. Um, Walt Whitman, com seu Leaves of Grass, e outro, o magistral Matsuo Bashô, com seu Sendas de Oku. Dois andarilhos-poetas. Folhas da selva, é resultado de minhas andanças pela Amazônia, flagrando, registrando e denunciando em três versos a beleza e as agressões a essa região, através de queimadas, de instalação de madereiras, a contaminação dos rios por garimpeiros. Não se trata de poesia engagée, mas da constatação, através da contemplação da natureza, de tudo o que os meus olhos puderam registrar. Também trabalho em outro livro, resultado da minha atuação de poeta-andarilho, intitulado "Norte/ando", que abaixo transcrevo um poema-síntese do que tratará o livro:
NORTE / ANDO
Onde norteio o meu norte
vou norteando o meu canto
no canto encanto da sorte
varrendo várzeas de espanto.
Águas altas, cabeceiras,
Vento-Geral embioca;
sou rio-mar no altiplano
Amazonas pororoca:
dorso pai d'égua que eu monto
do igarapé desemboca.
Corcoveando banzeiros
a montaria das águas
é minha canoa afoita
de léguas de muitas mágoas
desmamando mamorés
parecis que o lago alaga.
Varrendo várzeas de espanto
no canto encanto da sorte
vou norteando o meu canto
onde norteio o meu norte.
Rendilhado Pacaraima
travesseiro onde me deito
nuvens do monte Roraima
penteando meus cabelos
nas curvas de Anavilhanas
visgo e seringa acreanas.
A cantoria encharcada
me deixa de alma lavada
o cheiro bom de quem tem
as cunhantãs de Belém
os mistérios dos peraus
nas morenas de Manaus.
di - Há quem fale sobre o amor, há quem fale sobre o sexo e há quem misture os dois, mas Anibal Beça, para mim, casa um com o outro e os coloca, unidos, em um altar localizado onde as luzes precisam ser vermelhas, festivas, ao som de ritmos fortes, de boleros, embora guarde vivamente a atmosfera diáfana, quase ao lado do que se poderia chamar de angelical. Assim vive o poeta, assim vê a vida o poeta ou trata-se apenas de isolada criação?
AB - Paixão, sexo e amor, uma tríade tão antiga, mas todas as vezes que nos debruçamos sobre ela, seja em leitura, ou tentando renová-la no poema, caímos no redemoinho da constatação do quanta ela é vasta e perigosa. Certa feita, depois de ler um poema de poeta já com certo reconhecimento de público e crítica, fiquei na dúvida: será que o que acabei de ler é um poema pornográfico ou um laudo ginecológico?, e veja meu caro di, não tenho pruridos hipócritas, leio tanto a literatura erótica como a pornográfica, fruindo-a com prazer.
Um livro que não me sai da cabeceira é a bíblia. Releio sempre os cantares de Salomão. É matriz que nenhum poeta que queira se aventurar ao tema pode desconhecer . A poesia sáfica, os poetas sufis, o kama-sutra, os trovadores medievais, a poesia luso-árabe, a poesia hebráica antiga e contemporânea, Khayaam, Bocage, o nosso Boca de Inferno, Vinicius, Florbela, Drummond, é muita gente. Agora mesmo, estou traduzindo alguns poemas do poeta mexicano Jaime Sabines para uma antologia e, muito feliz pela descoberta de sua poesia, altamente criativa e singular. Enfim, encontro um poeta que construiu toda sua obra na vivência da paixão do sexo e do amor, com uma visada própria: cáustica, doce, sardônica, lírica, cheia de humor. Tem sido um grande "regalo" conhecer e traduzir sua bela poesia.
Há uma tendência universal de atribuir aos latino-americanos esse decor pitoresco do abajur lilás, da luz vermelha e dos ritmos quentes. Isso foi glamurizado por Hollywood da pior e da melhor maneira. Dou dois exemplos: os filmes de Xavier Cugat e o belíssimo West Side History. Mas, o que aparentemente pode transparecer exótico e pitoresco, ou até mesmo de mau-gosto, é uma leitura colonizadora aferrada a preconceitos de uma ética protestante. Não sei se realmente os latino-americanos são mesmo os mais quentes, mas de uma coisa tenho certeza: são mais explícitos, não se envergonham de mostrar sua sensualidade.
