julho 06, 2009

O Olhar Impreciso e pouco poético de Gullar

Foto postada em www.fisica.ufpb.br
Nota do blog: Certamente não foi essa paisagem que inspirou o texto do psicólogo Bira, enviado pelo sociólogo Dênis Petuco, ambos residentes em João Pessoa. Foi uma outra imagem, a de uma cena que o movimento de luta por uma sociedade sem manicômios quer por fim em nome da construção de uma cidadania negada aos loucos, e que a cegueira do poeta não quer ver.

O Olhar Impreciso e pouco poético de Gullar
(por Ubiratan Pereira de Oliveira)

A publicação de três artigos do inigualável Ferreira Gullar na Folha de São Paulo, direcionando fortes críticas ao modelo de atenção à saúde mental no Brasil, ganhou uma dimensão que talvez nos mostre da intensidade, complexidade, além, claro, da ousadia no processo da reforma psiquiátrica no Brasil.

De forma ríspida, pouco poética, mal-educada e acima de tudo simplista, o poeta desfere suas constatações a partir da sua experiência familiar, convivendo com dois filhos esquizofrênicos, um deles ainda em vida, morando em um sítio no Estado de Pernambuco, distante até do universo cotidiano do pai poeta, apesar do mesmo afirmar que fala todos os dias por telefone com o filho de 50 anos. Contudo, a forma encontrada para estabilizar o quadro clínico do filho do escritor não é o objetivo de apreciação neste momento.

De pronto, a trilogia do poeta, que repercutiu mais recentemente em matéria de capa da Revista Época, começa tratando de uma tal “campanha” contra a internação de doentes mentais, que, além de ser desastrosa,seria uma forma de demagogia, pautada em conceitos “falsos” e indicadores fantasiosos, além de uma abordagem pouco consistente da problemática da loucura. Gullar parece querer menosprezar e subdimensionar um campo que a partir de um amplo arcabouço teórico e operacional fez a crítica ao modelo hospitalocêntrico, formulando, cada um ao seu modo, proposições e estruturas diferenciadas para o tratamento da pessoa com transtorno mental. Portanto, a dita “campanha” que o poeta nos alardeia, fala na verdade de uma política muito bem definida e substanciada que opta pela aposta naquele que sofre, que necessita de tratamento, mas, principalmente, de ferramentas e estratégias que o coloque em posição de interagir de forma inclusiva com sua realidade cotidiana. Uma idéia avançada e libertária, como bem pondera Gullar, refletida e confrontada com a realidade.

Um dos avanços significativos para a ampliação dos serviços substitutivos foi a definição do marco legal, com a aprovação, depois de um longo período de discussão, da Lei Federal 10.216, de autoria do deputado federal Paulo Delgado, que trata da reorientação progressiva da atenção à saúde mental. A lei serviu de amparo e referência para a elaboração de diversas legislações estaduais e municipais e tem tornado realidade a diminuição dos leitos em hospitais psiquiátricos e a ampliação dos serviços substitutivos (CAPS - Centro de Atenção Psicossocial, leitos em hospitais gerais, Serviços Residenciais Terapêuticos, entre outros). No entanto, todo esse esforço jurídico e operacional é menosprezado de forma pouco sutil pelo poeta. “A lei é errada”!!! Diz Gullar. “O Sujeito (o autor da lei) é um cretino”. Descarrega de forma descortês nosso poeta.

Ainda, de forma pouco apropriada, Gullar passa a fazer a defesa dos hospitais psiquiátricos, afirmando que em nenhum deles presenciou cárceres e solitárias. As clínicas particulares são elogiadas de forma respeitosa por oferecerem divertimento e lazer, além de teatro, piscina, cinema, etc. Isso talvez demonstre um olhar externo e pouco aprofundado de alguém que talvez não tenha adentrado no universo íntimo das instituições psiquiátricas. Tive oportunidade de experienciar essa realidade na prática como estagiário e profissional e as cenas e comportamentos ditos institucionais me marcaram profundamente enquanto cidadão. Tornei-me então militante da reforma psiquiátrica. Orgulho-me de ter contribuído com o fechamento de um hospital psiquiátrico que, ao contrário do que coloca o poeta, era um lugar sombrio, caótico, segregador, com celas, com grades e nada terapêutico. Até o número correto de usuários internos a comissão de intervenção não conseguia identificar. Portanto poeta, para além da sala de visitas de um hospital psiquiátrico, existe uma estrutura não resolutiva e extremamente reincidente, que cronifica os usuários e também os trabalhadores.

Acompanho há 13 anos as mudanças na rede de atenção à saúde mental no Brasil, sob vários ângulos: estudante, militante, profissional, gestor e agora vereador da Cidade de João Pessoa. Conseguimos sair do discurso, da referência distante e pouco concreta para uma real reorientação do modelo de atenção à saúde mental. Invertemos a lógica do financiamento, direcionando os recursos para os serviços substitutivos, reduzindo leitos psiquiátricos e articulando os dispositivos da rede em toda a sua complexidade.

Os avanços são indiscutíveis. Distante do ideal, mas com um caminho importante trilhado. É preciso ampliar a rede CAPS, com o cuidado necessário na qualidade destes serviços. As emergências psiquiátricas e demais unidades reguladoras são estratégicas e precisam ser efetivadas de forma resolutiva. A atenção básica precisa incorporar as ações de saúde mental, interagindo com os dispositivos de maior complexidade da rede. Em suma, a desistitucionalização precisa vir acompanhada de assistência e ações inclusivas que permitam ao usuário interagir com a sociedade, a família, exercitando suas potencialidades dentro da diferença que o marca.

Esse caminho não é simples, a prática que se opõe ao encarceramento é bem mais complexa, requer habilidade de gestores, técnicos, usuários, familiares e da sociedade de uma forma geral. Requer um olhar ampliado sobre o usuário, uma escuta diferenciada, uma clínica que é diversificada, por que fala da singularidade da história de cada um(a). Requer também inquietação e dinamicidade para superar as dificuldades, assim como, denunciar os desvios que, por ventura, possam ser cometidos na caminhada. Requer mobilização contra as conservadoras e arcaicas formas de trancafiamento, que, com ou sem poesia, sempre irão existir!

Ubiratan Pereira de Oliveira - BIRA
Psicólogo e Vereador em João Pessoa

“Eu vim pra cá
Por acaso
Fizeram de mim
Um relato, um caso
Que não pertence à mim”
Verdade, às vezes dói

(Harmonia Enlouquece - Grupo surgido do Projeto “Convivendo com a música” do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro)
Posted by Picasa

Nenhum comentário: