abril 19, 2009

Novas manifestações contra Ferreira Gullar

Foto: Rogelio Casado - Pelo fim dos hospícios - Manaus-AM, 2007
Nota do blog: A pesquisa dos editoriais sobre reforma psiqúiátrica da Folha "Ditabranda" de São Paulo, publicados um em 2005, relacionado a uma matéria publicada em 19 de maio, sobre a não adesão do Juquery ao De Volta Prá Casa, e outro de 2004, francamente favorável à substituição dos leitos psiquiátricos, cobrando do governo mais agilidade na implantação da reforma, foi feita por Analice Palombini, do grupo de defesa da reforma psiquiátrica. Segundo Analice, não há outros editoriais sobre o tema. Em 2005, além do editorial, houve uma ampla matéria referente ao 18 de maio. Em 2006, as notícias publicadas giram em torno do Caso Damião; em 2007 não há referências no jornal à reforma psiquiátrica; em 2008, na edição de 16/02, há uma referência breve à abertura de SRTs pelo Juquery e aos avanços com a criação de CAPS e, no 18 de maio, três matérias com foco também na substituição dos leitos psiquiátricos por CAPS. O último deles refere-se à "coragem" de Ferreira Gullar sobre a questão da assistênica à saúde mental, o que dá no mesmo; ou seja, tudo a ver com a reforma psiquiátrica brasileira. É surpreendente a oscilação dos editorias entre 2004 e 2009. Leia outras cartas enviadas ao jornalão golpista, uma entrevista e a resposta de uma das entidades que militam no campo da defesa da reforma psiquiátrica. Leia também as mensagens postadas no blog de Bruno Gagliasso, ator da Rede Globo que faz um personagem esquizofrênico na novela das oito, e que ficou surpreso com o artigo do Ferreira Gullar. Quanto a fotografia acima, trata-se de um abraço simbólico pelo fim dos manicômios realizada em Manaus, no ano em que terminou o diálogo entre governo e movimento social, por absoluta insensibilidade dos escalões médios de gestão da saúde: um tipo de reformistas de araque que esquecem seus compromissos sociais e burocratizam o campo da saúde mental por falta de intimidade com a construção da luta por uma sociedade sem manicômios.

Editoriais
editoriais@uol.com.br


Atenção a doentes mentais

O POETA Ferreira Gullar abordou de maneira corajosa em sua coluna semanal na Ilustrada, no dia 12, a questão da assistência à saúde mental. O escritor, que vive esse problema em sua própria família, propôs a revogação da lei de 2001 que mudou os parâmetros para o atendimento aos portadores de transtornos mentais no território nacional.

A lei da reforma psiquiátrica determinou que as internações se dariam só em último caso. Os críticos da norma, como Gullar, culpam-na por ter deixado muitos doentes desamparados. Com a restrição às internações, pacientes e familiares são submetidos a provações e riscos. Famílias com menos recursos -que não podem cuidar de parentes durante o dia, por exemplo- são severamente afetadas.

Embora a reforma seja meritória nos princípios, o problema de sua implantação foi ter feito diminuir os leitos em hospitais psiquiátricos sem que a rede de assistência ambulatorial -que cumpriria melhor a finalidade de reinserção social do paciente em seu meio- tivesse sido estabelecida em nível nacional.

Os hospitais seriam substituídos pelos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), divididos em três níveis. O primeiro apenas para atendimento diurno em cidades com até 70 mil habitantes. O último, para o atendimento 24 horas, em grandes cidades.

Com oito anos de vigência da lei, 16 Estados ainda não possuem os chamados Caps nível 3 (24 horas). As residências terapêuticas, para onde pessoas com doenças mentais graves deveriam ser levadas após deixarem os hospitais, ainda não existem em oito Estados. Já as vagas em hospitais psiquiátricos caíram de 51.393 para 36.797.

