abril 24, 2009

Pálidos de Espanto

Foto: Rogelio Casado - Ana Marta Lobosque - Belo Horizonte-MG, julho 2006
Nota do blog: Ana Marta Lobosque, psiquiatra militante da luta antimanicomial - autora de Princípios para uma Clínica Antimanicomial, Experiências da Loucura - , sofreu um acidente e ficou temporariamente sem dançar. Na fotografia acima podemos vê-la entregue ao prazer da dança na festa de encerramento do I Encontro Nacional de Saúde Mental, realizada em Belo Horizonte, em 2006. Os que amam Ana Marta estão radiantes: ela voltou a dançar e tocar nossos corações com a beleza de seus textos. Aqui, ela crítica as tolices escritas por Ferreira Gullar na sua coluna, na Folha "Ditabranda" de São Paulo, depois que o poeta chamou a Lei de Saúde Mental brasileira de "lei idiota". O ressentimento não cai bem pra ninguém. Em se tratando de um poeta, é pecado capital. Dá-lhe, Ana Marta!

PÁLIDOS DE ESPANTO

"Pálido de espanto": foi este o título da última coluna de Ferreira Gullar, que se seguiu à "Lei errada" da coluna anterior. Aqui, longe de abordar questões meramente humanas, o poeta revela-nos seus êxtases diante da infinitude do universo.

Embora a palidez seja uma experiência fisiológica de curta duração, todos nós, que respeitamos a luta antimanicomial e lutamos arduamente pela Reforma Psiquiátrica brasileira, ainda nos encontramos sob seu efeito. Tal efeito se inicia desde a leitura do artigo de Ferreira Gullar do penúltimo domingo, e perpetua-se ao ler sua última coluna, na qual, como se nada tivesse acontecido, o poeta elide as críticas, "pálido de espanto" pela contemplação dos mistérios do universo. O dom da poesia, ao que parece, é sobremaneira utilitário: autoriza tanto a crítica ofensiva e não fundamentada da militância alheia, quanto o desprezo às reações surgidas, seja no belo artigo do psiquiatra e psicanalista Antônio Teixeira, seja na contundente manifestação da usuária Sílvia Pereira, seja em outras tantas que afluíram à redação da Folha de São Paulo.

Em seu editorial de sábado, a Folha procura preservar seu colunista, elogiando sua "corajosa" intervenção. Ora, também contribui para empalidecer-nos de espanto esta confusão - deliberada - entre coragem e agressividade, assim como a omissão do jornal diante da crítica rasa e tendenciosa de Ferreira Goulart. Um jornal que afirma sustentar uma posição ética na prática da comunicação não pode autorizar a publicação de artigos que denigrem e prejudicam a outrem, demonstrando, além do mais, grave desconhecimento do assunto tratado.

Certamente, o (mau) caráter desta crítica não escapa ao jornal, que, no mesmo editorial, declara-se de acordo com os princípios da Reforma, lamentando as dificuldades de sua implantação. Ao menos, a Folha deu-se ao trabalho de citar alguns dados - trabalho que deve parecer indigno para a inefável atividade poética de Ferreira Gullar, agora ocupado em contemplar as estrelas. Seguramente, se o jornal e o colunista tivessem recorrido a estes mesmos dados para convocar o poder público e a sociedade a zelar pelo avanço na abordagem dos portadores de sofrimento mental, descartando o tom leviano a que permitiu-se Goulart, teriam prestado um grande serviço aos usuários e familiares da Saúde Mental, assim como aos trabalhadores que ajudam-nos cotidianamente a superar suas inegáveis dificuldades.

Mas não: o senhor Ferreira Gullar não se apresenta como "pai de dois esquizofrênicos" para falar-nos francamente, de coração aberto, das dores e dos problemas desta condição. Pelo contrário, utiliza-se rancorosamente dela para autorizar-se a agredir e ofender. Aliás, observe-se de passagem, paternidade e amor nem sempre andam juntos: uma visível secura afetiva transparece na banalidade e no vazio das palavras do - poeta! - Ferreira Goulart. O seu espanto e conseqüente palidez diante das nebulosas, galáxias, e outras maravilhas distantes mascaram mal a cegueira para outros aspectos do universo humano que se encontram bem diante dos seus olhos. Se algum dia ousar encará-los, a lembrança das tolices que escreveu hão de substituir-lhe a palidez pelo rubor da vergonha.

Pálidos de espanto com uma cegueira tal, os leitores da Follha não cessam de manifestar-se. Por quê não dar-lhes voz?

Ana Marta Lobosque
(psiquiatra, militante da luta antimanicomial)
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