abril 12, 2009

Sujô!

Ferreira Gullar

Sujô!

Pela segunda vez consecutiva, próximo à celebração do Dia Nacional de Luta Antimanicomial – 18 de Maio –, Ferreira Gullar, o (e)terno poeta do "Poema Sujo", escreve um artigo, na Folha de São Paulo, com argumentos rasos e preconceituosos sobre a lei Paulo Delgado e a Reforma Psiquiátrica brasileira.

Ferreira Gullar, finalmente, revela que tem dois filhos em sofrimento psíquico grave. Relato de familiares que envolvem a vida e os afetos privados, tornados públicos sensibilizam do leigo aos trabalhadores de saúde que lidam com tais experiências. Em comum a impotência gerada pela falta de serviços acolhedores e resolutivos, cujos números expressivos ainda estão longe de realizar a cobertura desejada. As razões pelas quais convivemos com esse quadro devem ser objeto de uma corajosa análise, estado por estado, município por município, além da responsabilidade federal. Porém, revogar a lei Paulo Delgado é reduzir de modo simplista a solução requerida para o atual estágio da assistência à saúde mental no Brasil.

Entre a dor de um pai que reclama por mais e melhores serviços de saúde mental no país – dos serviços substitutivos ao manicômio aos leitos psiquiátricos em hospitais gerais, ambos em quantidades deficitárias diante do número de leitos psiquiátricos fechados desde meados dos anos 1980 – e simplesmente revogar a lei que coroou a mais profunda reforma psiquiátrica existe um abismo político ideológico.

Os argumentos do poeta Ferreira Gullar no caderno "Ilustrada" da Folha de São Paulo deste domingo, se deixam de lado o enfrentamento histórico com a psiquiatria conservadora para com argumentos rasos e preconceituosos pedir a revogação da lei Paulo Delgado que mudou o cenário trágico da assistência psiquiátrica brasileira, escancaram, por outro, a falta de investimentos para a efetiva consolidação de um modelo que se quer substitutivo. Sem estes, ficam comprometidas as iniciativas de criar um outro lugar para a loucura em nossa sociedade, lugar cuja construção não cessa.

De nada adianta invocar que atual lógica da política de saúde mental se sustenta sob a prática do cuidado em liberdade, se a desinstitucionalização da loucura, em muitos lugares, vem se dando na sua vertente mais pobre: a desospitalização; se não há recursos sequer para promover um amplo processo de conversão dos recursos humanos existentes na rede pública de saúde ao novo modelo de atenção em saúde mental vigente no país, sem os quais a reforma patina.

Neste cenário, não há porque lamentar as inúmeras tentativas de desmonte e do isolamento do movimento social por uma sociedade sem manicômios. Os conservadores o fazem abertamente; sabemos quem são e o que representam socialmente. Falta-nos a dimensão crítica da institucionalização da reforma psiquiátrica no curso do processo histórico. É preciso ir à luta. Que vem chumbo grosso por aí!

Leia abaixo o artigo de Ferreira Gullar. E use o espaço deste blog para se manifestar. Cartas, artigos, desabafos e recados, favor encaminhar para rogeliocasado@uol.com.br

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Folha de São Paulo

São Paulo, domingo, 12 de abril de 2009

FERREIRA GULLAR

Uma lei errada

Campanha contra a internação de doentes mentais é uma forma de demagogia


A CAMPANHA contra a internação de doentes mentais foi inspirada por um médico italiano de Bolonha. Lá resultou num desastre e, mesmo assim, insistiu-se em repeti-la aqui e o resultado foi exatamente o mesmo.

Isso começou por causa do uso intensivo de drogas a partir dos anos 70. Veio no bojo de uma rebelião contra a ordem social, que era definida como sinônimo de cerceamento da liberdade individual, repressão "burguesa" para defender os valores do capitalismo.

A classe média, em geral, sempre aberta a ideias "avançadas" ou "libertárias", quase nunca se detém para examinar as questões, pesar os argumentos, confrontá-los com a realidade. Não, adere sem refletir.

Havia, naquela época, um deputado petista que aderiu à proposta, passou a defendê-la e apresentou um projeto de lei no Congresso. Certa vez, declarou a um jornal que "as famílias dos doentes mentais os internavam para se livrarem deles". E eu, que lidava com o problema de dois filhos nesse estado, disse a mim mesmo: "Esse sujeito é um cretino. Não sabe o que é conviver com pessoas esquizofrênicas, que muitas vezes ameaçam se matar ou matar alguém. Não imagina o quanto dói a um pai ter que internar um filho, para salvá-lo e salvar a família. Esse idiota tem a audácia de fingir que ama mais a meus filhos do que eu".

Esse tipo de campanha é uma forma de demagogia, como outra qualquer: funda-se em dados falsos ou falsificados e muitas vezes no desconhecimento do problema que dizem tentar resolver. No caso das internações, lançavam mão da palavra "manicômio", já então fora de uso e que por si só carrega conotações negativas, numa época em que aquele tipo hospital não existia mais. Digo isso porque estive em muitos hospitais psiquiátricos, públicos e particulares, mas em nenhum deles havia cárceres ou "solitárias" para segregar o "doente furioso". Mas, para o êxito da campanha, era necessário levar a opinião pública a crer que a internação equivalia a jogar o doente num inferno.

