DESARQUIVANDO O BRASIL
[O documento com as fotos dos mortos massacrados pela ditadura militar faz parte originalmente do panfleto da Manifestação Pública -Tributo aos mortos e desaparecidos do Brasil e da América Latina - por ocasião dos 30 anos da luta pela anistia no Brasil, realizada em 29/08/2009]
Eu pensei que fosse um sonho quando vi a mãe da Plaza de Mayo, na inauguração do Espacio para Memoria y para la promoción de los Derechos Humanos, em plena Escuela de Mecanica de la Armada, em Buenos Aires, o mais lúgubre centro clandestino de prisão e tortura na América Latina, gritando a frase que dá título a este texto.
Pensei um sonho impossível e, de cara, lembrei do velho Lênin, tão sábio e que sequer sabia dar um bom nó na própria gravata, dizendo pra gente acreditar nos sonhos desde que tivéssemos o compromisso de transformá-los em realidade.
Na Argentina, no Chile, no Uruguay, no Paraguay o povo pôde retornar à vida com a responsabilização, julgamento e punição dos torturadores das mais bárbaras ditaduras do cone sul durante a guerra fria. No Paraguay até mesmo os “archivos del terror” foram abertos e aqui nada. Absolutamente nada, exceto a canalhice do Supremo ao fazer a interpretação da lei de anistia.
No Brasil não. Ainda temos engasgado esse enguiço.
Óbvio que o grito, a representar o desabafo de todos nós, não traz os detenidos desaparecidos de volta. Óbvio que não traz sequer os restos mortais deles de volta, embora se con vida los llevaron, con vida los queremos! Esse sonho eu nunca pensei que pudesse realizar, mas o grito de ASESINOS! HIJOS DE PUTA!, dito com a justa ira e a plenos pulmões fez-me pensar em Walsh[2] gritando isso ali e que toda vez que se ouvisse aquela frase os mortos voltassem todos, todos, todos e pudessem dizer no presente: VENCEMOS! Não nos mataram, fomos nós que escolhemos morrer, como disse Vicki, filha de Walsh, antes de sua heróica morte. Morta sobretudo para que nós, os sobreviventes, seguíssemos na luta. Todos eles morreram por nós, sobreviventes e os viventes desses atuais tempos tão sombrios. Temos que merecer isso. Temos que merecer contar a história.
Mas cada qual com seus problemas, cada qual com seus medos, cada qual com suas culpas e nervos nervosos triscando até o fim do fim, enfim posso também eu dizer: COVARDES, FILHOS DA PUTA! Fomos nós que os tocamos, enxotados, de volta aos quartéis de onde nunca deveriam ter saído. E que aquele 1º de abril de 1964 só foi triste porque era verdade que o fascismo se abateria sobre o país por mais de 20 anos. Pra mim a ditadura civil-militar só termina em 5 de outubro de 1988, mas isso é outro assunto.
Daquele 1º de abril de 1964 lembro do moleque assustado que passa correndo na lembrança. Ele irá se encontrar com o garoto ainda de 1968, com medo, mas querendo ir, que explodirá nas manifestações de 1978, já indo, mas a ditadura nos seus estertores, pouco adiantando ir ou ficar.
O moleque assustado se lembra da classe mérdia - isso mesmo, de merda – carioca colocando lençóis brancos nas janelas para comemorar o golpe, na zona sul; de tropas, tiros e mortos nas ruas do centro, perto da Praça XV. Minha mãe tentando me acalmar: “não fica assustado, não. Isso vai passar, fica tranquilo que isso vai passar”.
Lembro das vacas velhas reprimidas que nunca tiveram um orgasmo na vida, que o mais próximo que chegaram dele foi em alguma matéria da Seleções, marchando com deus pela democracia. Eram umas mulheres horrorosas, com bigodes… Financiadas por aquele padre estadunidense escroto, pago pela CIA, que agora não lembro mais o nome.
Lembro de Zé Ketti depois pirraçando: “marchou com deus pela democracia, agora chia, agora chia”…
Mas aqui entre nós, dos militares e policiais assassinos, torturadores, monstros daquele tempo ninguém foi processado, julgado e condenado pelos bárbaros crimes cometidos. Crimes de lesa-humanidade, imprescritíveis e insuscetíveis de anistia, graça ou indulto.
Os vencedores concederam anistia a eles mesmos. Tem coisa que só acontece no Brasil, e nossos mortos, aqueles que com seus corpos e suas mortes garantiram que pudéssemos escrever isso hoje para você saber: fomos quase todos trucidados, moídos e porque nos mataram tão mal, como diz a canção, que seguimos por aí ressuscitando.
Nesse 1º de abril, quando se repudia o golpe civil-militar de 1964, é verdade que precisamos estar mais atentos e fortes do que nunca. O fascismo anda por toda parte. O controle total espreita nas esquinas esses nossos mirrados meninos, essas nossas raquíticas meninas. É verdade, derrotamos um inimigo impiedoso, canalha e cruel como foi a ditadura do general, mas quando conseguiremos derrotar a ditadura do capital?
OUSAR LUTAR! OUSAR VENCER! Era basicamente o que eu queria dizer pra vocês.
Leia também o texto de Virgílio de Mattos para os 40 anos da ditadura
Ouça Silvio Rodríguez cantando Madre:
Fonte: Sociologia do Absurdo
!ASESINOS! !HIJOS DE PUTA!
Por Virgílio de Mattos[1][O documento com as fotos dos mortos massacrados pela ditadura militar faz parte originalmente do panfleto da Manifestação Pública -Tributo aos mortos e desaparecidos do Brasil e da América Latina - por ocasião dos 30 anos da luta pela anistia no Brasil, realizada em 29/08/2009]
Eu pensei que fosse um sonho quando vi a mãe da Plaza de Mayo, na inauguração do Espacio para Memoria y para la promoción de los Derechos Humanos, em plena Escuela de Mecanica de la Armada, em Buenos Aires, o mais lúgubre centro clandestino de prisão e tortura na América Latina, gritando a frase que dá título a este texto.
Pensei um sonho impossível e, de cara, lembrei do velho Lênin, tão sábio e que sequer sabia dar um bom nó na própria gravata, dizendo pra gente acreditar nos sonhos desde que tivéssemos o compromisso de transformá-los em realidade.
Na Argentina, no Chile, no Uruguay, no Paraguay o povo pôde retornar à vida com a responsabilização, julgamento e punição dos torturadores das mais bárbaras ditaduras do cone sul durante a guerra fria. No Paraguay até mesmo os “archivos del terror” foram abertos e aqui nada. Absolutamente nada, exceto a canalhice do Supremo ao fazer a interpretação da lei de anistia.
No Brasil não. Ainda temos engasgado esse enguiço.
Óbvio que o grito, a representar o desabafo de todos nós, não traz os detenidos desaparecidos de volta. Óbvio que não traz sequer os restos mortais deles de volta, embora se con vida los llevaron, con vida los queremos! Esse sonho eu nunca pensei que pudesse realizar, mas o grito de ASESINOS! HIJOS DE PUTA!, dito com a justa ira e a plenos pulmões fez-me pensar em Walsh[2] gritando isso ali e que toda vez que se ouvisse aquela frase os mortos voltassem todos, todos, todos e pudessem dizer no presente: VENCEMOS! Não nos mataram, fomos nós que escolhemos morrer, como disse Vicki, filha de Walsh, antes de sua heróica morte. Morta sobretudo para que nós, os sobreviventes, seguíssemos na luta. Todos eles morreram por nós, sobreviventes e os viventes desses atuais tempos tão sombrios. Temos que merecer isso. Temos que merecer contar a história.
Mas cada qual com seus problemas, cada qual com seus medos, cada qual com suas culpas e nervos nervosos triscando até o fim do fim, enfim posso também eu dizer: COVARDES, FILHOS DA PUTA! Fomos nós que os tocamos, enxotados, de volta aos quartéis de onde nunca deveriam ter saído. E que aquele 1º de abril de 1964 só foi triste porque era verdade que o fascismo se abateria sobre o país por mais de 20 anos. Pra mim a ditadura civil-militar só termina em 5 de outubro de 1988, mas isso é outro assunto.
Daquele 1º de abril de 1964 lembro do moleque assustado que passa correndo na lembrança. Ele irá se encontrar com o garoto ainda de 1968, com medo, mas querendo ir, que explodirá nas manifestações de 1978, já indo, mas a ditadura nos seus estertores, pouco adiantando ir ou ficar.
O moleque assustado se lembra da classe mérdia - isso mesmo, de merda – carioca colocando lençóis brancos nas janelas para comemorar o golpe, na zona sul; de tropas, tiros e mortos nas ruas do centro, perto da Praça XV. Minha mãe tentando me acalmar: “não fica assustado, não. Isso vai passar, fica tranquilo que isso vai passar”.
Lembro das vacas velhas reprimidas que nunca tiveram um orgasmo na vida, que o mais próximo que chegaram dele foi em alguma matéria da Seleções, marchando com deus pela democracia. Eram umas mulheres horrorosas, com bigodes… Financiadas por aquele padre estadunidense escroto, pago pela CIA, que agora não lembro mais o nome.
Lembro de Zé Ketti depois pirraçando: “marchou com deus pela democracia, agora chia, agora chia”…
Mas aqui entre nós, dos militares e policiais assassinos, torturadores, monstros daquele tempo ninguém foi processado, julgado e condenado pelos bárbaros crimes cometidos. Crimes de lesa-humanidade, imprescritíveis e insuscetíveis de anistia, graça ou indulto.
Os vencedores concederam anistia a eles mesmos. Tem coisa que só acontece no Brasil, e nossos mortos, aqueles que com seus corpos e suas mortes garantiram que pudéssemos escrever isso hoje para você saber: fomos quase todos trucidados, moídos e porque nos mataram tão mal, como diz a canção, que seguimos por aí ressuscitando.
Nesse 1º de abril, quando se repudia o golpe civil-militar de 1964, é verdade que precisamos estar mais atentos e fortes do que nunca. O fascismo anda por toda parte. O controle total espreita nas esquinas esses nossos mirrados meninos, essas nossas raquíticas meninas. É verdade, derrotamos um inimigo impiedoso, canalha e cruel como foi a ditadura do general, mas quando conseguiremos derrotar a ditadura do capital?
OUSAR LUTAR! OUSAR VENCER! Era basicamente o que eu queria dizer pra vocês.
Leia também o texto de Virgílio de Mattos para os 40 anos da ditadura
Ouça Silvio Rodríguez cantando Madre:
[1] – Do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. Do Fórum Mineiro de Saúde Mental. Autor de Crime e Psiquiatria – Preliminares para a Desconstrução das Medidas de Segurança, A visibilidade do Invisível e De uniforme diferente – o livro das agentes, dentre outros. Advogado criminalista. virgilio@portugalemattos.com.br
[2] – Cujo corpo metralhado foi levado para aquele macabro lugar e mostrado a alguns presos.Fonte: Sociologia do Absurdo
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