Ainda que tenha havido uma forte expansão na rede de Caps -de 424 para 1.326-, o aumento está longe de atender às necessidades. Segundo o Ministério da Saúde, 3% da população precisa de cuidados contínuos em saúde mental. É um número grande demais para tantas lacunas.

São Paulo, segunda-feira, 23 de maio de 2005

***

REFORMA PSIQUIÁTRICA

É desalentador constatar que o manicômio do Juquery, o maior do país e que simboliza os piores abusos já cometidos pela psiquiatria, não aderiu ao programa De Volta para Casa, do governo federal, que oferece um benefício de R$ 240 mensais para pacientes que deixarem hospitais psiquiátricos.

O governo do Estado, que é responsável pelo Juquery, alega que a falta de estrutura de prefeituras para receber os pacientes dificulta a adesão. Esse é, sem dúvida, um dos problemas, ao lado de famílias que não querem voltar a conviver com os internos. Mesmo assim é preciso ampliar a desospitalização.

O paradigma da psiquiatria mudou. Embora eletrochoques e camisas-de-força continuem tendo suas indicações, elas são, felizmente, cada vez mais limitadas. O advento de novas gerações de medicamentos e uma nova mentalidade clínica não só permitem como recomendam que a grande maioria dos pacientes psiquiátricos receba tratamento ambulatorial e leve uma vida tão normal quanto possível. Por vezes a internação será necessária, mas ela deve ser breve, apenas durante o surto.

É uma atitude que se afigura mais humana e também mais econômica. Devemos, portanto, criar as condições para que a desospitalização dos pacientes psiquiátricos seja mais rápida. Além de programas como o De Volta para Casa, é preciso criar mais CAPs (Centros de Atenção Psicossocial) e ambulatórios de álcool e de drogas.

No plano jurídico, não há como deixar de reconhecer que a lei dos direitos dos portadores de transtornos mentais, de 2001, que substituiu uma legislação cujo corpo central datava de 1934, representou um avanço. Mas mesmo ela merece reparos, pois conserva arcaísmos autoritários de discutível constitucionalidade, como a previsão de internação involuntária a critério médico. A Lei Maior diz que um civil só pode ser privado de sua liberdade na ocorrência de flagrante delito ou mediante ordem judicial. Curiosamente, esse princípio básico da Constituição não vale para aqueles sobre os quais pesa a suspeita de insanidade.


***

São Paulo, quarta-feira, 18 de agosto de 2004

REFORMA PSIQUIÁTRICA

Cada vez mais, os avanços da psiquiatria parecem tornar obsoleta a concepção de que o tratamento de doenças mentais passa necessariamente pelo confinamento do paciente. Embora as conquistas no campo da psicofarmacologia ainda estejam muito longe de proporcionar uma vida "normal" para todos os doentes mentais, é um fato que grande parte dos pacientes psiquiátricos não precisa passar a vida num leito de manicômio.

Mesmo em alguns casos graves, doentes mentais podem receber tratamento ambulatorial e morar com suas famílias ou em residências terapêuticas. Freqüentemente, tirá-los dos hospitais resulta em rápida melhora. É preciso, portanto, caminhar para que leitos psiquiátricos sejam trocados por estruturas mais humanas e eficazes de atendimento.

O projeto de reforma da área de saúde mental, prometida pelo Ministério da Saúde, contempla bem esses aspectos. Lamentavelmente, contudo, a reforma terá mais um adiamento. O ministério cedeu a pressões de unidades hospitalares e de gestores municipais e estaduais e estendeu por mais 120 dias o prazo para que o Estado de São Paulo -além de 25 administrações municipais- reduza a quantidade de leitos psiquiátricos conforme determinado pelo governo federal. Ressalte-se que o principal motivo alegado pelos responsáveis pela saúde mental nos municípios e no Estado é razoável. Ao que tudo indica, ainda é insuficiente o número de instituições capazes de receber os doentes oriundos dos manicômios.

O que o episódio demonstra é que, embora a reestruturação da saúde mental esteja na agenda do governo, não parece ter havido suficiente planejamento em sua execução. O mero estabelecimento de metas e a simples fiscalização de seu cumprimento certamente não bastam para que a reestruturação se concretize. A mudança demanda ações concretas e verbas. Do contrário, será mais um projeto social do atual governo a ganhar fama e não sair do papel.

***
Atualização de 16/04/2009

PAINEL DO LEITOR
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1604200910.htm

O "Painel do Leitor" recebe colaborações por e-mail (leitor@uol.com.br), fax (0/xx/11/3223-1644) e correio (al.Barão de Limeira, 425, 4º andar, São Paulo-SP, CEP 01202-900). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Folha se reserva o direito de publicar trechos. Leia mais cartas na Folha Online
www.folha.com.br/paineldoleitor

Hospitais psiquiátricos
"Parabenizo Ferreira Gullar pelo artigo "Uma lei errada", Ilustrada, 12/4). O poeta provocou durante toda a semana uma discussão sobre o tema "doentes mentais". Na próxima semana, outros assuntos ocuparão o espaço e este cairá no esquecimento. Infelizmente, é assim que funciona.As leis são feitas para serem cumpridas. Porém, na prática, a teoria é outra. Faço parte de uma instituição filantrópica, quase centenária, que trata de doentes mentais e onde o dia a dia é ver o sofrimento de toda a família envolvida com o seu ente querido. Costumo dizer que somos o fim da linha, pois a família já sofreu muito até chegar aqui. Os caminhos percorridos são de muita dor e desespero. Fazemos a nossa parte com muito amor e carinho, procurando dar um tratamento digno aos nossos pacientes e tendo a comunidade como grande parceira."
WANDERLEY CINTRA FERREIRA, presidente do Hospital Psiquiátrico Allan Kardec (Franca, SP)

"Tenho acompanhado a repercussão sobre a coluna de Ferreira Gullar e discordo piamente dos argumentos desse admirável poeta. Sou estudante e há alguns anos estou envolvido nesse emaranhado que é a questão da loucura.
Tive a oportunidade de conhecer outros modelos de tratamento, tal como o italiano, que muito difere do brasileiro.
Porém, apesar das discordâncias, acredito que, ao polarizar o debate, os maiores prejudicados serão justamente as pessoas que vivem em sofrimento psíquico. Durante muitos anos, foram submetidas a tratamentos sub-humanos e, com a lei, passaram a ter esperança num outro modelo, que, infelizmente, depois de quase duas décadas, se encontra à deriva, ou seja, sem grandes avanços nos cuidados ao dito "louco". É necessário um espaço para debates sem essa disputa de saberes "psis" que vemos nas cartas."
DANIEL FERNANDO FISCHER LOMONACO, estudante de psicologia da PUC-SP (São Paulo, SP)

PAINEL DO LEITOR
http://www1.folha.uol.com.br/folha/paineldoleitor/ult10077u551289.shtml

