abril 09, 2011

Tragédia no Rio mostra a tragédia da comunicação no Brasil / Nota sobre a Tragédia de Realengo-RJ

Tragédia no Rio mostra a tragédia da comunicação no Brasil
090411-rio-janeiroVermelho - Hoje pela manhã (fato), jovem do sexo masculino (fato) invade escola na Zona Oeste do Rio (fato), atira contra vários estudantes (fato), matando alguns deles (fato) e ferindo outros (fato). Em seguida ele atira contra a própria cabeça (suposição) e morre (fato).

Por Antônio Mello, em seu blog 
 Emissoras de rádio e TV e portais de grandes grupos da mídia partem para uma cobertura sensacionalista do fato (fato), entrevistando pais e mães (de preferência estas) desesperados (fato) para conquistarem audiência (fato) e aumentarem market share (meta).

O povo (essa entidade que sempre joga o verbo para a terceira pessoa, pois nunca nos inclui) gosta disso (fato?). Pelo menos é o que alegam responsáveis pela cobertura. "Se não dermos, a concorrência dá", argumentam.

Mas a exposição sensacionalista de um fato, sua transformação em espetáculo midiático, pode estimular a reprodução dos fatos, como ocorre nos Estados Unidos (fato).

A mídia vai encarar a suposição como uma possibilidade de mercado (fato) que talvez aumente market share (meta).

Outros vão morrer (fato), mas a grande mídia se importa com tudo, exceto os fatos (fato).

Fonte: Diário Liberdade 

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NOTA do GIPSIdo INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA UnB SOBRE a TREGÉDIA DE REALENGO/RJ
Absolutamente consternados com evento tão violento e chocante, assim como toda a população brasileira, o GIPSI vem a público, na qualidade de estudantes, professores, pesquisadores e profissionais, especialistas na área (sofrimento psíquico grave) - considerando estar sendo demandado para se posicionar -, socializar sua primeira leitura de episódio tão trágico como forma de contribuir para uma compreensão mínima possível e a necessária discussão acadêmica, profissional e social sobre o ocorrido.
De pronto enfatizamos a complexidade do episódio, descabendo qualquer explicação de ordem meramente linear e/ou causalista. Fenômenos como este são multicausais e autopoiéticos, ou seja, implicam causas e dimensões diversas, que se interpenetram e se retroalimentam. Desta feita, qualquer atribuição de causalidade, no formato de culpabilizações ou responsabilizações únicas, não contribuem para se ter uma leitura mais complexa e ética possível da realidade. Assim, psicologizações, psicopatologizações, psiquiatrições, criminalizações ou julgamentos morais apressados e baseados em dados minimalistas não darão conta da compreensão complexa do fato nem nos ajudarão a aprofundar o necessário debate do fenômeno.
Deixando em suspenso o inevitável e forte apelo emocional e afetivo - porém sem desconsiderá-lo, por certo -, cremos ser necessário ter alguns cuidados com nossas opiniões, julgamentos e propostas de compreensão e ação conseqüentes.
Para além do aspecto midiático - que até entendemos ser legítimo e necessário para que possamos fazer tantos lutos ao mesmo tempo e para tentarmos canalizar nossa dores (pessoais, familiares e sociais) implicadas - temos que apontar algumas questões cruciais para o cuidado possível de abordagem.   
Na dimensão individual, posto que todos estejam à procura de uma explicação individualizada, repudiamos todo e qualquer processo diagnóstico de uma pessoa que não tivemos acesso de forma longitudinal e que agora apenas avaliamos com base em dados minimalistas, muitos dos quais possivelmente imprecisos, enviesados, subjetivados e alvo fácil de generalizações e afirmações narcisistas e projetivas desnecessárias. Neste sentido, não reputamos o rapaz autor do fato como esquizofrênico, psicopata, “mass murder”, assassino, fascínora, psicótico etc, posto que a posteriori não se pode mais fazer tais ilações. Socialmente cabe denunciar esta fácil psicopatologização e psiquiatrização de um evento que vai além de uma “suposta doença mental, psicose, loucura ou transtorno mental”. Até para que não caiamos na postura, também fácil e muitas vezes desejada por muitos, de não olharmos nossa contribuição social no evento, de tudo atribuirmos, preconceituosamente, à “doença mental” e isto signifique a adoção de posturas, procedimentos e até mesmo políticas sociais discriminatórias, excludentes e repressivas.
As dores envolvidas são muitas, em especial nas perdas de pais, crianças e adolescentes de forma tão trágica e inesperada, e sem desconsiderá-las (pelo contrário, nos solidarizando com elas), gostaríamos de enfatizar, como nos cabe como especialistas da área, o sofrimento que o rapaz (um ser humano, produto legítimo nosso, no sentido de ter sido construído em nossas relações humanas e sociais de nosso meio, de nossa cultura) vivenciou em seu também curto período de existência. “Filho adotivo”, “mãe esquizofrênica”, “adolescente rejeitado” (eventuais bullyings no formato das gozações, das rejeições de modo de ser diferente, taxado de “gay”, rejeitado e ridicularizado por meninas e meninos etc), “esquizotípico”, ensimesmado, solitário, religioso evangélico, sexualmente virgem e sem rede de amigos e apoio afetivo-social: estes qualificativos - e não diagnósticos - são apenas indicadores de um sofrimento. Psicótico? Não necessariamente... O máximo que podemos afirmar neste momento, cremos, é que estava construindo seu mundo próprio, com os sofrimentos inerentes (pessoais, sexuais, familiares, sociais) e para tanto seu sofrimento estava sendo estruturado de forma grave... Não sabemos, em especial a posteriori, se do tipo psicótico. Quantos de nós, “outros” (“normais”, “engajados”, “estudiosos”, “sãos” etc), não estamos assim fazendo? Quantos de nós, em nossa sociedade, assim não está, desamparado, à mercê de sua própria sorte ou da sorte construída socialmente? Vários, diversos... Assim, rejeitamos formalmente os diagnósticos fáceis de esquizofrenia e psicopatia, em especial a irresponsabilidade de ditos especialistas que, com veemência, contribuem para o obscurecimento da complexidade envolvida e lançam na sociedade preconceitos e visões ultrapassadas e estereotipadas de um sofrimento essencialmente humano... Este rapaz não foi construído por uma doença, mas por uma existência de sofrimentos que a estavam estruturando...
As dimensões familiares, sexuais, relacionais, sociais e, por conseqüência, de isolamento (morava sozinho, com seu gato e seu cachorro, por exemplo), autoreflexão com conclusões próprias, fechadas em si próprias, incluindo as religiosas, o estavam conduzindo a um mundo próprio, particular, o único possível para dar conta de tantos sofrimentos... Construção delirante? Pode até ser, mas plenamente calcado na realidade e derivado dela, até porque suas ações demonstraram pleno contato com ela... Desta feita, não vamos apenas “individualizar a sua doença”...
Assim, entendemos que os sistemas familiar (anterior, pais biológicos e atual, adotivo), escolar, religioso, relacional e, enfim, social não deram conta de dar continência ao sofrimento construído nos seus 24 anos de idade... Sem culpabilizações de quaisquer ordens, todos estes sistemas não estiveram - e muitos não estão - de detectar, dar a atenção devida ou fazer a abordagem possível de um processo em construção. Neste sentido, cabe apontar deficiências dos sistemas envolvidos, sem, no entanto, responsabilizá-los individual, causal e linearmente, como alertamos no início de nossa nota. A rigor e ao cabo, a família, a escola, a religião, os professores, os profissionais, o estado não estão preparados para perceber e lidar com a detecção precoce de tais sinais, que na nossa abordagem chamamos de pródromos... Mas isto não se resolve meramente criticando, rotulando ou afirmando verdades absolutas de qualquer sorte... É preciso pensar, no nível da saúde mental de nossa população, em termos de política global, por exemplo, em promoção de saúde, intervenções precoces, capacitações e efetivamente um aumento de mecanismos e dispositivos de acolhimento e escutas de tantas dores e tantos sofrimentos, muitas vezes desconsiderados, rejeitados ou mesmo ignorados, como cremos, ocorreu no caso deste rapaz...
Neste sentido é que nosso grupo tem trabalhado, pesquisado (financiamento do CNPq) e há 9 anos vem construindo uma possibilidade de abordagem possível de eventos prévios a fatos como este  (crises psíquica graves) e, neste particular, que o Centro de Atendimento e Estudos Psicológicos (CAEP) e a atual Direção do Instituto de Psicologia está investida na construção de um Centro de Serviços Psicológicos cada vez mais inclusivo de nossa comunidade interna (UnB), DF e entorno, incluindo a instalação de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), docente-assistencial, dentro da política pública do Ministério da Saúde de Reforma Psiquiátrica,  no novo prédio do CAEP, com o apoio da atual administração do Instituto de Psicologia e central da UnB.
Solidarizamo-nos com os pais e as vítimas, incluindo os do próprio agente principal de tamanha tragédia...
Que o fato, absolutamente doloroso para todos nós, sirva de exemplo para que tenhamos discussões e tomemos ações complexas e conseqüentes, abrindo mão de explicações e soluções fáceis e meramente paliativas...
Informamos que estaremos organizando, o mais rápido que pudermos, um debate com especialistas na área (Psicologia, Antropologia, Direito dentre) para contribuirmos com o debate acadêmico, profissional e luto social em nossa comunidade.
Prof. Dr. Ileno Izídio da Costa
(ileno@unb.br, ilenoc@gmail.com)
Coordenador do GIPSI, em nome do Grupo
Referência de leitura: “Da psicose aos sofrimentos psíquicos graves”. Ileno Costa e Colaboradores, Kaco Editora, 2010.

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