agosto 13, 2010

"Copie conforme"


MovieManiacsDE | 14 de maio de 2010
CANNES FILM FESTIVAL 2010 - IN COMPETITION
clip from "Certified Copy - Copie conforme"
Genre:
Regie / directed by: Abbas Kiarostami
Darsteller / cast: Juliette Binoche, William Shimell, Jean-Claude Carrière, Agathe Natanson, Gianna Giachetti, Adrian Moore, Angelo Barbagallo, Andrea Laurenzi, Filippo Trojano

Verwendung mit freundlicher Genehmigung von Festival de Cannes Press Office
used with authorization

***

[ Amálgama ]



 
por Diego VianaJuliette Binoche, com um ar ligeiramente aflito, de excitação comedida, experimenta um brinco, uma peça chamativa e de gosto discutível. As cores da imagem são reforçadas para causar estranhamento em quem a contempla. No cartaz de Copie conforme, último filme de Abbas Kiarostami, a atriz tenta enganchar a jóia no lóbulo da orelha. E esse é mesmo o gancho que resume o filme. Não é uma daquelas obras-primas de Kiarostami, um Gosto de cereja ou um Ten. Antes, é uma jóia, menor talvez, mas rica e brilhante o suficiente para ter seu lugar no tesouro que é a obra do cineasta iraniano.


Sem contar, é claro, a própria Binoche, fabulosa como sempre, muito apropriadamente premiada no último festival de Cannes. Ela é o eixo em torno do qual se desenvolvem as transformações sutis e ininterruptas do filme, como um caleidoscópio de sensações, convicções e imagens girado por uma mão capaz. A cada vez que Binoche altera a voz, reforma a postura, troca de roupa ou inverte o discurso, o que muda é toda a pele daquilo que está sendo exibido, ou representado, ou oferecido sobre a tela. Acompanhar a mudança, nesse caso, é se antecipar a ela em todas as suas vertentes e possibilidades. Não é pouca coisa que exige o diretor.


Voltarei a esse assunto, mas já posso, e preciso, adiantar que a força dessa pequena gema de Kiarostami reside no fato de que não se trata de um filme “com muitas camadas”, como se dizia elogiosamente no tempo da linearidade, mas de um filme cristalino, cujas superfícies refletem a luz de maneiras imprevisíveis. (Falar em luz sobre o cinema é sempre uma imagem válida.) O “texto”, ou chame-se como se desejar esse fenômeno entregue ao espectador indefeso, toma suas formas estáveis, tão estáveis quanto possam ser as formas da percepção e da criação artística, de acordo com disposições mútuas, entre as cenas e o corpo instalado sobre a poltrona. Ou, para usar palavras mais claras: assista ao filme ao lado de alguém que você queira seduzir, porque na mesa do jantar, depois da sessão, há de sobrar assunto.

-- Binoche em cena --

O cineasta põe diante de nossos olhos um ensaio sobre as origens profundamente orgânicas de uma oposição conceitual particularmente problemática. Problemática, sobretudo, por ser bem mais orgânica do que parece, ou seja, porque nossa atividade do dia-a-dia depende dela mesmo que não o percebamos. Mas problemática também quando nos damos conta da multiplicidade aterradora de recortes que podemos lhe atribuir: verdadeiro/falso, original/cópia, intrínseco/adquirido, autêntico/emprestado, criação/imitação. Mas não é só. Todos esses critérios, não raro intercambiáveis, podem muito facilmente (e freqüentemente) escorregar para juízos mais rigorosos e menos “objetivos”: bom/mau, sério/burlesco, real/ficcional, ordem/confusão, sentido/interpretação…


Kiarostami, que não começou ontem a trabalhar com material estético, tem plena consciência das armadilhas desse discurso (corrente, por sinal) da autenticidade, e se aproveita dessa consciência para brincar com o material que tem à mão, como uma criança brilhante e cruel que retorce e desfigura seu brinquedo. Um roteiro, dois atores (William Shimmel é cantor de ópera, mas está excelente), três idiomas, as paisagens da Toscana, as obras de arte da Toscana, o povo da Toscana, a mística reverente que recobre o nome da Toscana para os amantes da arte. A partir dessa matéria-prima invejável, o cineasta realiza uma investigação tão profunda do nosso engajamento com o concreto e o imaginário (engajamento psíquico, mas também hormonal), que são necessários dias para recolher os cacos no inconsciente do espectador. Pois sim, essa é a marca do grande cinema.
 
Nada mais é necessário ao gênio criativo para associar, depois fundir, o problema da autenticidade na arte e na crítica, no amor e nas preocupações quotidianas, nas convicções e nos desejos ocultos. Enfim, e esse é o golpe que desestabiliza o último pilar de previsibilidade no filme, Kiarostami [ao lado] se afasta, quebra a última parede e questiona a autenticidade na própria obra que está produzindo. Nem personagens, nem atores, nem diálogos, nem planos e seqüências, nada disso chancela qualquer atribuição definitiva de real ou fingido. Num universo em que a representação é consciente de si, todo elemento se torna matéria-prima, emprestando-se ao artista para invadir corpos, espíritos e cenários. Mas Kiarostami não se contenta em aceitar o empréstimo: ele exige a subscrição do espectador, sob pena de ser deixado à margem das imagens, enquanto elas se sucedem.


Sei que me exponho a críticas ferozes por não deixar por aqui uma sinopse do filme. Peço desculpas, mas é precisamente o que não devo, isto é, não posso, aliás, não quero fazer. Resumir o “enredo” de Copie Conforme seria transformá-lo justamente naquilo que ele não é. Em outras palavras, seria introduzir, à força, a obra num universo que não é o seu, num campo discursivo correspondente à representação (no sentido foucaldiano), numa orientação de figuras e fundos, tipos e dados. Tudo isso é estranho ao filme de Kiarostami, para não dizer que é seu próprio oposto. Copie Conforme não se reduz à sua história, antes ela aponta o dedo para a noção de história, de enredo, de trama. Em seguida, ou melhor, enquanto isso, cabe ao receptor fazer sua escolha, de acordo com o fluxo de seus humores: se o dedo é acusador, descritivo, examinador, zombeteiro, denunciador, amistoso, indicativo… ou alguma das combinações possíveis.

Para fechar com outra imagem: numa cena deliciosa, que conta com a participação de Jean-Claude Carrière, os personagens discutem uma escultura que se ergue ao centro da praça principal de um daqueles vilarejos toscanos. Com uma certa dose de comicidade, tudo que se conhece dessas discussões estéticas (ainda mais quando dela participam franceses) está presente: os lugares-comuns, as hesitações, a superficialidade, o sentimentalismo, o enfado. Enquanto o verbo flui sem controle, a câmera de Kiarostami circula lépida em torno dos atores, depois em torno do monumento, depois, novamente, dos atores. Muito se fala, e repete, sobre a expressão nos rostos esculpidos (remetendo a noções semelhantes que os rostos dos atores tentam ocultar).


Mas o cineasta toma o cuidado de não enquadrar em momento nenhum os tais rostos de bronze. No aparente, no visível, no revelado, é um monumento sem cabeça. O principal está reservado para as curvas do olhar, as dobras do discurso, os interstícios, as filigranas. Com isso, muda mais rápido que os cortes de plano. Pois: o filme é como a escultura, e o diretor, conhecendo o público que teria de enfrentar, fez por onde dar indícios de sua proposta desde a primeira cena. Ou seja, o que posso recomendar é que o espectador não espere de Kiarostami que focalize a cabeça da estátua: melhor é esculpi-la pelo olhar.




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