Hospitais psiquiátricos
"Gostaria de parabenizar o colunista Ferreira Gullar ( Ilustrada, 12/4) por conseguir expressar um sentimento que só quem possui parentes com esse tipo de problemas sabe o que é, visto que na teoria as coisas funcionam de uma forma, mas, na prática e no dia a dia, as coisas são bem diferentes.Tenho uma cunhada de 28 anos que possui problemas de esquizofrenia desde a infância, residindo no bairro do Capão Redondo. Devido à origem humilde que possuímos, o diagnóstico foi efetuado tardiamente. Em seu tratamento utilizamos o Caps do Jardim Lidia, o qual está sem médico há mais de três meses. Em caso de emergência, temos de recorrer ao Hospital do Campo Limpo, no qual ela já teve a oportunidade de ficar internada, sendo que em uma das passagens acabou sendo molestada por outro doente mental pelo fato de não haver alas separadas entre homens e mulheres. Este é apenas um dos contratempos que as pessoas mais humildes passam: não possuir um bom amparo e, quando o encontra, estarem sujeitas aos acasos da vida."
MARCELO CARLOS DOS SANTOS (São Paulo, SP)
*
"Acredito na luta antimanicomial e sempre me incluí como um militante desta. Mas admito ser extremamente complicado defender o extermínio de leitos de internação psiquiátrica, com o discurso atrelado a uma eventual desospitalização ou contrário ao hospitalocentrismo. Ao longo de todo o tempo de atuação na saúde mental, pude observar que o cerne da questão seria justamente dar oportunidade oportunizar espaços em meio a uma série de ações que são extremamente carentes em nossa área.
Vejamos as famílias e os pacientes que sofrem em decorrência de problemas relacionados à dependência química. Espera-se que serviços de internação possam vir a somar recursos a uma rede de cuidados e níveis de atenção já existentes, mas que infelizmente ainda são insuficientes e muitas vezes pouco especializados para uma adequada atenção à saúde integrada destinada a este perfil de pacientes.
Amanhã acabamos por completo com os leitos de internação prolongada, que ótimo! Seria bom poder contar com centros de excelência, internação prolongada em clínicas ou comunidades terapêuticas, enfermarias de desintoxicação, hospital dia para álcool e drogas, moradia assistida para dependentes, ambulatório especializado, unidade comunitária, grupos de autoajuda, unidade comunitária de saúde mental, ambulatório de saúde mental, ambulatório de especialidades, hospital geral, apoio por parte de empresas, escolas, ambulatórios gerais, albergues, cadeias e prisões, unidades para adolescentes infratores. Alguém já tentou acessar qualquer um desses serviços? É provável que uma das poucas portas que realmente se abrirá ou estará disposta a ser parceira do dependente e sua família que dependam do SUS será a dos grupos de autoajuda; as demais não estão preparadas para tal."
Antes de levantar qualquer bandeira, lembro-me que cansei de ser 'militonto' e, com todo o respeito à luta antimanicomial, caso eu venha a desenvolver um surto psicótico, não me encaminhe para um Caps, pelo menos por enquanto. Afinal em São Paulo são apenas 45 unidades para cerca de 11 milhões de habitantes. Logo, do ponto de vista estatístico, deveríamos contar com aproximadamente 165 unidades, atendendo à crianças e adolescentes, adultos e álcool e drogas."
SÉRGIO LUÍS FERREIRA, psicólogo atuante na área de dependência química (São Paulo, SP)
*
"Na década de 90, foi proposto, pelo movimento social da luta antimanicomial, uma lei federal de reforma psiquiátrica que, há dez anos transitando no Congresso, foi aprovada em 6 de abril de 2001, por ocasião do lançamento do filme 'Bicho de Sete Cabeças', em que o protagonista, Austragésilo Carrano, nos mostra cenas de sua internação involuntária, em um hospital psiquiátrico, sendo que o mesmo nem era portador de sofrimento mental e, sim, usuário de drogas.
Muito do texto original foi perdido nesse tempo em que a lei transitou no Congresso, embora, em alguns Estados, algo pode ser recuperado em suas leis estaduais.A palavra de ordem do movimento da luta antimanicomial --'Por uma sociedade sem manicômios'-- vai muito além do fechamento de hospitais psiquiátricos. Ela propõe a desconstrução do conceito manicômio que, como nos alerta Basaglia, pioneiro da reforma psiquiátrica que queremos, é todo o exercício de poder que segrega, exclui, oprime.
Convidamos a sociedade a se responsabilizar pelo convívio com a loucura, não enquanto reduzida a parâmetros de normalidade e, sim, enquanto diferença, naquilo em que se mostra irredutível.
Para isso, foi e continua sendo implantada uma rede de assistência à saúde mental, preconizada pelo SUS, enquanto direito à saúde, que oferece atendimento às crises psiquiátricas, nos chamados Caps, estendendo esse atendimento de forma ambulatorial na atenção primária.
Em um resgate do direito de circulação da loucura pela cidade são oferecidos centros de convivência, onde o convívio se constrói entre oficinas de arte e artesanato. E para aqueles pacientes com longa permanência em hospitais psiquiátricos e que perderam seu vínculo com a família são oferecidas residências terapêuticas, para que o paciente não apenas volte ao convívio na cidade como realize, incluído nela, o seu tratamento em regime aberto.
Com o funcionamento desses serviços, foi possível desmistificar alguns mitos, como a periculosidade dos loucos, sua incapacidade, bem como a rejeição da família. Embora tenha uma minoria que prefira se ver livre de seu parente em crise, na grande maioria dos casos o que se observa é um cuidado e o interesse de se manter junto ao seu parente.
Em maio de 2008, na capital mineira, foi realizado um evento de extrema importância e sensibilidade, a Mostra de Arte Insensata, em que muitos trabalhos produzidos pelos usuários dos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico puderam ser expostos em diálogo com a sociedade. Convidada a repensar sua relação com a loucura, os usuários da saúde mental puderam apresentar outras identidades que não aquelas referidas à doença mental onde, há 300 anos, a psiquiatria, assenhorando-se da loucura, a manteve presa.
Convidado os usuários a serem protagonistas, dentro dos princípios que regem a reforma psiquiátrica, a liberdade e a cidadania, por exemplo, não éramos somente bem cuidados, como em gaiolas de ouro que nos oferecem salas de jogos, cinema, teatro... Éramos nós que produzíamos."
SÍLVIA MARIA SOARES FERREIRA, membro da Comissão Municipal de Reforma Psiquiátrica (Belo Horizonte, MG)
*
"Quero saber da professora de psicologia Ianni Regia Scarcelli ('Painel do Leitor', 15/4) onde cita: 'o autor desconhece a história dos movimentos pela extinção dos manicômios e pela reforma psiquiátrica brasileira, que defendem a internação, quando necessária, em serviços preocupados com a reabilitação (hospitais gerais,entre outros)...', onde estão tais serviços?
Gullar pôs o dedo na ferida."
EDEMAR AFONSO GONÇALVES, médico pediatra (Jaru, RO)