Vivi e assisti isso a vida inteira, na minha adolescência pelos dancings manauaras, pelas noitadas Brasil afora e, ultimamente, nas minhas muitas viagens a Cuba, Venezuela, Colômbia. É tudo igual, somos todos parentes. Não se esqueça, que mesmo sendo diabético, não abdiquei da minha condição de notívago e boêmio. Só que, agora, me incluo numa nova categoria: a de boêmio abstêmio.
A propósito, tenho poemas que realçam sim, esse colorido. Mas com uma característica que você. ainda não apontou em minha poesia: o humor rascante. Não chegam a ser filiados a uma estética da bandalha ou da porralouquice, que nada teria contra, mas espicaçam os tabus de muito altar sagrado. Inclusive, o da própria poesia. Dou um exemplo com mais um inédito, movido pela constatação de que, chegamos a 2001, passamos pelo cinematógrafo, burlamos o Bug do milênio, mas continuamos discípulos de Onan, iguais aos tempos das descobertas e dos jogos infantis.
Do cinematógrafo ao Bug do ano 2000
Para Marcio Souza e Djalma Limongi Batista,
irmãos de geração e da arte do Cinema e do Teatro
Hoje me sinto repleto
ancho de alegria:
Cínico
de um cinismo incômodo.
Cinematográfico & glauberístico.
Ao contrário do amante aprendiz,
que vez ou outra sentia-se inabitado
vazio
um sem-teto pueril
habitado de irremediável tristeza
presa de passionárias silhuetas
refletindo nas paredes
o recorte de mãos apaixonadas:
um ator de teatro de sombras
subindo e descendo palcos
num folhetim de gestos bruscos
sonhando divas dadivosas
refesteladas em sofás Pel-Mex
sob a luz lilás de um obsceno abajur.
Para este distante inabitado amante
paixão!
Só com guilhotina de lágrimas
(olhos decapitando mágoas)
e um acento castelhano
en la palmita de la mano.
Tudo era de uma sinceridade juvenil
(com toda carga de tragédia e muito sangue)
Ah, películas complacentes do Cine Guarany!
(já não se fazem cabaços como antigamente)
Hoje, não.
Sou um amante da globalidade
filho de Becket e discípulo de Artaud
saco meu sexo como a navalha de Un chien andalous
(em takes de 3D by Spielberg)
cortando o olho da volúpia,
(ao som da clarineta de Woody Allen),
e todas as mulheres do mundo estão a meus pés,
e se arrastam implorando,(madonas fogosas),
e me chamam através de números estampados na TV,
e meu teatro vem das sombras de Zé Celso Rei da Vela:
sou um ator assumidamente brega
o doce cínico de um medicine show
o canastrão das putanas de Copacabana.
Boto banca
escolho quem eu quero
sou o dono da transa
o amante experiente
o ator desenvolto
o protagonista do filme
o galã
o chibata
o cara
desempenhando o cínico papel da fita:
"As virgens do Onan virtual".
di - Em dada poesia, Fernando Pessoa interroga quem o leva ao alto da montanha quando sabia que ele, lá, ainda não aprendera a respirar. Porque, depois de atravessarem tudo por onde mora o poeta para, em forma de água, lançarem-se no Atlântico, têm-lhe importância os Andes? Ensinam-lhe a respiração necessária ao belo canto os cantos belos que lhe chegam de lá?
AB - Pudera eu, saber respirar nos desafios mais altos, ganhar fôlego e aproveitar os vácuos mornos das calmarias, como o condor dos Andes. Mas de lá me chegam as nuvens de Vallejo filtradas na chuva de gôngora.
Um certo olhar crítico apurado, já me viu neo-barroco, pelo trato com as palavras exiladas, um neo-surrealista quase solitário no chão brasileiro. Concordo.
Tenho uma estrada de duas mãos com meus vizinhos: colombianos, peruanos, bolivianos, venezuelanos, ampliada com os equatorianos, mexicanos, panamenhos, argentinos, uruguaios, paraguaios (o guarani é parente do nosso tupi-nheengatu) chilenos e todo o caribe hispânico. Tenho feito traduções de poetas antigos e novos e sou publicado também por lá. Agora mesmo, na Revista Casa de las Américas, no mais recente número, compareço com dois poemas.
Além da proximidade poética andina, há também a física e a geográfica, regida pelos fenômenos do degelo. Em junho-julho, todos os anos, Manaus se transforma. Experimentamos, nem que seja por uma semana, a temperatura em torno de 6 a 12 graus.
Há toda uma história da tradição do caucho ligada ao Peru e Bolívia. A própria música popular feita por aqui, recebe influências andinas. Usando inclusive instrumentos andinos: quenas, cuatros, charangos e outros instrumentos. A Ayahuasca, quechua, aqui se transformou em Santo Daime e União do Vegetal. Portanto, amigo Di, são muitas águas que me chegam antes de alcançar o atlântico. Torço para que o Brasil não volte mais as costas aos seus vizinhos. A integração econômica proposta pelo Mercosul só terá sucesso pleno se, no bojo, estiver a proposta do intercâmbio cultural também.
di - Comove-me, na estatuária de Rodin, a delicadeza revelada pela frieza polida; nos mármores, sendo o passar do tempo o autor, a pátina que se deposita como relato de vida que, viva, não houve, não há; nos lírios, desde a lama, o sentido de ironias ou de sensações de repulsa tal e qual Rodrigues ou Genet quando floreiam o que sarcasticamente defloram. Em seus poemas mais formais, Anibal, nos mais ligados às regras e às normas, encontrei o que me sugeriu mergulhos mais profundos em águas que (só) pareceram rasas, e tal me comoveu. Quando necessário conter-se, e digo necessário porque belo também o que li de aspecto livre, solto, muitas vezes com uma irreverência nas entrelinhas que se formam outros poemas como se escritos por outros Anibal-co-autores, torna-se melhor a sua aliança com o verbo, com o grito? Ou não há grito?
Seria isso o seu, despido, banhar-se em água-benta? Ou não tem, poeta do mundo e sempre ribeirinho, também, as suas águas de Gânges?
AB- Na verdade, di, você tem razão com relação a uma assepsia por enxugamento nos poemas em que me revis(i)to a mim e aos poemas em que uso as formas e fôrmas da tradição. Esse é o meu Gânges, onde faço a minha purificação, sem me arrepender, senão me perdoar, pelos excessos, desvarios e licenciosidades dos muitos Anibal que me povoam. Mas sou um transgressor nato e as leis foram feitas para serem violadas. Gostei dessa aproximação nelsonrodrigueana. Às vezes sinto o santo baixar. Veja só um exemplo de um poema do livro "Hora Nua" (1984) (Aliás, o título é anterior ao romance de Lygia Fagundes Telles):
O SONO DOS JUSTOS
Sob o mormaço
todos dormem a sesta
na pequenina vila.
Somente o louco da cidade
caminha ao sol sua desventura
e o refrão:
"Quando eu morrer
para que lado ficarão meus calcanhares?
Leste, Sul, Norte, Oeste?
Meu corpo em cruz
e a Rosa-dos-ventos
tatuada em minha testa
e em cada falange
uma lua azul em gravitação?"
Estranha obsessão do louco da cidade:
para que lado ficarão seus calcanhares?
E nesse ir e vir
(deambulante vôo delirante)
enxerga o que não vê
e atira no que vê:
O suspiro da filha-de-maria
por entre as barbas
do capuchinho confessor;
o açogueiro da esquina
que acaba de esquartejar
a paixão da sua vida;
a língua do pastor
- da Primeira Igreja Pentecostal -
umedecendo as coxas da mulher
(falando a linguagem dos homens
e conferindo o dízimo do dia).
Mas é à noite
(sob o signo da lua)
que o louco da cidade
atira no que vê
e enxerga o que não vê:
O prefeito se esgueirando
pelas sombras
à procura dos seios
de dona Justina
que, entre outras coisas,
é presidente da Câmara Municipal
e mulher do seu melhor amigo.
di - Li versos rimados e poesias que pareciam sem rimas; li trechos absolutamente modernos, e lindos, e lindos trechos que pareciam obras arcaicas, como se manuscritas em pergaminho; li obras de forte conteúdo latino, brasileiro, amazônico e
peças que me deram a impressão de escritas em terras distantes, muito estrangeiras. de tudo o que li escrito por Anibal Beça, saltou-me aos olhos um pormenor: quiçá felizmente obsessiva uma preocupação em harmonizar. Por isso, então, em alguns poemas, como se músicas fossem, trechos de especial dissonâncias?
AB - Os acordes consonantes dos meus versos se harmonizam, de fato, entre a tradição e a modernidade. Creio, firmemente, que essa será a partitura que ainda será executada no século que se inaugura. Espero. Tenho uma obsessão pelo ritmo e pelos sons das palavras. A melopéia, muitas vezes se distancia da fanopéia e da logopéia e dá lugar para uma "nova" música. Daí a dissonância de acordes beirando à música aleatória. Isso se dá não só na estrutura dos versos, tornando-os mais prosaicos, como e, principalmente, nos temas escolhidos, geralmente de viés pessimista e amargo. Aí aparecem as porradas que se leva pela vida, os medos, as fraquezas, as limitações. Tudo é matéria para a poesia e, para banhar-se, pela oblação, na purgação da catarse. Dessa maneira, ficamos menos deprimidos. Um exercício que pratico para me tornar menos triste, sem chegar ao estado da hipomania, que também me freqüenta...
Dia desses, aqui mesmo pela Escritas, discutia-se a psicanalização de textos de escritores. Uma coisa impossível, no sentido freudiano-lacaniano. Posso exemplificar, que tenho poemas alegríssimos que foram escritos sob a égide de acontecimentos trágicos. Diriam os psicopatologistas da escritura: "um traço claramente de um histriônico", ou "caráter duvidoso, um perverso, sem dúvida". A pior coisa da vida é atribuir a outro qualquer julgamento baseado em meras suposições elevadas a "verdades".
Esquecem-se, esses senhores, que o compromisso do artista é com a obra de arte. É o que todo artista persegue a vida inteira. Pode até não chegar a fazê-lo, mas ele tem essa intenção muito clara: chegar perto do melhor. Emocionar e comover, um número grande de espectadores. Talvez essa seja uma função digna, se é que exista uma valoração palpável para a poesia, por exemplo. É o que eu quis realçar no poema, comentado por você, "Para que serve a poesia?".
No meu livro a sair "Cinza dos Minutos", há uma parte que intitulei de "Dissonância cotidiana". Reservei esse lugar para os poemas que falam desses momentos insalubres que permeiam as nossas vidas. São poemas em que me atiro, munido do cilício do humor sardônico, quase sem nenhuma censura. E não deixam de ser verdadeiros, em suas situações inusitadas. Muitas vezes, esses poemas, me chegam em sonhos, retrabalhados numa vigília especial. Agora que escrevo a respeito deles, chego a uma interpretação pessoal, quem sabe um insight, de que o "sarro", a satisfação com que os escrevo, essa carga de humor agressivo, não deixa de ser uma defesa. Para o leitor que nos acompanha se aproximar dessa atmosfera, transcrevo dois poemas, inéditos em livro, desse jaez:
Dublê de Alma
Anibal Beça
Ando à toa na vida
catando cacos
do que sobrou da caminhada.
Pedaços que ficaram
por aí evanescentes
na solidão das brumas.
Há um deserto de coisas & palavras
albergado
no bazar de uma casbá
em que me dão preço
num leilão de partes
que restaram deste corpo.
Me anunciam ao preço mínimo,
e nem assim
consigo que me comprem.
As asas perdi-as no Alabama
numa sessão de blues & ragtime,
o outro tinha um royal streat flush;
dos pés só me ficaram as unhas
estas que tu vês como colar
lanhando meu pescoço;
das mãos eis os cotos
que no barro escalavro
a minha escrita;
os olhos joguei-os aos peixes
para aumentar a carga de fosfato.