Até descobrirem os remédios psiquiátricos, que controlam a ansiedade e evitam o delírio, médicos e enfermeiros, de fato, não sabiam como lidar com um doente mental em surto, fora de controle. Por isso o metiam em camisas de força ou o punham numa cela com grades até que se acalmasse. Outro procedimento era o choque elétrico, que surtia o efeito imediato de interromper o surto esquizofrênico, mas com consequências imprevisíveis para sua integridade mental. Com o tempo, porém, descobriu-se um modo de limitar a intensidade do choque elétrico e apenas usá-lo em casos extremos. Já os remédios neuroléticos não apresentam qualquer inconveniente e, aplicados na dosagem certa, possibilitam ao doente manter-se em estado normal. Graças a essa medicação, as clínicas psiquiátricas perderam o caráter carcerário para se tornarem semelhantes a clínicas de repouso. A maioria das clínicas psiquiátricas particulares de hoje tem salas de jogos, de cinema, teatro, piscina e campo de esportes. Já os hospitais públicos, até bem pouco, se não dispunham do mesmo conforto, também ofereciam ao internado divertimento e lazer, além de ateliês para pintar, desenhar ou ocupar-se com trabalhos manuais.

Com os remédios à base de amplictil, como Haldol, o paciente não necessita de internações prolongadas. Em geral, a internação se torna necessária porque, em casa, por diversos motivos, o doente às vezes se nega a medicar-se, entra em surto e se torna uma ameaça ou um tormento para a família. Levado para a clínica e medicado, vai aos poucos recuperando o equilíbrio até estar em condições que lhe permitem voltar para o convívio familiar. No caso das famílias mais pobres, isso não é tão simples, já que saem todos para trabalhar e o doente fica sozinho em casa. Em alguns casos, deixa de tomar o remédio e volta ao estado delirante. Não há alternativa senão interná-lo.

Pois bem, aquela campanha, que visava salvar os doentes de "repressão burguesa", resultou numa lei que praticamente acabou com os hospitais psiquiátricos, mantidos pelo governo. Em seu lugar, instituiu-se o tratamento ambulatorial (hospital-dia), que só resulta para os casos menos graves, enquanto os mais graves, que necessitam de internação, não têm quem os atenda. As famílias de posses continuam a por seus doentes em clínicas particulares, enquanto as pobres não têm onde interná-los. Os doentes terminam nas ruas como mendigos, dormindo sob viadutos.

É hora de revogar essa lei idiota que provocou tamanho desastre.


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Um comentário:

Rita de Cássia de Araújo Almeida disse...

Prezado Ferreira Gullar
Certa vez você escreveu assim:

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?


Quero acreditar que quem escreveu a coluna deste domingo de páscoa tenha sido apenas uma parte de você. Uma parte que não conhece os enormes avanços que a Reforma Psiquiátrica Brasileira e a lei (à qual você se refere como idiota), puderam fazer na vida e na história dos milhares de familiares e usuários com os quais lidamos no nosso dia-a-dia de trabalhadores da Saúde Mental. Antes desta lei - que não foi daquelas que surgiu de traz da orelha de um cretino qualquer, mas resultado de um processo de mais de 10 anos de discussão, luta, enfrentamentos e negociações - familiares e pacientes tinham no manicômio único modo de ter e oferecer "tratamento" para suas loucuras ou doenças mentais. A mesma parte que desconhece que existem sim em nosso País e em outros: manicômios - com este nome ou com outros mais amenos - que continuam a ferir direitos mínimos aos seus "frequentadores" , manicômios que ainda mantêm pessoas encarceradas por 20, 30 ou mais anos, condenadas à reclusão simplesmente pelo fato de serem doentes mentais.
Não quero acreditar que um poeta sensível como você consiga enxergar na doença de seus filhos somente pessoas dispostas a matar ou morrer quando estão em crise, outra parte de você, certamente, conhece muitas outras facetas e singularidades que só quem convive de perto com a esquizofrenia ou outras doenças mentais pode experimentar. Por isso minha carta é um convite... um convite para que você escute a outra parte de si mesmo e desta história que você conta de maneira rasteira e parcial, uma história que tem lá suas dificuldades e imperfeiçoes (e bem sabe você que num mundo perfeito não haveriam poetas) mas é uma história bonita e legítima e que merece no mínimo respeito. Convido outra parte de você a conhecer um CAPS (ou serviço deste tipo) e escutar o depoimento de usuários e familiares que lá frequentam, e que puderam mudar suas histórias por causa das transformações que esta lei provocou em suas vidas. Uma parte de você também não sabe que a hospitalização, de qualquer natureza, não é mais a única solução para as chamadas crises, existe muito mais a ser fazer...Outra parte de você também ficaria encantado em saber que esta lei contruiu muito mais coisas do que descontruiu, descontruiu os manicômios, mas construiu um sem número de outras possibilidades, dispositivos, formas de tratamento, além de muita arte, música e poesia...Creio sinceramente que quem escreveu este artigo é a parte de você que ainda não conheceu a outra parte da história...entã o venha conhecê-la, tenho certeza de que nenhuma parte de você irá se arrepender.

saudações antimanicomiais

Rita de Cássia de A. Almeida
Juiz de Fora/MG
trabalhadora de CAPS e militante da reforma psiquiátrica brasileira há 12 anos.