*
"Ferreira Gullar merece respeito como poeta, mas para discutir reforma psiquiátrica precisa de um pouco mais de conhecimento. Sugiro começar com leitura, que é algo fundamental para um poeta. Leitura de Foucault, por exemplo. Depois, da própria lei.A falta de responsabilidade --que é delegada a terceiros, na pessoa de médicos e hospitais-- é uma característica recorrente em parentes de pacientes mentais. Essa falta, digo isso por experiência própria, é resultado da falta de perspectiva, da situação por vezes desesperadora. Sei que tive muita discussão com minha família acerca de um parente com doença mental e que todos se recusavam a se implicar em seu tratamento e sua recuperação, no mínimo, social. Se eu não me implico, por que o doente se implicaria?Existem manicômios sim. Em minha cidade existem. Continuam servindo para a mesma coisa que sempre serviram, papel igual ao dos presídios: eliminar do convívio social os indesejáveis. Mesmo as famílias se sentem aliviadas assim.A reforma tem que ser implementada antes de ser criticada. Os hospitais gerais precisam capacitar seus profissionais e abrir seus leitos psiquiátricos. As prefeituras precisam estruturar seus Caps e seus Naps. Os profissionais de saúde mental precisam entender seu papel na sociedade. E os meios de comunicação e educação precisam esclarecer sobre a reforma."
DANIEL DANTAS (Natal, RN)

***

RESPOSTA DA ABRASME A FERREIRA GULLAR em artigo intitulado ”Uma lei errada: Campanha contra a internação de doentes mentais é uma forma de demagogia” (Folha de São Paulo, 12/04/2009)