Apenas a fala com a qual te falo agora
me foi concedida em fogo de santelmo.
- E a tabuleta à testa?
- Escrita em sânscrito,
mas traduzo:
- Vendeu o corpo, e a alma vai de quebra!
ARREGLO
Anibal Beça
À beira desta que amamos
certamente banharemos
em água não agendada –
o compromisso da partida.
Inevitável (des)encontro combinado:
não haverá atrasos
nem modulações de prazo
nem cheques pré-datados.
Mesmo que nada seja acordado
o prestamista virá com seu alfanje
cortar a prestação da hora
empalidecer crepúsculos
escurecer auroras
cegar os olhos de ver
emudecer a voz da fala
parar o gesto, o beijo, a mão que afaga e
recolher a pedra da tarefa,
posto que ela é finda e não carece
empurrá-la.
Hipócrita sou, se disser que a quero agora.
Quem há-de?
Não é por nada
que de nada nada fiz
e muito não sei se muito ainda faria.
A melodia que me toca
vem com sons, de um adágio lento e
renitente,
avessos à mudanças e à velocidades.
Sempre me soube no meu ritmo
e todavia me faltam muitos versos.
Portanto, entranhável amiga,
noite de minha Noite,
ainda me encontro cheio de dívidas
e não tenho vocação moratória.
(Mesmo que até hoje tenha vivido em concordata).
Não.
Não é por nada não.
É que hoje acordei com um sentimento tão
inadimplente.
di - A ler os seus versos dedicados ao Dia Internacional da Poesia no poema cujo título é "Para que serve a poesia?" pensei em três perguntas: 1 - Ainda que fonte para inspiração poética, você crê que um povo faminto busque poesia? 2 - Em seus poemas mais sérios, estão suas ironias mais finas, quase, e digo quase porque são geralmente de bom tom, francamente sarcásticas. É-lhe difícil harmonizar crítica contundente e talhante com expressionismo por vezes intencionalmente "naïve", ingênuo? 3 - Há algo que o poeta Anibal Beça não escreveria da mesma forma novamente, ou comporia?
AB - Isso é uma coisa que sempre me preocupou. Mas posso lhe dizer afirmativamente. É impressionante como as pessoas simples do povo, do nosso sofrido povo terceiromundista, aprecia e prestigia seus poetas. Sejam eles os cordelistas ou, como eles chamam, os clássicos.
Quando era menino, gostava de ir ao mercado central, só para ouvir os cantadores e poetas de cordel. Manaus, como você sabe, por causa dos "soldados da borracha", tem uma colônia muito grande de nordestinos.
Mais tarde, quando comecei a visitar escolas públicas da periferia, fui observando, que além dos alunos, havia um público muito grande que acorria a esses encontros e, muitas vezes, nem tinham parentes estudando nessas escolas. Estavam lá para ouvir poesia. E, por aqui, volta e meia fazem recitais em praças públicas. Sempre com boa presença de público.
Posso lhe dar um testemunho, emocionado, dessa estranha força de humanização, esse mistério em torno da poesia. Há dois anos, fui convidado a participar do Festival Internacional de Poesia de Medelin. Sabia do gosto dos colombianos pela poesia desde 1969, a primeira vez que estive em Bogotá, participando de um festival de música. Mas em Medellin é um fenômeno único, acredito, no mundo.
