PICICA: "Um filme de Lech Majewski é sempre um retorno a luz, a valoração da composição do plano, da estética. Cineasta robusto, de olhar agudo, no cinema de Majewski sempre sobraram variações possíveis, interpretações outras diante do enunciado e de seus dispositivos. Primeiro porque não há um discurso essencial a ser articulado pelo cineasta. Os filmes são o que são, estão aí para o mundo criar através e a partir deles, na profusão de suas matérias."
Festival do Rio: O Moinho e a Cruz
Retorno a luz, invadir o quadro
Era uma questão de tempo até um filme
sobre uma pintura de Bruegel. Um filme de Lech Majewski é sempre um
retorno a luz, a valoração da composição do plano, da estética. Cineasta
robusto, de olhar agudo, no cinema de Majewski sempre sobraram
variações possíveis, interpretações outras diante do enunciado e de seus
dispositivos. Primeiro porque não há um discurso essencial a ser
articulado pelo cineasta. Os filmes são o que são, estão aí para o mundo
criar através e a partir deles, na profusão de suas matérias. O Moinho e a Cruz
reescreve a virtude da mise em scène, de preencher o quadro (aqui
literalmente) com a presença dos corpos e dos espaços por eles
habitáveis, de materializar a representação da pintura (influência forte
em Majewski) em figuras orbitáveis e humanas capazes de ressignificar a
imagem, transcender em si.
Mas o rigor corresponde ao desejo de
potência, e por mais que a experiência seja essencialmente estética,
Majeswski retrabalha a pintura de Pieter Bruegel, o Velho, inserindo
personagens em meio as paisagens amplificadas de panos de fundo pintados
à mão para ornar a ação, nunca somente para criar paisagens.
Isso se percebe pela trama, que cria um diálogo (sem diálogos) para os
personagens, estrutura eles muito sensivelmente sob composições/cenários
para então fortificá-los pela força da câmera – ninguém pode acusar
Majewski de desleixo.
A história se passa em Flandres, hoje
Bélgica, durante a ocupação espanhola. Judas, Virgem Maria, um burguês,
um fazendeiro, o próprio Bruegel, são alguns dos personagens que
precisam lidar com a presença maciça do exército espanhol. O resto a
câmera leva, em travellings, por entre os cenários montados.
Mas nada disso é ostentação ou criação
pseudo, mesmo que, as vezes, perca-se espontaneidade devido a dureza
exigida aos atores em seus movimentos, pois não há (ou há pouca)
flexibilização espacial, o que mecaniza a ação, endurece-a. Cinema não é
pintura, precisa de espaço para deslizar, caminhar, montar e recriar.
Não obstante, tudo que sobra é utilizável, como no Renascimento. Se na
obra de Bruegel o que se vê é a projeção de paisagens vastas pontilhados
por dezenas de trabalhadores, crianças brincando; orgia das relações,
confluência dos corpos, alegoria da humanidade, no filme sobre seu
quadro mais famoso, A Procissão para o Calvário, as imagens não são
tidas como divinas, absolutas e donas de toda verdade artística. Pelo
contrário, se prontificam a retratar seres humanos em meio as paisagens
da criação visual, onde o próprio Bruegel é personagem, já que aparece
algumas vezes concebendo a obra pintada no fundo. Essa junção do criador
e da criatura, bem como a sua inserção em sua própria obra, resolve um
dilema primário na obra de Majewski: ao realocar um experimento
sensorial (o quadro de Bruegel), primeiro é necessário revitalizar a
imagem cinematográfica.
Na adaptação dos dispositivos, vence a
criação, sobretudo. Pois se há tecnologia para digitalizar o fundo,
Majewski prefere o trabalho manual, a autenticidade da pincelada, da
coloração. Não raro o material é muito rico, potente, sensível. Mesmo
quando Charlotte Rampling narra o descontrole de sua personagem, a
Virgem Maria, enquanto acompanha a crucificação, o onírico se coloca
como verbo, a oração energiza-se da agonia. Há toda uma verbalização da
potência imagética (a voz e o rosto da Virgem só simbolizam o torpor das
relações de afeto entre a mãe e o crucificado), uma correlação de
multidões exasperadas, mistura de ritmos. Há, também, morte; mas morte
não romântica, morte visceral. É o contrário do comum, até improdutivo
para alguns cinemas, essa mistificação da imagem.
(O mylos kai o stavros, Polônia, 2011) De Lech Majewski. Com Rutger Hauer, Charlotte Rampling, Michael York, Joanna Litwin.
Fonte: Tudo (é) Crítica
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