Há um saudável interesse, ultimamente, no desenvolvimento do sistema de saúde mental do país. Este interesse vem suscitando tema de novela e artigos na imprensa, muitos destes parciais, demonstrando desinformação, ingenuidade ou, em certos casos, má intenção e tentativa de manipulação da opinião pública. Nesse sentido, o artigo Uma lei errada - Campanha contra a internação de doentes mentais é uma forma de demagogia, de autoria do jornalista Ferreira Gullar, serve como base para uma reflexão. De forma extremamente enfática, xingando pessoas como o Deputado Paulo Delgado, a quem chama de “cretino”, Gullar acusa a classe média de “quase nunca se deter para examinar as questões, pesar os argumentos, confrontá-los com a realidade”, pecado em que parece ele mesmo incorrer. Senão vejamos.

O artigo desqualifica todo um processo social complexo, que vem evoluindo nos últimos 30 anos no Brasil, com a participação de diversos segmentos sociais, desde médicos psiquiatras, outros profissionais de saúde mental e de saúde pública, poderes legislativo, executivo e judiciário, cientistas sociais, portadores de transtornos psíquicos, seus familiares e diversos outros setores, denominando-o simplesmente de “campanha contra a internação de doentes mentais”. Gullar deixa a desejar como jornalista, ignorando a complexidade deste movimento, que é de extrema importância para o avanço do sistema de saúde como um todo. Processo que hoje consegue, inclusive, promover um diálogo intersetorial importante, envolvendo os ministérios da Saúde, da Justiça, da Cultura e do Trabalho, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, o Ministério Público e várias associações profissionais do campo da saúde. O autor tem uma visão empobrecida do desenrolar do processo como fenômeno internacional. Cita a Itália, que realmente inspirou o processo no Brasil, embora não tenha sido a única inspiração. A Inglaterra, a França, a Espanha e a Austrália, entre outros, vêm desenvolvendo sistemas similares, com uma profundidade de impacto social, em certas perspectivas, semelhante à Itália. Vale mencionar que na Itália não resultou em um desastre, como tenta fazer crer o autor, mas em um programa nacional que se tornou referência mundial, adotado pela ONU como modelo para outras nações. O programa italiano foi executado com enorme competência, envolvendo a sociedade como um todo; tem base comunitária e economiza bastante dinheiro público. Como se sabe, um cidadão internado gasta extremamente mais do que um que possa ser tratado junto a seus familiares, em sua comunidade e com apoio do sistema público de saúde.

O autor parece incorrer no mesmo vácuo de compreensão de muitos que confundem um amplo processo social de discussão das instituições com a idéia simplória da desospitalização. Nenhum profissional de saúde mental sério defende uma posição de não internação de uma pessoa quando necessário. Para isso, a Lei 10.216/01, conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica, e a portaria GM 336/02, que a regulamenta, apontam para diversas formas de atenção que vão bastante além das únicas que Gullar parece conhecer, que são o ambulatório e o hospital-dia. Há toda uma rede de serviços proposta, incluindo Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), leitos psiquiátricos e emergências psiquiátricas em hospitais gerais, serviços residenciais terapêuticos, além do fortalecimento da atenção primária, o serviço que deve ser oferecido nos Centros de Saúde dos bairros. Esta rede tem como acolher, abrigar, tratar, apoiar os portadores de transtornos e seus familiares, além de ser mais econômica para o país e oferecer melhores condições de tratamento que os nossos tradicionais manicômios que o Sr. Gullar, espero, ingenuamente, afirma não mais existirem.