Milhares de pessoas, durante 10 dias, superlotando, teatros, auditórios, conchas acústicas, ruas, penitenciárias, ouvindo, no maior silêncio, a 80 poetas dos quatro cantos do mundo. Os recitais eram feitos simultâneamente por toda a cidade, com equipes de 5 poetas em cada lugar. Depois das audições, formavam-se filas para os autógrafos. Muitos, com a antologia do encontro a mão, (que tem uma tiragem de 10.000 exemplares), pacientemente esperando por nossas assinaturas. Me senti como astro de futebol ou de rock. Uma coisa impressionante. Tudo isso acontecendo em meio à uma guerra civil que já dura 30 anos. E o festival não cobre somente Medellin, mas as principais cidades: Bogotá, Villa-Vicencio, Calle, Barranquilla, Cartagena e algumas pequenas e distantes como Quibdó na Província de Chocó, em plena selva. Íamos de avião. Em todos os lugares que eu estive há uma espécie de trégua com a guerrilha. Nesses 11 anos de festival, não se tem notícia de nenhum atentado contra poetas visitantes. Inclusive dos Estados Unidos. Em Quibdó, depois de terminar meu recital junto a um poeta salvadorenho, recebi um envelope que julgava ser um agradecimento dos organizadores do encontro na cidade. Não era. Era um agradecimento formal do comandante em chefe da FARC. Já voltei a Colômbia mais duas vezes para outros encontros. Cheguei a conclusão, que a poesia, sem dúvida, ameniza um pouco as dores desse povo tão sofrido.
Sua terceira pergunta, respondo com um poema do livro Suíte para os Habitantes da Noite:
CZARDAS PARA SERROTES
COM ARCOS DE VIOLINO
E BERIMBAU DE LATA
Essa anábase é de hora aberta desnudada
tão desmedida como foi a minha vida.
De nada me arrependo, apenas me perdôo,
porque meu vôo nem sequer se iniciou.
E dessas nuvens que me espaçam esgarçadas
trapos e cordas dissonantes dessa lira
são acidentes de percurso em que recorro
como um Zenão o parafuso desse vôo.
Assim, nessa colmeia, em zíper me percorro
como um zangão no zigue-zague nos hexágonos:
ando à procura de uma abelha desvairada
que me acompanhe na aventura pelos pântanos
exorcizando a desrazão desses escorços
essa não-ave desgarrada do meu nada.
di - Se me perguntassem o que acho do que li escrito pelo poeta Anibal Beça, eu diria que ele escreve como Chagall pintava: alguém que consegue fazer o vermelho rutilante ganhar ares de sugestão lírica encontrada em suaves cores pastéis; alguém que, por outro lado, pode gritar com um pálido traço de azul claro.
Pergunto agora, à espera que o próprio se descreva, que nos conte algo que queira de si, de sua vida: quem é Anibal Beça?
AB - Meu querido di, chegamos ao final. Obrigado pela sua extrema generosidade, pelo seu interesse em minha poesia. Suas perguntas inteligentes me deixaram à vontade e, esta, foi uma das poucas entrevistas na qual me senti gratificado. Você me deu oportunidade de responder a algumas perguntas que jamais me fizeram. Além, é claro, de você ter me proporcionado incursionar pelas minhas santas digressões. Que o leitor me perdoe.
Anibal Beça, é um poeta amazônico, brasileiro, latino-americano, alçado agora cyberpoeta, portanto, cidadão do mundo. Et por cause, terminemos a pavulagem com mais um poema inédito:
MEMORIAL DA FALA
Aníbal Beça
“Poema é aquilo que não pode ser resumido.”
Paul Valéry
© R.H. Giger
E sendo no infinito o transitório
Que ao fim se alça finito no começo
Não quis a lauda muda sem rumor
Se não cantasse o fogo das estrelas
E nem tocasse as solas das pegadas
viageiras de impulso em meu trajeto.
Meu canto é facho aceso de cometa
Numa viagem cheia de regressos
Em que juntando sobras devastadas
Colhe do mar os ossos do desterro
Banhado pelo tempo que me esplende
Certo fulgor perene nessas águas.
O tempo que inda tenho pensa o tempo
E, no entanto me flagro duradouro.
Nas cinzas das desoras ainda há fogo
Aquece a pedra leve em brasa pouca
Riscando seu grafite pelos becos
Nos brancos muros cravo meu enigma.
Essa pedra se assoma na leveza
À procura do verbo da distância
Suavizado frágil som de pluma
Nada que pese habita esse silêncio:
Porão vazio sombra e brisa escassa
Fraco arrepio no poço estagnado.
O limo dessa pedra é meu avesso
Ora musgoso seda de serpente
Um filtro transmudando muitos ventos
Mas sempre alimentando na fatura
Um pé de verso antigo sem assombros
Uma pá revolvendo caligramas.