Pois caro Sr. Gullar, sinto muito lhe trazer uma verdade incômoda e vergonhosa para o nosso país. Os manicômios continuam existindo, continuam sendo desumanos, tratando seres humanos como animais, produzindo mais doença e, com seu papel de depósito humano (temos milhares de pessoas internadas por 20, 30, 40 anos), continuam sangrando o dinheiro público. Caso o Sr. ou qualquer outra pessoa duvide, será muito fácil mostrar alguns endereços onde se pode constatar esta vil realidade. Há, também, interesses no velho sistema de internações que não têm nada a ver com a intenção de melhorar a saúde dos usuários, são herança da mentalidade do INPS, onde as internações, e por quanto mais tempo melhor, são negócios que dependem da hotelaria, dos serviços, das licitações e da medicalização excessiva dos pacientes. Muitas pesquisas financiadas pelo CNPq e MS têm acumulado evidências científicas de uma avaliação positiva, tanto por parte dos usuários quanto dos familiares, do tratamento realizado nos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico.

O público muitas vezes não entende estas questões e a imprensa não tem ajudado muito. A maioria das manifestações dos órgãos de imprensa mais poderosos se coloca a favor desses interesses, praticamente não havendo matérias que aprofundem a questão em sua complexidade e denunciem as indignidades que se escondem por trás da desinformação e do sensacionalismo.

Há que se entender que estão em jogo duas lógicas. Uma que defende o tratamento para os transtornos psíquicos, como vem sendo aplicado no ocidente desde meados do século XVII, baseada na exclusão no manicômio por tanto tempo quanto possível, dopando o paciente e usando indiscriminadamente o eletrochoque, e sustentada em mitos como o da improdutividade e da periculosidade absoluta do “doente mental”. Outra é a lógica que busca caminhos mais civilizados, inteligentes, eficientes, adequados e mais éticos no tratamento de pessoas que eventualmente necessitam de internações, geralmente curtas, e que podem ser efetivadas na rede de CAPS e hospitais gerais. Por esta outra lógica, entendemos que os problemas das pessoas em nossa sociedade atual são de graus variados e as novas formas de tratamento vêm permitindo a muitas destas pessoas contribuírem de forma admirável para nosso avanço social.

Pessoalmente, manifesto minha solidariedade para com o poeta Ferreira Gullar, por seu sofrimento como pai, que revelou em seu artigo. Compreendo, a partir daí, sua paixão, sua agressividade para com muitos de nós, que lutamos por um modelo de atenção que entendemos como melhor. Há, entretanto, muitos equívocos em seu artigo e um deles talvez seja não perceber que sua família poderia ter sofrido muito menos e tido muito mais apoio se todos nós lutássemos solidariamente pela efetivação de um sistema digno de saúde, que inclua uma rede adequada de saúde mental, que, apenas por interesses escusos e pela ignorância de muitos de nossos políticos, ainda encontra resistências para sua ampliação e avanço.

Walter Ferreira de Oliveira, Ph.D.
Presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental – Abrasme (Pela Diretoria e Conselho Deliberativo).

***

Folha de S.Paulo - Falta leito psiquiátrico na rede, diz escritor - 19/04/2009
São Paulo, domingo, 19 de abril de 2009

Falta leito psiquiátrico na rede, diz escritor

Vice-presidente de ONG para portadores de esquizofrenia elogia mudanças, mas acha que hospital comum tem que ter vaga

Jorge Cândido de Assis, portador de esquizofrenia, e que já foi internado para tratamento, é um dos autores de livro sobre a doença