Sem esquecer a cifra do meu tempo:
Humor o chiste a gíria tudo conta
No canto do falar cotidiano.
O sol do preconceito não me abraça
Desde Quintana sei do céu singelo
De jaula aberta sei-me passarinho.
Importa na gaiola o bom alpiste
Que regurgito estrelas semeando
Se no chão vicejar cristal se funde.
Minha meta é a linguagem derramada
Líquida cantaria em tom de várzea
Que o solo em se plantando tudo dá.
E assim me assumo pedra diferente
Calcinado de múltiplas facetas:
Concreto fui na práxis da sintaxe
Viajei linossignos e haicais
Namoro o instinto que Breton me deu
E junto o sonho ao barro das metáforas.
Das cinzas trago a cal da duração
Para envolver no linho da memória
Os fatos dessas múmias testemunhas
Personagens presentes de um passado
Novelo que a nascente desenrola
O fio que se desfaz e afunda a foz.
Um velho espelho d’água se arrepia
Minhas águas se enrugam vincos crespos
Sopro incontido inventa nervos curvos.
Mano Narciso empurra-me a beleza
A sinuosa elipse em traços plácidos
E sabe que o diário olhar me afoga.
O rio que sou eu mesmo a se afogar
Na fala fluvial forte afluente
Pelos desvãos escuros dos peraus
Pelas corcovas de ondas e banzeiros
Pelas margens lambidas na passagem
Desliza musical por muitos ventres.
E vai e segue doce rumo ao sal
Nesse tempero de águas que se encontram
Amolecendo o barro adormecido
Alimentando ventos ruminantes
Para servir a crua refeição
Do vero humano fero assinalado.
Nessa cumplicidade também rega
O fruto suculento da alegria
Manso manjar de calma apetecida
Que se revela em pasto indignado
Diluindo alguns nacos dissonantes
De melodia turva em seu chorume.
Eis o curso da vida e sua costura
Num viés de mentira e de verdade
Vestindo consistente no seu traje
Ultrajes desesperos agonias
Um rol de horrores preso na lapela
Enfeite que envergonha a fina grife.
Vestir um rio é como se despir
Na entrega despojada da paixão:
Nada se esconde e tudo se oferece
Pelo instante do sonho revelado
No mistério gozoso desmedido
Onde só há lugar para a palavra.
Dois ciclos a reger quatro estações
Comandam esse rio de vida e morte
Porque não só do humano reza o reino
Refém da natureza e seus fenômenos:
Terras caídas águas na vazante
Marés crescentes várzeas alagadas.
O que aparece em dor tão aparente
Nem sempre é o componente que maltrata.
Por vezes muita perda não se enxerga
Porque nem o que a guarda sabe olhar
Embora sinta os pássaros cinzentos
Bicando lá no fundo algas viscosas.
Ah, mágoas do silêncio com seus gumes!
Peixes das sombras de escamas afiadas
Quedam-se cegos diante dos rochedos
E mesmo assim não se soltam dos signos
Mas prendem-se em tarrafas solitárias
Como se únicas presas dessas malhas.
O rio que mora em mim tem caudatário
Braços pequenos riachos soluçantes
De água escura ocultando insegurança
Dessa frágil fronteira limitada
Que não se quer sabida pelos outros:
Temores e fraquezas densas dúvidas.
Fui aos longes da infância atrás de ausentes
Levado pela paz de uma saudade
Vivida no circuito da família
Em muito igual a muitas por aí
Que ensinam na primeira convivência
A crença do homem múltiplo de si.
E multifacetário mostra máscaras
Tatuagens tomadas ao acaso
Em cena aberta sem qualquer decoro
Não sabendo o papel em seu disfarce
De apresentar a dúvida vestindo
As várias personagens nesse enredo.
Ah densa dubiedade tão presente!
Anúncio previsível e olvidado
Porque fracassos de outros não se somam
Aos nossos de vivência não havida
Porquanto a dor é única ao senti-la
E cada corpo hospeda um terno algoz.
Águas serenas hoje me socorrem
Na fala desse afago que me lava
Nessa ablução sem culpa em que preparo
A presta travessia inevitável
Sem antes convocar minhas lembranças
Filtradas num decurso em claridade.
Agora só me resta a calma espera
Nos ossos do silêncio se atritando
Porque ouvir é preciso mais que a fala
Da surda voz marinha adormecida:
Ondas de folhas - verde cemitério
Em que menor me afogo em mar maiúsculo.
DADOS
ANIBAL BEÇA é o nome literário de ANIBAL AUGUSTO FERRO DE MADUREIRA BEÇA NETO, poeta, tradutor, compositor, teatrólogo e jornalista, nasceu em Manaus, na Amazônia brasileira, em 13 de setembro de 1946.
Trabalhou como repórter, redator e editor, em todos os jornais de Manaus. Foi diretor de produção da TV Cultura do Amazonas, Conselheiro de Cultura, consultor da Secretaria de Cultura do Amazonas. Vice-presidente da UBE-AM União Brasileira de Escritores, presidente da ONG “Gens da Selva”, onde atualmente exerce o cargo de vice-presidente, bem como de presidente do Sindicato de Escritores. do Estado do Amazonas e presidente do Conselho Municipal de Cultura;.é membro da Academia Amazonense de Letras.
Neste ano de 2006, completa 40 anos de atividade literária e 45 de atuação na música popular, tendo vencido inúmeros festivais de MPB por todo o Brasil.
Em 1994 recebeu o Prêmio Nacional Nestlé, em sua sexta versão, com o livro "Suíte para os Habitantes da Noite".concorrendo com 7.038 livros de todo o Brasil.
Ao lado de seus afazeres literários e musicais, tem se destacado em prol da causa da integração cultural latino-americana, seja traduzindo escritores de países vizinhos, ou participando e organizando festivais e encontros de poesia. Representou o Brasil no IX Festival Internacional de Poesia de Medellín, no III Encontro Ulrika de escritores em Bogotá e no VI Encuentro Internacional de Escritores de Monterrey. Sua produção poética tem sido contemplada em importantes revistas: “Poesia Sempre” (Brasil), “Casa de las Américas” (Cuba), “Prometeo” (Colômbia), “Ulrika” (Colômbia), “Revista Armas & Letras” da Universidade de Nuevo León ( México), “Tinta Seca”( México), “Lectura” (Argentina), “Frogpond Haiku”( Estados Unidos), “Amazonian Literary Review” (Estados Unidos), “Mississippi review” (Estados Unidos).
LIVROS PUBLICADOS
Convite Frugal (1966), Filhos da Várzea (1984), Hora Nua (1984), Noite Desmedida (1987), Mínima Fratura (1987), Quem foi ao vento, perdeu o assento (teatro, 1988), Marupiara – Antologia de novos poetas do Amazonas (organizador, 1989), Suíte para os habitantes da noite (1995), Ter/na Colheita (1999), Banda da Asa – poemas reunidos (1999), Ter/na Colheita (2006, segunda edição), Noite Desmedida (2006, segunda edição), Palavra Parelha (2006) e Folhas da Selva (2006). Chá das quatro (2006) Águas de Belém,( 2006); Águas de Manaus,( 2006).
CD – MÚSICA
ANIBAL BEÇA – O Poeta solta a voz (2001)
PICICA - Blog do Rogelio Casado - "Uma palavra pode ter seu sentido e seu contrário, a língua não cessa de decidir de outra forma" (Charles Melman) PICICA - meninote, fedelho (Ceará). Coisa insignificante. Pessoa muito baixa; aquele que mete o bedelho onde não deve (Norte). Azar (dicionário do matuto). Alto lá! Para este blogueiro, na esteira de Melman, o piciqueiro é também aquele que usa o discurso como forma de resistência da vida.
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Um comentário:
Caro Rogélio,
Meu nome é Davi Meira, sou um dos alunos do professor Ranniery da UEA
gostaria de receber informações a respeito do projeto do predio na zona do porto
desde já agradeço
meu e-mail é: davi_81136654@hotmail.com
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