DA REPORTAGEM LOCAL

A reforma psiquiátrica brasileira trouxe experiências positivasna aposta pelo atendimento comunitário em detrimento das internações hospitalares na ampla forma como ocorriam há duas décadas, mas ainda há problemas. A opinião é de Jorge Cândido de Assis, 45, vice-presidente da Abre (Associação Brasileira de Familiares, Amigos ePortadores de Esquizofrenia) e um dos autores do livro "Entre a Razão e a Ilusão: Desmistificando a Loucura". Ele, que é portador de esquizofrenia -doença em que o paciente enfrenta fases de não distinguir realidade do que acredita ser real-, aponta que os Caps (Centro de Assistência Psicossocial) são uma boa opção de tratamento fora das crises. Mas aponta desestruturação e falta de leitos psiquiátricos em hospitais gerais, o que resulta em pacientes nas macas em hospitais.
Na reforma psiquiátrica foram fechados mais de 80 mil leitos psiquiátricos desde 1989 -hoje são 36,7 mil. Em 2001, uma lei legitimou a base da reforma: internação só em último caso. No domingo, o poeta Ferreira Gullar, em sua coluna na Folha, reascendeu a polêmica criticando a dificuldade dos pacientes em conseguir internação. Classificou como desastre a campanha anti-internação e defendeu a revogação da lei. Leia a entrevista com Assis.

FOLHA - Como vê as mudanças?
JORGE CÂNDIDO DE ASSIS - A ideia do tratamento em Caps é positiva, pois o paciente não fica confinado. É o local ideal para tratar fora da crise. Na esquizofrenia, 85% dos pacientes têm o transtorno pelo resto da vida, e esse acompanhamento é importante.

FOLHA - E nas crises ou fases agudas?
ASSIS - Os hospitais gerais têm serviços de diferentes especialidades, o que é um fator positivo, pois alguns pacientes não têm apenas o transtorno mental. O ideal seria ter mais leitos de psiquiatria nesses hospitais [havia apenas 2.568 em 2008 no país]. Como não há leitos suficientes, os hospitais psiquiátricos acabama colhendo essas pessoas. Acredito que juntar pacientes em hospitais psiquiátricos, por um período longo, não é bom. Esse conceito historicamente foi construído.

FOLHA - Na associação, qual o sentimento dos pacientes quanto aos tratamentos hoje?
ASSIS - Tem pessoas que conseguem bons atendimentos. Uma dificuldade por parte de quem vive a doença é aceitar os tratamentos. Muitas vezes a pessoa não aceita ir ao médico. Outra dificulda de éaceitar que as doenças merecem cuidado a longo prazo. O que pode ocorrer por características dos sintomas da doença, a pessoa se isola, tem dificuldade de comunicação. Só a metade adere.

FOLHA - Tem gente que reclama?
ASSIS - Sim. Por exemplo, você chega ao PS psiquiátrico de hospital geral. Existe uma rede. Onde tiver vaga você é encaminhado. As pessoas ficam dias em macas até a transferência porque não há vagas.

FOLHA - Como vê os hospitais psiquiátricos?
ASSIS - Dentro dessa denominação há diferentes hospitais. Tanto os manicômios quanto os bons hospitais. Há a Associação Hospitalar Thereza Perlatti, em Jaú [296 km de SP], que é excelente. Mas, em geral, é difícil nesse momento da nossa história dizer qual hospital psiquiátrico é bom ou não porque a qualidade varia muito. Em um hospital psiquiátrico que não é bom, é mais fácil haver algum tipo de tratamento desumano, como punições, confinamento. Essa é uma discussão antiga, que vem da Declaração de Caracas, que mostra que esse tipo de atendimento isola.

FOLHA - Como vê a participação da atenção básica no atendimento?
ASSIS - São fundamentais na medida em que os agentes de saúde conhecem os problemas da comunidade. Mas há problemas. Todas as unidades básicas estão preparadas? Não.

FOLHA - Há estigma?
ASSIS - Sim. No sentido de que há pessoas que pensam que transtorno mental é menos importante que outras doenças.

FOLHA - Você já se tratou em um hospital psiquiátrico?
ASSIS - Sim, recebi um bom atendimento pelo SUS na Santa Casa de São Paulo, em 2000. Estive internado em uma clínica particular em1987, e o atendimento também foi bom. Ter sido internado no meu caso foi fundamental.

FOLHA - A reforma atendeu a demanda por tratamentos?
ASSIS - Não conheço nenhum relatório com os dados dos atendimentos do sistema.
Posted by Picasa

Nenhum comentário: